novembro 19, 2004

SEJA SAUDÁVEL, 2. Deve desconfiar-se da ironia indignada. Nos telejornais foi pouco menos do que abjecta a indignaçãozinha espantada das jornalistas que assinaram peças sobre o últimos dos escândalos descobertos em Portugal: um entre cada cinco médicos é fumador, o que dá a bonita percentagem de 23%, creio. Uma vergonha, sugeria a voz da jornalista, uma vergonha. Abriu a caça ao médico-fumador. Daqui a uns tempos abrirá a caça ao médico em geral; aos médicos que comem fritos e têm colesterol no sangue, aos que jogam sueca e gostam de cozido à portuguesa, aos que ingerem carbo-hidratos e não são monogâmicos, aos que já fumaram um charuto ou lêem a imprensa da Suazilândia. Os médicos têm de dar o exemplo; não podem ultrapassar os 120 km/h nas auto-estradas nem preencher o boletim do totoloto. Daqui a pouco vão vigiar os professores que lêem o Código DaVinci ou a Playboy. Depois virão os bancários que jogam ao Monopólio. Cuidado. Eles vigiam de qualquer lugar, de todos os lugares. E a sua voz é imensa, poderosa, cheia de moral, de princípios, de segurança, de rigor, de saúde e de certezas. Eu, se pudesse, processava-os a todos, a esses vigilantes encartados; por cada inflexão acusatória, por cada ironia estúpida e cruel e filha da puta e sacristã -- e fazia-o em nome da sociedade, da liberdade dos cidadãos, contra o Estado, os moralistas, os cretinos e os polícias que ninguém encomendou. Cuidado. Há vigilantes por todo o lado.