outubro 06, 2004

O CONTTRADITÓRIO. [Actualizado] Vai uma grande algazarra pelos corredores do PSD e, imagino, pelas redacções, sobre o apelo do ministro Gomes da Silva «em defesa do contraditório» no «caso Marcelo Rebelo de Sousa». Acho absolutamente estapafúrdio. Toda a gente sabe (é uma maneira de dizer) que, «do ponto de vista legal», Marcelo Rebelo de Sousa podia falar durante vinte e quatro horas seguidas na TVI. E se houvesse obstáculos legais, ninguém ousaria pôr em causa a autonomia da programação televisiva; olha quem – a televisão faz muita falta em vésperas de eleições e em momentos de crise.
Sim, podemos perguntar (com o dedo levantado) se é normal haver um comentador político que ocupe 45 minutos de tempo de televisão, aos domingos, a dizer o que acha sobre a vida em geral. Não é. Mas, sinceramente, não se pode fazer nada: Marcelo Rebelo de Sousa veio da TSF, onde ocupava uma hora a fazer o mesmo, dando notas, atribuindo classificações, eleito como «o professor». Não estão em causa os seus dotes – as suas habilidades ou a sua seriedade, a sua argúcia, as armadilhas que estende, as alfinetadas, os sorrisos, os segredos e, sobretudo, a sua notável intuição, invejável e indisputável até agora. É esse o seu trabalho. MRS é, nessa qualidade televisiva, um entertainer; ou seja, para a TVI funciona como um entertainer, ocupa 45 minutos de antena, faz subir as audiências – tem o seu preço. Contraditório? Não. Havia «contraditório» quando Santana Lopes respondia em tempo real na RTP – e, mesmo assim, a TVI esperava que Santana e Sócrates falassem.
Eu percebo, toda a gente percebe, que a ideia de um «contraditório» é justa e decente. Mas já era justa e decente quando MRS era comentador da TSF num congresso do PSD, minutos antes de descer à terra para ser eleito líder do PSD. Eu acho, repito, justa e decente a ideia de um «contraditório», seja no que for, onde for. Também acho que devia existir um «contraditório» quando Miguel Sousa Tavares fala às terças-feiras e expõe as suas convicções. E que devia existir um «contraditório» de cada vez que Alberto João Jardim fala na Madeira e é citado ou louvado pela imprensa que o governo regional paga. Para a TVI, numa perspectiva aceitável do seu ponto de vista, MRS não precisa de «contraditório» para ser um sucesso de audiências (de contrário não se explicava que o Jornal Nacional do último domingo tivesse apenas uma notícia e tudo o resto fosse ocupado com MRS).
Eu percebo o “contraditório”, finalmente, quando as pessoas falam em nome da decência, que é um valor como qualquer outro – mas que eu prefiro citar quando se fala de politicazinha. Só que, ao escolherem o seu melhor ar escandalizado quando vêm protestar contra “a barafunda em que isto está” (depois de a terem causado e de a terem autorizado), o melhor é sorrir e passar adiante. Lembram-se da polémica à volta do «Acorrentados»? Há muito tempo que, na Assembleia da República, não se ouvia tanta gente pedir ordem nas ruas, moralidade na escola, disciplina no lar, fim do massacre das classes médias. E porquê? Porque muitos cavalheiros do parlamento eram cúmplices na situação.
O que o dr. Gomes da Silva (ou, por interposta pessoa, o dr. Santana Lopes ou alguém por ele) teme não é a decência, acho eu e faço-lhe esse favor; mas o que ele quer, realmente, não é o «contraditório» (contraditório entre quem? entre dois militantes do PSD?) e talvez não seja a censura pura e simples. O que o dr. Gomes da Silva quer é que julguemos que decretar uma ponte no dia 4 de Outubro foi uma medida justa, administrativamente aceitável e politicamente louvável. Não é, não foi. Foi outra trapalhada do governo. E merece ficar, pois, com o seu melhor ar de trapalhada indecente.