NOITE, O QUE É?, 11. Sentar-se um homem diante das coisas e parar, para que o resto dance à sua frente como um retrato que traz preso aos olhos. Talvez isso seja o que mais acontece à noite, ou quando há um perfume preso às camisolas, uma variação qualquer naquele vento. Relva, relva verde. Varandas delicadas cheias de sombra. Insónias. São tão simples, os favorecidos do mundo, tão cheios de sorte. Tão cheios de frio, de coisas caladas.
Aviz
«We have no more beginnings.» [ George Steiner ]
setembro 30, 2003
setembro 09, 2003
E É ASSIM. Sem dramas, sem remorso: durante quinze dias, o Aviz fecha tranquilamente as suas portas, arruma as cadeiras, despeja os cinzeiros, leva dois ou três livros na bagagem, dá duas voltas à chave — e faz uma pausa.
RELIGIÃO E DIREITA. 2 Há aí algumas questões importantes que poderiam ser — com vantagem — respondidas por sociólogos e historiadores. A verdade é que não há em Portugal, actualmente, autores que se dediquem a escrever sobre religião, o que facilmente explicável por vários factores, sendo que um deles é a falta de prática religiosa e de interesse por assuntos religiosos. Argumentar-me-ão que o assunto religião não mobiliza ninguém senão por instantes. Por outro lado, sendo certo que a maioria do bloggers não é religiosa, há excepções notáveis — uma das quais é justamente o Voz do Deserto. O carácter fragmentário dos seus textos é importante neste meio: o seu conhecimento dos textos é notável, ao contrário do que acontece com a generalidade das pessoas. Outro dos blogs onde se nota essa presença do religioso é o da Ana Albergaria, o Crónicas Matinais, com um tom muito sereno, intimista e pessoal. São os dois blogs onde o tema «Deus» é mais pressentido. Só posso falar do assunto naquilo em que ele me toca, e, mesmo assim, isso daria para vários dias de comentários. Não creio que seja importante falar sobre a natureza do sentimento religioso. No meu caso, trata-se de uma opção pessoal, vivida com uma intensidade de que não sei falar e que não se pode explicar como um raciocínio (tanto mais que, como se sabe, o raciocínio coloca quase sempre Deus entre parêntesis) — e que não assumirá, nunca, um tom impositivo. Quem questionar o meu «lugar religioso», como se o conhecesse, terá de dar a conhecer igualmente o seu lugar, ou o seu não-lugar. Interrogar o sentimento dos outros do ponto de vista de um não-sentimento é uma injustiça (geralmente manifestada pela ironia cega, pelo sarcasmo). Fora disso, não há discussão. Essa é a raiz da própria tolerância, que defendo em absoluto. Mas, para haver tolerância, deve existir um ponto de encontro nesse «dicionário das religiões». Tanto o incréu como o crente podem fazer todas as perguntas (e devem fazê-las), mas é necessário que saibam do que estão a falar.
Não se pode falar da «ortodoxia» sem compreender os limites e a natureza da própria «ortodoxia». Ou seja, para se ser «reformista», «conservador» ou «liberal» («reconstrucionista») — expressões que só fazem sentido, por exemplo, no interior do judaísmo — é preciso ler, primeiro, a «ortodoxia». Só depois se lhe podem fazer as perguntas que quisermos (sobre os ritos, os dogmas, as liturgias, os textos fundadores). Trata-se de uma disciplina essencial. Depois disso podemos fazer humor, inclusive. Sobretudo. Uma religião sem riso, sem humor e sem alegria está sempre a pisar os caminhos do terror.
O tema do «Deus dos nãos» e do «Deus dos sins», trazido há pouco tempo pelo Joel Neto, por exemplo, é um dos assuntos a discutir.
Mas há uma coisa que, à partida, acho discutível: a ligação entre religião e política. A expressão «democracia cristã» causa-me calafrios. «Católicos de direita» e «católicos de esquerda» também me parecem expressões fatais. A ligação «à direita» de tudo o que é «religioso» parece-me um sinal dos tempos, mas sinal da ignorância profunda em relação à história das religiões e do sentimento religioso.
Foi bom o Nuno P. ter perguntado. Mas parece-me que este é um tema para abrir para outros caminhos.
RELIGIÃO E DIREITA. O Nuno P. do Janela para o Rio, envia-me um mail com questões sobre a relação entre religião & política:
«Há algumas verdades absolutas instituídas na nossa sociedade que eu tenho alguma dificuldade em compreender. Uma delas é a associação da dicotomia esquerda vs. direita (com a alternativa indecisos) com a dicotomia ateu vs. crente (com a alternativa agnóstico). É tida como verdade absoluta a ligação direita-crente, esquerda-ateu. Isto é assim, pelo menos no que toca à tradição cristã. Mas é aqui que me surgem várias questões, que gostava de ver debatidas aqui na blogoesfera:
a) Porque não pode um comunista ser católico praticante? A igualdade entre todos é incompatível com a fé em Deus?; b) Como é que as estatísticas demonstram que mais de 75% da população é católica, mas pelo menos metade da população vota à esquerda? Quer isto dizer que a abstenção é quase toda crente?; c) E as outras religiões, alguém que é budista, judeu, muçulmano, protestante ou outra religião qualquer, também é tendencialmente de direita?; d) Sendo assim, como enquadramos os terroristas de inspiração fundamentalista islâmica? Serão eles todos de direita?; e) E os grupos terroristas com base no separatismo (como a ETA ou o IRA)? Se querem a independência, são partidos nacionalistas, valores que são da direita, certo?
Sinceramente, eu acho que esta é uma das falácias da nossa sociedade, que a escolha religiosa, ao contrário da escolha política, pouco tem de consciente, é uma escolha mais imposta pela família e pela sociedade, do que imposta pela decisão racional de valores em que se acredita. Aliás, eu considero que a escolha religiosa é mais parecida com a escolha clubística (decisões do foro emocional/social) do que com a escolha política (decisão do foro racional). Além disto, basta olhar para a blogoesfera, acusada de ser maioritariamente de direita, para se perceber que a maioria dos bloggers não é crente (no sentido religioso da palavra). »
Já lá vamos.
setembro 07, 2003
CYMERMAN Caro João: nem de propósito. Nestas circunstâncias, quando se fala do Médio Oriente, há sempre a tendência para a piada final, a estocada final. No meu pequeno texto de ontem, sobre o Cymerman — que eu mantenho: é um repórter isento e é um homem justo e bom, além de corajoso —, corrigi a mão em relação a essa piada que poderia ter escrito; do género: «Nem todos podem ser como o José Goulão e fazer aquele tipo de comentários.» A razão tocou-me naquele momento: não, o João não acha isso. E não escrevi. Ainda bem, penso eu, depois de ter visto o teu texto de hoje. Mas a interrogação mantém-se, pelos vistos. Em relação a ela só tenho a dizer isto: o Cymerman vive em Israel e tem liberdade para visitar tudo o que quiser; e quando sentiu que não tinha, fez como toda a gente de bem que trabalha em jornais e na televisão: furou e continuou a ir onde quis. Isto faz dele um homem em quem se pode acreditar. E continuará (conheci-o de passagem, mas bastou) a fazê-lo. Fará reportagens em Ramallah ou em Be'er Sheva — não aterra no aeroporto e envia um «despacho» depois de ter lido a imprensa que leu no avião, comprada em Zurique ou Frankfurt. Quando o vi a entrevistar Yasser Arafat na SIC Notícias percebi muito mais do que isso — nas circunstâncias em que o fez, na altura em que o fez, ele sabia, eu sabia, tu sabias, que Arafat não dava entrevistas a qualquer um. Quando dá conta da devastação nos territórios ocupados, ele faz mais do que mandar um despacho, instalado no Hotel Tal (a dois passos do centro de imprensa), e rodeado dos jornais do dia: ele mostra, filma, entrevista. E isto é um elogio a Cymerman, à SIC Notícias e ao jornalismo que ainda sobrevive para contar.
MARAVILHAS DA IMPRENSA. O sempre bem informado (e muito noctívago) Paulo Gorjão, acaba de publicar no seu Bloguítica Nacional (o blog que mantém a par do Bloguítica Internacional — e que muitos comentadores deviam frequentar para se cultivarem), um interessante texto da agência InterPress sobre os média portugueses e o papel dos políticos enquanto comentadores na imprensa e na televisão. Vale a pena ler.
LIVROS QUE ARDEM. O Bicho Escala-Estantes é uma das referências para a blogosfera portuguesa. Muitas vezes seguimos a vida da sua livraria (eu tenho pena de não ir lá, fica-me fora de mão...) e pertencemos às suas estantes. Depois de um texto sobre «Duas linhas do sentido da vida», em que cita a passagem de um salmo (139:23 e 24), tem outro texto sobre os «livros que ardem». O seu texto não tem nada a ver com o assunto, mas «livros que ardem» é uma expressão que se pode usar para certas páginas que nunca mais deixam de nos queimar. Lembrei-me de Isaías: «O nosso Deus é um fogo devorador.» (Isaías 9:1,8) Há livros assim.
UM POST REACCIONÁRIO. Papelaria Fernandes, no Centro Colombo, em Lisboa — preciso de comprar um caderno. Na pequena «ilha» onde ficam as caixas estão quatro meninas, mas só uma caixa a funcionar. Há mais um funcionário na escadas. Estou na fila para pagar, em terceiro lugar. Olho para trás e conto: estamos doze. Somos doze clientes, uma caixa a funcionar, quatro meninas lá dentro, três delas conversam e tratam de assuntos metafísicos. Os frequentadores, pacientes, pedem — por favor — para pagar. E recitam versos do Livro de Job.
ACHO INJUSTO, MAS... Acho injusta a suspeição lançada pelo Terras do Nunca sobre o correspondente da SIC em Israel, Carlos Cymerman. Cymerman entrevistou Arafat nos últimos meses, esteve em Ramallah, atravessou os muros de Tulkarm, fala as duas línguas da região, entrou em Gaza nos territórios do xeique Yassin, viajou com frequência para Hebron, filmou em Raffah, e é um homem sensato e corajoso. A sua observação de que Cymerman é o rosto dessa «informação pelos olhos, pela voz, pela interpretação de pessoas que vivem em Israel, que nos dão a visão de Israel, que são Israel» é injusta. E Cymerman, que é esse homem sensato e corajoso — e, além disso, bom e justo — também não o merecia.
AMIGOS DE OLIVENÇA. Eu tenho pela população de Olivença uma sincera e desajustada admiração. Conheço a cidade, que acho simpática — para a Extremadura... — e a sua biblioteca pública é muito interessante. Por isso, acho que são felizardos: têm melhor assistência médica do que nós, o sistema de ensino é melhor, estão mais próximos de Cáceres (que tem uma plaza mayor bonita, melhores cervejarias e restaurantes do que se supõe, livrarias, uma universidade muito aceitável, campus universitário decente e um grau de desenvolvimento que nunca pôs em causa a pacatez da cidade) e de Madrid, e dispuseram-se a consertar a ponte luso-espanhola sem estar à espera da burocracia portuguesa. Proponho, portanto, que se forme uma Liga dos Amigos dos Cidadãos de Olivença, cujo objectivo é impedir que se pense num retorno do seu território ao domínio português. Ou seja: que garanta que podem continuar felizes.
O REGRESSO ÀS AULAS. O mundo não está perdido, mas anda idiota. Este ano, depois de ler dois dossiers que a imprensa dedicou ao «regresso às aulas» e aos traumas psicológicos que as crianças portuguesas se preparam para sofrer, pensei que ou o país tinha ensandecido ou que o Verão estava a ser longo demais. Não era: o ensandecimento é geral e o Verão só foi um pouco mais desastroso do que o habitual (o generoso Carlos do Contra-a-Corrente já falou do assunto com seriedade). Muitas vezes tenho medo de estar a ser frio em relação ao assunto — não se trata de crueldade, apenas de frieza. Tanto a imprensa como a televisão falam desse novo fenómeno que é o stress pré-escolar. Eu sofri bastante com isso: preferia jogar à bola ou passar as tardes no rio. Não era possível, explicou-me o meu avô, que era um personagem sensato. Não era. Setembro era um mês assim-assim. Outubro era desesperante, mas o stress passava duas horas depois da primeira aula. Hoje, a situação parece-me diferente e uma vasto número de confrarias profissionais, desde psicólogos a gerentes de hipermercado, de educadores a sociólogos e jornalistas estagiárias, estão convocados para discutir, com pinceladas de drama, o «regresso às aulas». A culpa é do dr. Spock. Eu li o dr. Spock, e os pais compreendem-me: é um livro útil, como o dicionário de Latim ou o elucidário da Oxford. Serve para sabermos mais sobre as gripes, as otites, as febres, os primeiros horários alimentares dos nascituros e outras matérias metafísicas — e está organizado em parágrafos. Tudo pára aí. O dr. Spock cumpriu a sua função. A seguir, no entanto, uma fantástica horda de opinadores acha que há uma grave situação de stress nas nossas crianças, motivada pelo «regresso às aulas». Este tom de proteccionismo excessivo e de dramatização de todas as metas e rituais de iniciação dá vontade de sorrir, transformando a ansiedade pelo regresso à escola em drama e assunto para trauma. O objectivo é transformar os pais actuais em «agentes da culpa» e em «fabricantes de crianças traumatizadas» por coisas tão simples como voltar à escola ao fim de três meses de excelente e feliz malandragem. Para esta gente, a natureza está mal feita: devia ser sempre Verão e os pais deviam frequentar cursos de formação permanente e assistida. Há umas almas generosas, psicólogos e sociólogos sensatos, que ou se escusam a comentar o tema ou, comentando-o, tentam chamar os cidadãos à razão. Em vão: basta folhear as revistas da especialidade para perceber que — com esta gente — os pais vivem no fio da navalha, porque tudo pode traumatizar as crianças, desde uma derrota do seu clube até uma ironiazinha dos amigos, de uma ordem para desligar a televisão até à obrigação de fazer refeições a horas certas. Uma vez, numa «reunião de pais» com os professores da escola, uma mãe cultíssima, que tinha lido Marcuse e um resumo do dr. Freud, sugeriu que o facto de a bata do seu filho estar sempre suja de volta para casa queria dizer — quem sabe — que o seu filho estava a viver um trauma que o levaria a sujar a bata de propósito. Outra, ao fundo da sala, achou que a própria utilização da bata poderia ser investida de uma função traumatizante. Compreendi a professora, sitiada por tanto manual de piscopedagogia. E é assim. Tudo se explica.
setembro 05, 2003
UM LONGO SÁBADO. O mundo devia fechar de vez em quando. Nem sequer para balanço. Só para que o vento, chegado do alto da terra, nos obrigasse a respirar. Seria um longo sábado de Verão.
setembro 04, 2003
NOITE, O QUE É?, 10. Oiço o ruído dos canaviais não muito longe. Pequeno vento a meio da noite, pequeno vento. A única tempestade, ninguém a suspeita. A meio da noite adormece-se a pensar nesse perfume.
NOITE, O QUE É?, 9. Dizem-se mais coisas. Como é que pôde haver tanto silêncio, antes? A meio da noite não faças muitas perguntas, o mundo muda de lugar com muita facilidade. Um dia estaremos num país; passaremos a fronteira ao entardecer, à procura das estradas. Uma voz. Postais ilustrados. Segredos. Respostas à procura de perguntas. Viver de passagem, a meio da noite, só a meio da noite, o fim do Verão leva tudo, há-de trazer tudo no mesmo instante.
FUNDAMENTALISMO. O José Augusto Macedo do Couto, do Porto, junta-se aos outros leitores do Aviz e escreve um mail em defesa dos Macintosh — os que estão imunes aos vírus dos PC. Meu caro J.A.: os Mac são uma opção de vida propriamente dita, uma vaidade essencial. Somos capazes de escrever em qualquer papel, mas gostamos de um realmente bom. É a vida.
E, PORTANTO. E, portanto, eu devia isto ao Tiago O. C.. O seu blog, o Voz do Deserto é um daqueles que me aproxima dos outros, de todos os outros. Provavelmente porque os textos do Tiago são de uma clareza só disponível para quem se senta à beira do deserto, o lugar onde se pode recomeçar. Há em certos textos do Tiago — sobre Deus, sobre o silêncio — um radicalismo amável e muito sério. Ele não esconde o que o empurra, aquele vento de dúvidas que esbarra na necessidade da fé ou da cultura. Tem um conhecimento superlativo, excelente, do Novo Testamento — e mesmo quando cita São Paulo (o meu desgosto, mas o Tiago compreenderá) fá-lo com um grau de tolerância que o autor das epístolas nunca possuiria. O que prova que, quando escolhemos aqueles que nos acompanham na viagem, não temos necessariamente de designar os que nos são mais iguais, mas os que completam as nossas frases (para que não caiam no inferno da previsibilidade) e mais nos interrogam sem sair do seu lugar (para que tenhamos albergue em qualquer ponto do mapa). Não é essa a diferença entre «eleitos» e «escolhidos», certamente — mas aproxima-se. Eis porque o Voz do Deserto faz parte das minhas afinidades essenciais.
O ERRO DE LÉVI-STRAUSS. Acho que esta discussão, morna e tranquila, é produtiva. A onda, tendo começado pelo Avatares de Desejo, passou por aqui, no Aviz, e depois para o Companhia de Moçambique (que assinalou o silêncio da antropologia diante do colonialismo, vencida pela sua tendência culturalista») e para o Dædalus. O Francisco Curate, deste último, assinala que «as posições político-ideológicas facilmente invadem as ciências, assumindo essa irrupção uma conformação difusa e límbica, que, muitas vezes, torna o discurso científico refém de apropriações posteriores indevidas» — o que permite recordar a «apropriação» que a extrema-direita francesa fez de algumas ideias de Lévi-Strauss. Também o Bruno Sena Martins tinha escrito que «as suas ideias foram apropriadas por grupos xenófobos dos países europeus», o que torna a coisa mais complexa ainda, para quem entende que estamos diante de uma perversão quase absoluta. Se bem entendo, pode haver aqui, velada, a sugestão de que esse discurso de Lévi-Strauss em 1971 (na conferência da Unesco) pode bem ter sido «um erro», ao permitir que se abrissem brechas por onde entrou a hidra da xenofobia e do racismo. Ora, o que me parece essencialmente útil (desculpem usar a palavra) nesse discurso é o facto de Lévi-Strauss ter chamado a atenção para a «desmoralização das culturas», arrastadas pelo relativismo (de que terá sido intérprete). O Francisco Curate define muito bem esse estádio: o da suspensão dos «juízos acerca da diferença cultural». É isso que acho assustador — o receio da «polícia multicultural» que pretende suspender todo e qualquer juízo e que pode chegar a interditar a discussão sobre a excisão feminina, por exemplo, em nome dessa convivência sem confronto.
As questões que o Rui M. P. colocou são muito precisas e concretas: no campo do colonialismo (e do sistema colonial português) não se coloca a questão desse confronto, mas sobretudo do poder, da arbitrariedade e da violência — e esse campo foi bastante trabalhado nos seus estudos. Já do ponto de vista europeu, ou ocidental, há uma perseguição ao «etnocentrismo» que, se abre o caminho a esse contacto de culturas, também impõe — muitas vezes militantemente, como uma obrigação moral — a diluição da própria cultura, como se quisesse desfazer-se de um sentimento de culpa, de um remorso (o remorso do homem branco). Daí eu ter usado a expressão dormindo com o inimigo ou mesmo sedução pelo inimigo (o termo inimigo é essencialmente poético).
DICIONÁRIO DO DIABO. O Pedro Mexia e o Dicionário do Diabo regressaram à net, o que é uma muito boa novidade. Aí está, também com o Pedro, a prova de que a dúvida é um património flutuante.
P.S. - Vejo que ainda não foi desta vez que o Pedro comprou um belo Macintosh. Portanto, podem acontecer mais acidentes ao Dicionário. Quem te avisa...
DÚVIDA. «A dúvida, para a esquerda, é um património», diz o RandomBlog, de Tiago Mota Saraiva. Não será para todos? A direita duvidará menos do que a esquerda? A esquerda duvida mais? Recebo de F.M. um mail sobre a citação que escolhi no cabeçalho — de George Steiner. «Porquê essa citação?» Não sei. Não a encontrei num livro, mas citada num artigo sobre «as dúvidas de Steiner» — se não tivéssemos dúvidas, não tínhamos um blog. É essa sensação de dúvida que toma conta da frase: «We have no more beginnings.» Se pudéssemos começar tudo todos os dias não valia a pena ter dúvidas, uma certeza por dia bastaria; no dia seguinte, tudo se poderia reconstruir e esquecer. Mas a ideia de que nada se pode esquecer é mais dramática, é o que nos separa do brutal e do inumano. Por isso, quando encontro a frase do Tiago M. S. procuro na memória todas as certezas da esquerda, todas as coisas inquestionáveis que defendeu — e vejo como ruíram, como desapareceram com o tempo e com o fim do optimismo histórico. E vejo as certezas da direita (sim, Deus, Pátria) e vejo como ruíram. E como os patrimónios são coisas destinadas a ruir, a enriquecer, a perder e a esquecer. É por isso que a frase de Steiner me comove, como se a percorresse uma ventania da história, uma espécie de discordância com a corrente maioritária do tempo, uma lembrança melancólica do fim. E fico contente por ela suscitar perplexidades; as mesmas que deixou em mim.
setembro 03, 2003
CHOREM, CALÇADAS DE ANGRA. [OU: QUINTA INTERRUPÇÃO POR CAUSA DO FUTEBOL.] Reparo, com grande espanto, que o Não Esperem Nada de Mim, apesar de manter a cor verde, não actualizou o seu blog depois do FC Porto-Sporting. Anteontem, tinha profetizado que o Aviz não escreveria nada nem terça, nem quarta-feira, por causa de uma derrota futebolística. Cá estamos, afinal, depois de uma vitória. Como o inestimável líder tinha profetizado, «alguém ia ter de pagar», depois de Milão. Eu gosto de gente que paga a pronto. O Sporting é amigo. Entretanto, o Joel Neto lê parágrafos perigosos de Bukovski e continua a percorrer as calçadas de Angra com versos e lexicografia. Assim é que é.
LÉVI-STRAUSS. O Bruno Sena Martins publicou um longo texto sobre multiculturalismo, «a questão racial e Lévi-Strauss», na sequência de outros textos aparecidos no Aviz e no Companhia de Moçambique, onde ambos nos referíamos a um texto seu, anterior. O Daedalus também se referiu ao assunto. Amanhã lá vamos.
ISTO NÃO FICA ASSIM, JONI. A «questão Joni Mitchell» continua na net. A Ana Anes diz que, enfim, também tem algumas reticências em relação à senhora, mas recomenda uma canção: «Como não há regra sem excepção, aconselho-o vivamente a ouvir o tema “A case of you”... Eu também não gostava... até...» Vou ouvir. O sempre atento Mário Filipe Pires, por seu lado, fala de «4 discos ou apenas 2 numa selecção mais reduzida. Miles of Aisles (ao vivo - 1974, resumo das melhores músicas feitas até aí), Hejira (para mim o melhor disco dela), Mingus (experimental mas sedutor) e Shadows and Light (ao vivo, outra selecção das melhores músicas). Numa selecção mais reduzida ouça apenas os dois ao vivo. Depois disto, infelizmente, acho que os discos perderam muito interesse, mas estes justificam o quanto gosto da sua música.»
setembro 02, 2003
RELATIVISMO & ANTROPOLOGIA, 2 Como disse, a questão (a relação da antropologia com o colonialismo — onde se nota, como percebo do texto do Rui M. P., a chegada tardia do conceito de dominação para alterar a visão culturalista) ultrapassa-me largamente. Já não sou indiferente à pontinha do véu levantada por Bruno Sena no seu Avatares de um Desejo quando retoma o texto de Lévi-Strauss em 1971 (concordo com o sinal de desconfiança manifestado pelo Rui em relação ao «principal mentor de um relativismo dúbio») como uma provável antevisão do debate sobre a «condição racial» urbana na viragem do século — e a que os «estudos de género» emprestaram a sua face mais risível e, de facto, detestável. Nesse sentido, esse discurso de Lévi-Strauss soa-me bastante a mea culpa (pelo «relativismo dúbio» que ajudara a criar?), e imagino a horda de funcionários e antropólogos da Unesco a tentar calá-lo durante a conferência. Idênticas cenas ocorreram na conferência sobre a «condição feminina», promovida pela ONU, no México, em 1976, quando um delegado começou a falar da situação da mulher nos países árabes.
Nesta caso, há dois universos diferentes: o do racismo no sistema colonial moçambicano ou português (basta conhecer uma pequena amostra do material acumulado pelo Rui M. P. ao longo dos anos) e o do relativismo cultural, a que associei a expressão (dúbia, claro) «dormir com o inimigo». No essencial, a citação de Lévi-Strauss continua a parecer-me útil para a conversa (espero que o Bruno Sena Martins continue, como prometeu, o seu texto sobre — ah, curioso título — «o erro de Lévi-Strauss»).
RELATIVISMO & ANTROPOLOGIA. O Companhia de Moçambique, do Rui, meu Amigo e autor de um dos blogs de referência nas «ciências sociais», dedicado à história do colonialismo em Moçambique, comentou o pequeno texto que ontem publiquei sobre Lévi-Strauss. Ou seja, sobre a chamada de atenção que o Bruno Sena Martins deixou no Avatares de Desejo para esse discurso de Lévi-Strauss. O texto do Rui chama a atenção para aspectos que me interessam (a memória colonial), mas que, claro, me ultrapassam largamente. Fica aqui o texto completo, porque acho que vale a pena lê-lo e discuti-lo:
••••• A propósito de uma polémica evocação de Lévi-Strauss em Avatares de Desejo o meu amigo Francisco no seu Aviz refere que «as dúvidas e questões levantadas por Lévi-Strauss são muito actuais e acho que é um bom tema. Lévi-Strauss manifestou-se contra "o abuso de linguagem com que se confunde cada vez mais o racismo, definido no seu sentido estrito, com atitudes normais, mesmo legítimas e, em qualquer caso, inevitáveis". A partir daqui, um saltinho ao "multiculturalismo" dá-me sempre a ideia de que a expressão "dormir com o inimigo" é ainda mais dúbia». Vamos por partes, Francisco. Muito, muito antes da moda do multiculturalismo, evocava-se o relativismo cultural. Se este fosse o lugar adequado para uma arqueologia dos conceitos (tão do agrado dos académicos) depressa se descobriria uma genealogia extensa, envolvendo outros conceitos associados por relações de parentesco (conceptual) muito próximas, por vezes mesmo incestuosas. Quando, numa conivência assumida, a Antropologia se envolveu nos processos de gestão colonial, julgou poder desempenhar um papel algo filantrópico junto das populações dominadas; tudo se passaria como se a situação colonial não pudesse escapar da sua inevitabilidade e o antropólogo apenas destinado a tentar torná-la num mal menor, concorrendo, com as autoridades administrativas, para o bem-estar das populações submetidas. Ao assumir o colonialismo como uma mera situação de contacto cultural, a Antropologia limitou-se, nesse campo, a nada mais estudar que não fosse o ajustamento mecânico das culturas confrontadas pelo processo de dominação colonial. E mesmo reconhecendo que esse ajustamento produziria mudança social, ignorou a sua dimensão de violência e exploração. Nem mesmo o culturalismo americano dos anos 30 do século XX, na sua afirmação de diversidade e relatividade cultural, procurou conhecer e descrever essas tais «circunstâncias históricas» a que se referia Ruth Benedict quando, a propósito da expansão da civilização ocidental, analisava as circunstâncias que presidiram ao desaparecimento da consciência da diversidade e da relatividade de costumes e modelos sociais. Só após a 2ª Grande Guerra, com o subsequente despontar dos movimentos nacionalistas nos territórios coloniais, se procedeu a uma reavaliação do discurso antropológico em situação colonial. O colonialismo não poderia mais ser entendido nos termos de uma mera administração de uma realidade empírica, fechada sobre si mesma, à revelia de condicionalismos — sobretudo exógenos — de natureza económica, política e social. Descobriu-se, então, uma componente fundamental — melhor dizendo, fundadora — do sistema: a dominação. Toda uma série de operadores que lhe estavam associados, como o «contacto de culturas», a «aculturação» e o «sincretismo» deixaram de ser entendidos como manifestações de relações simétricas — give and take — para passarem a incorporar, na sua percepção, práticas dominantes e práticas dominadas. Assim sendo, meu caro Francisco, a utilização dos conceitos de relativismo cultural e multiculturalismo carecem de algum cuidado. Claude Lévi-Strauss foi, convém que se diga, o principal mentor de um relativismo dúbio. Trabalhando sobre materiais provenientes de contextos coloniais — e trabalhando brilhantemente — sempre contornou, quando não ignorou, a situação colonial, mesmo quando muitos dos seus discípulos (Jean Pouillon, Patrick Manget e mesmo Dan Sperber, entre outros) já afrontavam o «problema». Alguns anos antes dessa declaração na conferência de abertura do Ano Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial (1971), abordava a situação colonial [1966, «The Scope of Anthropology», Current Anthropology, vol. VII, (2)], numa das suas raras asserções sobre o tema, nos seguintes termos:
«Se o colonialismo não tivesse existido, o desenvolvimento da antropologia teria sido pelo menos retardado; mas, talvez, também a antropologia não tivesse sido levada, como se tornou o seu objectivo, a questionar o Homem integralmente em cada um dos seus exemplos particulares. A nossa ciência atingiu a maturidade no dia em que o homem ocidental se apercebeu que nunca poderia compreender-se a si próprio enquanto existisse uma única raça ou povo à superfície da Terra que ele tratasse como um objecto. Só então pôde a antropologia assumir-se como aquilo que é: um empreendimento de reassunção e remissão do Renascimento, de molde a difundir o humanismo a toda a humanidade».
Afinal, qual o lugar do colonialismo na História? Explicar-se-ia por uma qualquer espécie de «relativismo cultural» ou «multiculturalismo»? E qual a verdadeira dimensão destes conceitos? •••••
setembro 01, 2003
AVATARES. O Bruno Sena Martins, que acaba de elogiar José Mourinho citando Max Weber (agradecimentos da casa), publicou um texto sobre Lévi-Strauss e a sua intervenção (de 1971) na conferência de abertura do Ano Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial, organizada pela Unesco. Ora, as dúvidas e questões levantadas por Lévi-Strauss são muito actuais e acho que é um bom tema. Lévi-Strauss manifestou-se contra «o abuso de linguagem com que se confunde cada vez mais o racismo, definido no seu sentido estrito, com atitudes normais, mesmo legítimas e, em qualquer caso, inevitáveis». A partir daqui, um saltinho ao «multiculturalismo» dá-me sempre a ideia de que a expressão «dormir com o inimigo» é ainda mais dúbia. Acho que o Bruno deve continuar com o texto.
P.S. - Fico contente por alguém ter reparado nessa rapariga do Belize, Marion Jones.
NOITE, O QUE É?, 8. A meio da espera, fechar os olhos e não ouvir nada, nada, nem os ruídos da noite. Dessa maneira, as coisas vêem-se muito melhor: um muro, as árvores, a cerveja, o riso, uma casa, um telheiro onde não chove, todas as coisas que não têm nome e são uma vida inteira por acontecer. Fechar a luz. Fechar os olhos.
QUARTA INTERRUPÇÃO PARA FUTEBOL. Mesmo não sendo benfiquistas (eu não sou, portanto) leiam o texto de Luís Filipe Borges, no Desejo Casar. É um grande momento de futebol.
TERCEIRA INTERRUPÇÃO PARA FUTEBOL. O Joel lançou o aviso: leiam o Aviz enquanto é tempo, «hoje e amanhã, porque terça e quarta-feira não há posts para ninguém. É sempre assim quando o FC Porto perde...» Extraordinário. Suspeito que na quarta-feira lhe vou ler uns parágrafos do Bukovski.
NÃO ESPEREM NADA, 2. A ideia de perguntar às pessoas como leram Os Lusíadas, este ano interpretada pelo Expresso — é boa. Eu só li Os Lusíadas na faculdade — escapei à «epopeia» pelo Liceu fora, o que foi mau, mas havia muitos professores que acharam Camões «de certo modo» dispensável, o que foi ainda pior. Quando acabei de ler Os Lusíadas tinha vinte anos e senti-me outro: percebi que acabava de garantir que não caía na tentação de me associar à imensa legião de portugueses que, quando lhes perguntam por Camões, dizem sempre «sim, mas prefiro a Lírica» (aquela parte que vem nas antologias, como se sabe). A verdade é que Os Lusíadas é uma obra maior, fantástica, um poema perfeito, evocativo, onde há lugar para tudo. Simplesmente, quando as pessoas se põem a falar sobre «a nossa epopeia», com aquele ar de seriedade rebuscada, dão sempre o ar de terem ido (sobretudo quando lhes dizem que o depoimento é para ser publicado no Expresso) ler os historiadores, os gramáticos, Eduardo Lourenço, os astrónomos, Petrarca e, alguns, até os melhores momentos de Os Lusíadas propriamente ditos. Já se discutiu, na «blogosfera», o que para aí vai de seriedade bibliófila (aliás, estão aqui — na «blogosfera» — alguns dos leitores mais honestos que conheci), de gente que já leu todos «os livros do cânone» e que passou a adolescência a ler a Recherche. Com Os Lusíadas passa-se coisa parecida. Aquela dimensão de epopeia e de épica está correcta, mas a tradição republicana transformou-a em «versão heróica», ribombando de nacionalismo e de patriotismo — mas o Portugal de Os Lusíadas acabou ingloriamente no século XVII. Pouco dele sobreviveu, e o que sobreviveu é o pior de tudo. A ideia de uma «epopeia nacional» não é peregrina (só li o Kalevala finlandês e as melhores páginas do Edda e da tradição islandesa, de que traduzi os poemas do Havámal), mas preferia que Os Lusíadas fossem lidos como o poema maior que é, sem ditirambos patrióticos. Isso é uma coisa — completamente pacífica, suponho. Outra é o que as pessoas dizem, no seu infinito desejo de seriedade e sisudez, a propósito do modo «apaixonado», «apaixonante» ou muito erudito como leram Os Lusíadas; nem o camiliano Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda faria tanto, recitando clássicos aos chafarizes de Lisboa.