julho 31, 2003

AS CÂMARAS & OS LIVROS. Um dia destes (em Março), em Díli, comprei uma série de livros; minto: eram aí quinze. Uma primeira edição do Camões de Oliveira Martins, as velhas edições ilustradas e muito bem encadernadas de Swift (As Viagens de Gulliver, sim), Mark Twain, dois Oliveira Martins mais (as questões africanas e a ínclita geração, que tema...), até Silaampäa, o finlandês, mais um Camilo que teria funções relaxantes no voo entre Denpaasar e Singapura (outra história para um dia destes). Era uma feira do livro — guardei para o último dia essas compras, depois de os estudantes timorenses e os professores portugueses terem levado o que queriam a preços que iam de 50 cêntimos a 1 dólar (sabem o arrepio de indignação que é ver os funcionários da embaixada da China levarem dez exemplares do novo Dicionário da Academia a 10 dólares o volume?; ainda se fossem soldados portugueses de Aileu ou de Maubisse, ou professores de Lospalos...). Por 50 cêntimos de dólar lá trouxe as raridades. Vinham carimbados: Biblioteca Calouste Gulbenkian de Carregal do Sal. Todos. Alguns, além da cota, traziam ainda os registos de empréstimo; o último leitor interessado em conhecer as opiniões de Oliveira Martins sobre África requisitou o livro em 1964.
É evidente que o gesto de solidariedade para com os leitores de Timor foi simpático (os livros foram oferecidos ao Instituto Camões), por parte da Câmara de Carregal do Sal. Mas, livrar-se assim de raridades bibliográficas mantém a mesma pergunta de há pouco: o que fazem as Câmaras com os livros?
Portanto, se alguém me pedir para ler esta edição do Tom Sawyer, já sabe: não o roubei da biblioteca de Carregal do Sal, apesar de ter lá a fitinha da cota mais os carimbos e o registo dos seus empréstimos — comprei em Díli. É onde chega o braço da lusofonia.

O SR. MACHADO DE ASSIS AO TELEFONE. Evidentemente que ri um pouco com o deslize dos serviços municipais de Lisboa quando o Textos de Contracapa contou a história: ter recebido, na Dom Quixote, um cartão a agradecer o envio de Dom Casmurro — dirigido ao Sr. Machado de Assis. [Os Marretas imaginaram também que a Câmara do Porto agradeceria o envio de livros de Camilo, mas não sei; Camilo está morto por toda a cidade] A gente imagina aqueles «serviços competentes», o rumor dos teclados de computador, o folhear de processos, os telefones a tocar — que saberão os serviços competentes de Machado? [É claro que isto tem graça por causa dos concertos de violino de Chopin, toda a gente sabe...] Um dia, um dos piores treinadores de sempre da selecção brasileira de futebol, Wanderlei Luxemburgo, citou Goethe dizendo que se tratava de um autor francês que «só dizia besteira». Compreende-se. A Câmara de Lisboa não é versada em literatura brasileira e eu entendo; noventa por cento do país também não sabe quem é Machado, noventa e nove por cento não sabe que o próprio Eça o olhava de alto — e devia murmurar: «Aquele preto lá do Brasil...» —, não lhe respondia aos bilhetes e desdenhava de um «moreno» que tinha lido os mestres e escrevia melhor do que eles. Mas os «serviços competentes» trabalham do fio da navalha, eu imagino: chega um livro dirigido ao presidente; eles sabem que o presidente dificilmente passará os olhos pela capa, quanto mais pela contracapa; portanto, que diabo — e são assim as coisas da burocracia —, agradeçamos o livro ao autor, os «serviços competentes» também não têm de ir à contracapa. Os «serviços competentes» agradecem os livros, sim. Mas fica uma pergunta: onde irão eles parar?

SARAH. A Sarah A. começou o seu blog: Espuma dos Dias. Tem, no «frontispício» (como nos livros) um verso de Manuel António Pina: «Hoje sei: escrevo contra aquilo de que me lembro.» Boa escolha, muito boa, para começar.

julho 30, 2003

ORA AÍ ESTÁ. Resposta interessante, a de Filipe Moura, no Blog de Esquerda sobre a pequena questão Boaventura Sousa Santos / Alan Sokal / Miguel Portas, que este último levantou no Diário de Notícias: «Para tranquilizar o Miguel Portas, Sokal situa-se fundamentalmente do “nosso” lado da barricada e argumenta com elevação, algo que não se pode dizer de muitos dos cientistas sociais que o atacaram. No próximo dia 31, em Lisboa, realiza-se no âmbito do XIV International Congress on Mathematical Physics, um debate que reúne Boaventura, Sokal e mais cientistas.»
O que diz respeito a Sokal e à querela com as ciências sociais tem sempre relevância. A maneira como se rotula Sokal da forma mais leviana depois da publicação do seu Imposturas Intelectuais assemelha-se bastante a perseguição pura.

julho 29, 2003

A TERRA TREMEU NO ALGARVE. [Inspirado pelo Terras do Nunca] É engraçado como a terra treme em todo o lado, de repente. O J. tremeu com ela? Que seja. Há muito tempo que não oiço a sua gargalhada, que indispunha tanta gente e alegrava outra tanta. Com o riso, treme a terra e tremem os corredores da sua redacção. Treme o mar. Treme o Algarve (mesmo eu, que não vou ao Algarve, tremo com ele). E, agora, uma pergunta: era mesmo verdade a notícia? Vamos beber uma cerveja? (Mas só eu é que tenho o direito de desaparecer depois de uma cerveja...)

AMOR E ASSIM, 5. Leio no Blogue dos Marretas, escrito pelo Statler: «Pergunta sobre os blogues e os bloguers: “Vocês escrevem sobre a vossa vida intíma?” Respondo: “Os que a têm não.”»

BRASIL, LULA. O Esquina do Rio escreve sobre um texto de Augusto Nunes, publicado no sempre imprescindível No Mínimo a propósito da figura de Oswaldo Aranha e do desencanto sobre Lula. Diz o Manuel: «Percebe-se como o desencanto com o folclore de Lula começa a nascer um pouco por todo o lado, e em primeiro lugar pelos jornalistas e opinidores que o louvaram em tempos.» Ora bem. Esse desencanto já estava por aí, e não tem a ver com a figura de Lula, uma espécie de «redentor dos tempos modernos brasileiros» — basta ler certos textos de Arnaldo Jabor, por exemplo, desde o princípio. O problema da «imagem de Lula» em Portugal, por exemplo, é que a esquerda quer que tudo «dê certo», não por causa do Brasil propriamente dito, mas para redimi-la das asneiras praticadas aqui. Lula tem um peso extraordinário às costas — uma falange imensa de fracassados vê em Lula a última oportunidade para demonstrar que as coisas podem «dar certo». E uma vasta multidão de excluídos, humilhados e pobres — pobres mesmo, pobres e sem casa, pobres e sem futuro, deserdados mesmo, e não intelectuais de esquerda da Unicamp e da USP — espera o mesmo dele. Isso é injusto para Lula. Mas as reformas do governo PT são, ou não são, as que o PT chumbou quando foram apresentadas pelo governo de FHC? Por isso, o desencanto é fatal: porque tem dois lados. O dos que acham que Lula é tímido nas reformas e está apenas a continuar o programa de FHC, a aplicar ideias de José Serra — e que devia emitir, como disse a fantástica senadora Heloísa Helena, um mandato de captura internacional contra o FMI; e o dos que acham que o espectáculo do PT, da suas alianças, de Lula a jogar futebol, das ameaças de Stédile, do novo folclore das «estatais», da degradação do Ministério da Educação, da governamentalização progressiva das agências de controle energético, etc., — só vai contribuir para que «não dê certo». Esse é o drama, caro Manuel.

AMOR E ASSIM, 4. Escreve o Bruno Sena: «Abrupto dá o tom das ausências, Guerra e Pas denuncia-o, Aviz fala-o. Acho que esta era uma inevitabilidade, um prenúncio há muito augurado entre murmúrios e silêncios de ordem vária. Diz Guerra e Pas: “Não tenho a certeza, mas julgo que nunca vi amor na blogolândia.” Em boa verdade eu nunca vi outra coisa. Deambulei por milhares de linhas e bytes que se têm escrito, e tenho testificado nos conluios de palavras que a nenhum tipo de debate, confissão ou relato tem havido escusa. A blogolândia abraçou O Meu Pipi, desacralizando-o como limite, discutiu a política, o sexo, o celibato, os livros, Deus, os mails ansiados, as viagens, as coisas que não voltam, as pinturas, a sedução, as músicas, a guerra, a paz, a solidão, a fnac, a lux, as conversas de café, as estranhas épocas do ano… Sejamos sinceros, o amor não foi apenas um eco murmurado na lasciva promiscuidade de posts. O amor foi um contorno laboriosamente desenhado, um aprimorado desígnio de declarações, o lugar sagrado posto entre sionismo, islamismo e ateísmo, enfim, um artefacto discursivo toldado e cingido pela complexa orgânica de um silêncio. De facto, a nossa cartografia não alcançou tal rigor para que o mapa do império tenha o tamanho do império (Borges), mas a poética da sede imaginária está já firmada numa espécie de linguagem do exterior. O amor é, por isso, a única coisa de que sempre falámos.»

E, DEPOIS. Depois, dizer que concordo em absoluto com o que a A. A. escreve esta manhã sobre isso mesmo no Crónicas Matinais sobre o assunto. Estou um bocado farto — e isto não tem nada a ver com o Jorge , insisto, para não haver mal-entendidos — dos especialistas em Médio Oriente formados pela RTP, pela TVI e pelas reportagens sobre as «fábricas de heróis».

LER, FINALMENTE, O QUE LÁ ESTÁ. O Jorge Marmelo diz várias coisas na resposta à minha resposta sobre a carta do dr. Freud sobre «o estado sionista». A partir de certa altura, no meu texto, escrevi «e isto não tem nada a ver com o Jorge»; só nessa parte falei de «fazer batota» — portanto, não tinha nada a ver com ele. Não acho simpático que, pegando nas minhas palavras em defesa do estado palestiniano [«um estado palestiniano democrático, onde as pessoas vivam decentemente, façam negócios, vão às escolas e às mesquitas, frequentem a praia e escolham os seus representantes»], me acuse de «fazer batota». Não fiz — e não é com o Jorge que vou fazer. Sobre esse direito, o Jorge diz que «parece que nem o Francisco o contesta». Se tiver lido os meus textos sobre o assunto, verá que nunca isso esteve em causa. Nunca. E quando escrevo «nunca», é «nunca» que eu quis dizer. E sobre isso, como escrevi ontem, «essa táctica, comigo, não pega». O problema é que, neste debate geralmente inquinado sobre o Médio Oriente, nunca se defende uma coisa sem usar adversativas [«Defendo isto mas também acho isto»]. Por mim, não preciso de usá-las.
Mas acho estranho que o Jorge fale das «alegadas» más-intenções do Hamas e da Jihad. Acho estranho porque «alegada» é a palavra mais hipócrita do jornalismo actual. Eu não a uso quando falo de ocupação da Cisjordânia (sejam quais forem os motivos), quando falei (nas várias reportagens que escrevi — e que são tudo menos parciais) da violência do exército ou do proto-fascismo dos partidos haredim de Israel, quando escrevi a palavra «terrorismo» aplicada aos atentados. Esperava retribuição. É a vida.

RIBACÔA. Descubro que há um blog sobre as terras de Ribacôa. De vez em quando, tenho saudades das encostas de xisto. E de Vila Nova de Foz Côa, onde nasci. E do Pocinho, onde passei toda a infância.

julho 28, 2003

AMOR E ASSIM, 3.

Ela lê o que escreves, triste consolação, caindo a tarde
sobre as coisas. A vida perfeita vem do outro lado do mar,
como uma frase que nunca disseste, uma amável claridade
de que os seus olhos nunca se atormentam, não têm fundo.

A vida perfeita é breve. Ela lê cada palavra — e, em cada
palavra, quanto deixas de teu?, quanto se perde nas
florestas? O silêncio protege-te de ti mesmo, guarda os
dias para os grandes passeios entre as fronteiras da terra

distante, onde a luz te espera; guarda qualquer coisa
nesse espaço em branco no teu coração. Quantas noites
ela leu o que escreveste sem saber que para ela escrevias?
Tentação amena quando a tua natureza cede e ela regressa

para que tu fales, falando de amor. Que não esteja nos
teus braços, mas que se aproxime, que o calor console
a ventania, a aparência de Setembro, os passos na areia,
a sede de outra sede igual. Como saberias que o amor

não existe longe da sua pele? Quanto escreves para ela
escreves, e dizes o nome dos planetas, das feridas.
Esperas que reconheça esse sinal e te chame enquanto
a noite não sabe de que lado está, de que lado dorme.

AMOR E ASSIM, 2. O lamento do P. sobre essa «ausência de amor» acaba por ser justificado no seu próprio texto: talvez seja «tão íntimo que pertença ao inominável». Eu acho que sim. Apetece-me muitas vezes escrever sobre isso, evidentemente. Mas uma onda de pudor arrasta as palavras, ou impede-as de se mostrarem. Pode falar-se de amor senão com quem se ama? O resto, aparece disfarçado «de simpatia, antipatia, rancor, ironia». E quando se fala de amor com quem se ama, há quanto tempo não se falava de amor? E outra coisa: haverá amor sem segredo, sem esse silêncio?

AMOR E ASSIM. O Guerra e Pas escreve sobre o amor. Ou melhor, sobre a falta de amor nos textos dos blogs: «Não tenho a certeza, mas julgo que nunca vi amor na blogolândia. Talvez que todos o tenhamos na justa medida das nossas necessidade e não lhe sintamos a falta e nos escusemos a falar dele por isso; ou talvez ao amor seja tão íntimo que pertença ao inominável, aquele onde até nós temos vergonha de nós mesmos. O amor é difícil – é custoso. É difícil dá-lo e ainda bem mais recebê-lo, como é difícil reconhecê-lo, tanto que muitas vezes anda disfarçado de simpatia, antipatia, rancor, ironia.
O amor tem a desvantagem de ser omnipotente. Ninguém gosta de todos-poderosos nem de lutas com final certo. O amor, açucarado pelas mediações, tem-se tornado escasso nos discursos e, como já disse, omisso aqui na blogolândia, onde até se fala e muito do(s) (D)deus(es). Para o nosso pacto de silêncio, colectivo e inconsciente, só mesmo a nossa força maior para nos juntar.»

LER O QUE LÁ ESTÁ. Não, não era isso. A resposta ao Jorge Marmelo sobre a carta do dr. Freud não era «um texto sionista». Não tenho medo das palavras, mas não era isso — era apenas uma resposta à carta do dr. Freud e à utilização actual de um texto datado, escrito em circunstâncias particularmente controversas. Não serve para tirar ilações sobre sionismo, assunto que já foi largamente debatido aqui. O Jorge diz que a minha resposta está «cheia de certezas»; ora, só me lembro de uma certeza essencial — que não é militante — nessa matéria, que se reduzia à recolha de dois ou três factos e não à sua «sonegação», o que é uma estratégia mais ou menos comum no debate sobre o Médio Oriente.
Sobre a «questão religiosa» que o Jorge Marmelo invoca, dizendo que a maldição paira sobre aquele mapa e que «o mundo em geral, e aquela região em particular, passariam muito melhor se aos homens não tivesse ocorrido a trágica invenção dos deuses», eu não discuto. Não acho que as religiões estabelecidas no aparelho e na razão de Estado alguma vez tenham favorecido a paz. Penso, até, que as religiões têm sido factor de violência e de segregação. Portanto, façam favor de apontar para o alvo mais indicado — e que não é este. No entanto, abstenho-me de comentar a opinião do Jorge sobre o assunto, a defesa das virtudes do ateísmo. Seria ridículo voltar a isso (sobretudo com ele, cuja família vem de Castelo de Vide e se chama Marmelo); e não é problema meu.
Já agora, e não tem nada a ver com o Jorge, o discurso sobre o «ressentimento» é tão vulgar e frágil como o discurso da «vitimização» que garante a «indústria do holocausto» e as reacções da extrema-direita israelita. Já agora, fica um aviso: essa táctica, comigo, não pega. Misturar tudo, não reconhecer diferenças de argumentação entre quem defende o direito de Israel à segurança, a ter fronteiras seguras e reconhecidas internacionalmente, e quem não reconhece o direito à existência de um estado palestiniano, é fazer batota. Não me ouvirão (porque não podem) fazer a defesa de nenhuma forma de segregação ou duvidar da necessidade absoluta da existência de um estado palestiniano democrático, onde as pessoas vivam decentemente, façam negócios, vão às escolas e às mesquitas, frequentem a praia e escolham os seus representantes. Mas não esperem que aceite o branqueamento de quarenta anos de hipocrisia dos estados vizinhos de Israel ou que declare estar convencido das melhores intenções do Hamas e da Jihad.

O QUE RESTA É A VIDA INTEIRA. Faz-se tantas vezes essa pergunta: o que fica, depois de quase tudo desaparecer? E, de repente, entre a noite e os ruídos da noite, muda-se a pergunta. Muda-se a vida. O que fica é um perfume ligeiro, uma ventania que abre o coração ao meio. Vida perfeita, imperfeita, capaz de tudo.

LIVRO DE ESTHER. Mantenho com o sempre atento — e cada vez mais lapidar, mais cativante — Voz do Deserto, do Tiago de Oliveira Cavaco, um diálogo sem conversa. Ou seja: lemo-nos com frequência. Eu acho que o Voz do Deserto é um dos blogs portugueses de referência, e é uma pena deixar passar em claro os seus textos sempre com sinais para cada um de nós. Digamos que entre mim e o Voz do Deserto há um diálogo sobre Deus mas sem o decidirmos, exactamente. Mantemos aquela sombra delicada da comunhão sem contacto, o que é muito agradável. De vez em quando — ah, claro — verifico que temos versões diferentes do texto bíblico, o que também dá um certo gozo, sobretudo porque admiro a erudição e o conhecimento que o Tiago demonstra sobre o assunto. Uma citação sua está sempre no lugar certo, não para justificar uma asserção, o que seria vulgar e é um truque conhecido, mas para evidenciar os caminhos e os descaminhos dessa relação difícil entre Deus e os homens. Neste fim-de-semana, fala de «uma leitura integral do Livro de Ester» em conjunto com «o visionamento desordenado das biografias iconográficas da VH1». Ora, o Livro de Ester é um dos textos que mais gosto de ler, uma espécie de conto tradicional em que os bons são recompensados e os maus são punidos. Na leitura judaica, a Meguilat de Esther é um texto sobre «a sorte», o desígnio escondido, a «sorte» que protegeu os perseguidos. E que faz uma pergunta essencial: «Como foi possível conceder a Haman um tamanho poder e influência? Como puderam a maldade e a iniquidade desenvolver-se com Haman e estabelecer-se no coração dos seus contemporâneos?» Por isso, a festa de Purim tem esse excesso a marcá-la, como um delírio sobre o destino do bem e do mal — e relembra que a maldade pura existe, tornando penosa toda a vida.

LIVROS NA PRAIA. Domingo de calor. A minha filha e eu íamos, com os sacos do costume (farnel, livros, toalhas, bronzeador) a entrar na Praia da Comporta. De repente, no meio do calor, da poeira, do mar ao fundo, dos pinheiros, dos biquinis, do domingo — vejo uma tendinha a vender livros. Uma bela exposição de livros de bolso, vendidos pela Fonte de Letras, de Montemor-o-Novo, uma das minhas livrarias preferidas. Ali, na praia. Apeteceu-me festejar uma parte do género humano. Ainda por cima, a Nani, uma das donas da Fonte de Letras, estava também (como eu) a ler o novo Cees Nooteboom, O (Des)Caminho para Santiago, publicado pela Asa — uma bela tradução de Patrícia Couto e Ari Pos (Ari é um holandês que vive nas margens do Douro há alguns anos). Quando passarem por Montemor-o-Novo, visitem a Fonte de Letras (para ver os livros, conversar, beber um café ou um whisky). E, senhores editores, vejam o que estas meninas da Fonte de Letras fazem pelos vossos livros. Levam-nos à praia, de passeio!

EINSTEIN. «A faceta religiosa de Einstein» é o que se propõe explorar o Einstein. Lembro-me, por isso, de Os Sonhos de Einstein, um pequeno romance do físico Alan Lightman (também autor de Good Benito), publicado pela Asa, do Manuel Alberto Valente — eu tinha comprado o livro em Nova Iorque e li-o «em turbilhão». Só depois, ao tentar — como Abraham Pais — compreender o que significava realmente a ideia de «relatividade» me dei conta que estava certa a expressão. Era mesmo «em turbilhão». Mais tarde, em conversas delirantes com o André (que na altura estava em Bruxelas a aprofundar os seus delírios, justamente), sobre «teoria das ondas», «caos» e outras ninharias, percebi até que ponto a ideia de poesia estava posta em causa pela linguagem da ciência e por certas investigações nessas áreas: se até determinada altura a poesia se preocupava fundamentalmente com o invisível, com o indizível, essa «investigação» cabe hoje a esses campos da ciência que, sem tantos preconceitos teóricos, lida com o provável e o indeterminado. A poesia passou a preocupar-se consigo própria.
Lembram-se daquele poema de Manuel António Pina? É sobre o que faz o poeta ao longo de uma manhã, insistindo na visita a um guichet de uma repartição, onde um funcionário triste e solitário tinha estacionado para toda a eternidade. E pergunta: ora, o que fez a poesia por este senhor?

UMA MATÉRIA ESTRANHA. Já há algum tempo que tinha visitado o Naufrágios. É uma matéria estranha, sim: histórias de naufrágios, desolação no meio dos mares, arqueologia marítima, perdição. Tudo junto. Sendo um blog com marca académica, vou lá de vez em quando, por curiosidade pura — que é a mãe de todos os vícios — para conhecer mais sobre a história do mar dos Açores.

RESISTÊNCIA ISLÂMICA. Há sensivelmente dois anos, por alturas de Sukot (a Festa das Cabanas, que assinala «a travessia do deserto» dos hebreus fugidos do Egipto), juntei o então rabino de Lisboa, Shlomo Haim Vaknin, e o sheik David Munir. Primeiro, na Mesquita de Lisboa, onde conversámos a várias vozes numa sala tranquila, a meio da manhã: o que unia e separava as religiões, sem no entanto cair no lugar-comum de que «a religião é factor de paz», etc. Uma semana depois, já em Sukot, David Munir almoçava na sinagoga de Lisboa — e foi um almoço inesquecível. As ligações entre as comunidades islâmica e judaica de Lisboa já vêm de há muito (por exemplo: a comunidade muçulmana usava os serviços do velho e hoje desaparecido talho judeu, que ficava ali ao Rato — na R. Escola Politécnica—, espaço hoje ocupado por um restaurante) e são um caso único em toda a Europa da actualidade.
É por isso com prazer — e muito interesse — que vejo aparecer um blog islâmico português. Trata-se do Resistência Islâmica, de Sameer Baz, iraniano radicado em Portugal, com a colaboração de Moha Adbul. Talvez fosse bom, também, colocar na net alguns textos da Al-Furqhán, a revista portuguesa de estudos islâmicos, mantida por M. Adamgy há alguns anos. E talvez desse diálogo nascesse, pelo menos, o fim de alguns preconceitos menos essenciais.

julho 27, 2003

SHABBAT. A vida devia ter sábados longos. O tema «a vida devia» é vasto como campo de problemas e como repositório de banalidades. A vida devia ser assim mesmo. Como a fizemos, como ela nos fez. E devia ser de outra maneira. Devia ter um sábado longo e desligado do resto das coisas. Há quem não entenda isto, o dever de uma paragem, de um silêncio, deixar que o próprio sábado invada a sala, a casa, a respiração.

ADEUS. A morte tem uma particularidade, para além do que escrevemos sobre ela enquanto figura ou enquanto texto: aproxima-nos do rosto de Deus — que, de facto, não tem rosto, nem voz (porque perecerá aquele que a ouvir), nem idioma. E aproxima-nos do seu sorriso. E do seu nome. Anteontem, na morte de um homem bom, que eu admirava e com quem gostava tanto de falar, a inquietação volta a tocar-me. «Agora ele descansa», foi a única coisa que pude dizer, já foi dito tantas vezes; mas a morte não é um tema e sobre ela dizemos as coisas mais absurdas. As despedidas são sempre invadidas por vozes que não são deste mundo.

ESCREVER. Durante esta semana não li a imprensa. Não vi televisão (só ontem, aquele jogo do Paris SG - FC Porto, confesso…). Não escrevi para o blog. Não li os blogs. Mostrei aos meus filhos uma das últimas florestas de carvalhos ibéricos. Vimos castanheiros altíssimos, redondos, verdes, escuros.

UMA CERVEJA ATÉ TARDE. Alguns amigos deram pela falta do Aviz durante esta semana. Tenho mails para responder nos próximos dias, e que chegaram cheios de palavras simpáticas. E agradeço aquele telefonema preocupado, sim, caro P. Na verdade, fui indelicado: não avisei, mas eu próprio não me avisei a mim. O João, imagino que com a habitual gargalhada e lembrando-se das suas manhãs na praia de Carcavelos, sugeriu que eu tinha ido beber uma cerveja, referindo-se ao meu último texto da segunda-feira passada. Idêntica sugestão foi feita pelo Valete e também pelo Jorge Marmelo. Reconheço que é verdade. Fui beber uma cerveja. O entardecer prolongou-se.

LIVROS PERDIDOS. 3 Norman McLean morreu em 1990. Filho de um pastor presbiteriano, teve uma vida banal, sem grandes sobressaltos, durante a qual foi um excelente professor de literatura inglesa. Não se lhe conhecem grandes méritos neste domínio — ou seja, não se distinguiu por nenhuma tese em particular, nunca seria um dos académicos de Lodge e não foi um ensaísta. Deixou três livros, dois dos quais «muito bonitos». Sei que a designação «muito bonitos» não deixa uma grande impressão, mas Passa Lá um Rio, publicado pela Teorema em 1993 é uma reunião de magníficas histórias soltas sobre a ligação de um homem à natureza, aos bosques animados da Grande América. Ora, quando se pensa na América não se pensa nisso: nas árvores, nos rios, na pesca à truta. «Tenho a assombração das águas», é a última frase do livro. Este é quase todo sobre a pesca à truta. A Teorema publicou mais dois: Chulos e Lenhadores, sobre o mundo das florestas, justamente, e sobre o reconhecimento das árvores, das espécies e dos homens que lidam com elas — e SFEU 1919. Fiquei tão reconhecido a Passa Lá um Rio, que não li este último.

LIVROS PERDIDOS. 2 Há um caso estranho com O Papagaio de Flaubert, de Julian Barnes (publicado em Portugal pela Quetzal, em finais da década de oitenta): em Inglaterra, ganhou um prémio de ficção; em França, foi-lhe atribuído um prémio de ensaio. Trata de uma viagem (a França) de um homem seduzido por Flaubert e o que começa por ser uma peregrinação literária à terra de Flaubert e o encontro com o papagaio que serviu de modelo a um dos seus contos — acaba por ser um jogo delirante sobre a própria natureza da literatura, sobre a paixão dos livros e sobre o mito do autor. Tem indicações muito «estimulantes» (como escrevem os críticos) acerca da forma como se escrevem romances hoje em dia (o livro propõe, entre outras coisas acertadíssimas, que seja instituída uma moratória durante a qual seriam proibidos romances em que o narrador seja escritor ou jornalista.).

UMA CARTA DO DR. FREUD. O Jorge Marmelo publicou no seu blog, interpelando-me, uma interessante carta de Freud divulgada na imprensa italiana. O mestre de Viena duvidava do sucesso da existência de de um estado judaico na Palestina e desaconselhava a sua criação. O Jorge diz que tem mais simpatia pelos palestinianos, por causa da imagem das pedras diante dos tanques — o que é uma posição muito aceitável, mas questionável, mesmo que se apele «ao romantismo». Eu sei que, da parte do Jorge, essa inclinação romântica não justifica o apoio àqueles que mataram miúdos nas discotecas de Telavive, ou aos que acham um acto heróico de resistência fazer explodir cafés de Jerusalém à hora de almoço. Por outro lado, o Jorge aceita o meu «sionismo» e as minhas ideias favoráveis ao estado de Israel. Bom. Essas ideias foram as que, na ONU, permitiram que em 1947 se chegasse à resolução que autorizava a criação de um estado de Israel — e de um estado palestiniano. Três anos antes, um povo excluído e indefeso, condenado a morrer pela Europa fora em campos de concentração, sonhava apenas com a sobrevivência. Essa sobrevivência passou, depois, pela criação desse estado. O estado palestiniano nunca existiu por exclusiva responsabilidade dos países árabes da região, que não o permitiram — e que invadiram Israel horas depois de David Ben-Gurion ter lido a declaração de independência. Dessa invasão resultou uma derrota militar a que a boa consciência europeia chama ainda hoje «a primeira humilhação», ou, na moderna sociologia jornalística, «fonte de ressentimento». Para não haver humilhação nem ressentimento, os judeus teriam de se deixar aniquilar pelos exércitos do Egipto, da Síria, do Líbano, da Jordânia e do Iraque (e de suportar o embargo de armas na altura decretado pelos EUA). Assim se evitaria o 11 de Setembro, o regime talibã, o empobrecimento das sociedades do Médio Oriente e uma geração de bombistas-suicidas.
O Jorge acha que talvez a história dê, finalmente, razão a Freud no que se refere à criação do estado de Israel. Ora, bem, a história também não teria dado razão a Freud em outras ocasiões e em outras matérias. A história «não deu razão» a Freud quando a política de extermínio nazi começou a ser executada na Europa (não, não foi na Ásia, na Oceania ou no Alasca; foi na Europa) e foram mortos 6 milhões de pessoas que não podiam viver livremente em nenhum estado europeu. A história «não deu razão» a Freud quando os judeus foram (pela Europa fora, e não em África, na Antárctida ou na América Latina) proibidos de praticar a sua religião, de preservar os seus costumes, de honrar as suas tradições e de viver a sua cultura. Nessa altura, não sei a quem o Jorge atribuiria a sua parte de razão no sentido da história. O dr. Freud é um personagem fundamental da nossa cultura e do judaísmo. Infelizmente, também não conhecemos a sua opinião sobre o declínio do basebol, sobre a cozinha javanesa ou sobre o «swinging», que a RTP — no telejornal — diz ser uma cultura emergente no nosso país.
Sobre a raiz do ódio aos judeus, que o dr. Freud situa no fundamentalismo judaico, acho que nem tudo o que o dr. Freud escreveu é um abaixo-assinado que conta com a minha assinatura. Reconheço que o fundamentalismo judaico é tão marcado pela estupidez como qualquer outro fundamentalismo. Eu vi os ultra-ortodoxos empurrarem mulheres que iam rezar ao Muro e já aqui escrevi sobre os partidos haredim de Israel. Acho abominável, porque acho que o fundamentalismo é abominável. Penso que o fundamentalismo é contrário ao próprio espírito do judaísmo. Infelizmente, o dr. Freud nunca escutou os sermões da mesquita de Ansbury Park ou de Gaza, nem as explicações que os sustentam, nem os textos fundamentais do anti-semitismo moderno ou os discursos em árabe de Yasser Arafat. Depois, é muito fácil ir buscar uma citação, uma carta, uma frase — e ver como ela se pode adaptar ao que julgamos ser a actualidade, como se o tempo nunca tivesse passado por ela. O que pensaria o dr. Afonso Costa sobre o dr. Freitas do Amaral? O que pensaria Marx sobre Fidel? O que pensaria a rainha Victoria sobre Diana Spencer? Já agora, uma pergunta: o que pensariam de Israel aqueles que fugiram para Israel, escapando às perseguições nos seus países — da Rússia à Etiópia e à Argentina ou ao Uruguai? Ou outra, impossível: o que pensariam de Israel os que foram esmagados no gueto de Varsóvia, se Israel existisse na altura? Ou teriam sido esmagados?

julho 21, 2003

ENTARDECER. Os meus filhos (uma rapariga, dois rapazes) insistiram: que eu bebesse uma cerveja. Ela, empoleirada numa cadeira, foi buscar a cerveja ao frigorífico. Um foi buscar o abre-garrafas e outro, por pudor, trouxe um copo. Ainda pensei em explicar que talvez não fosse boa ideia, mas sei agora que foi a melhor cerveja dos últimos tempos. Uma memória da felicidade. Que coisa, uma cerveja.

PERGUNTAS. Recebo, num mail, esta citação: «Quando a gente pensa que sabe todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas.» De facto.

KID ABELHA. Passei o fim de tarde de domingo a ouvir Kid Abelha. Ouvi-os pela primeira vez em 1985, no Rio — quando ainda se chamavam Kid Abelha & os Abóboras Selvagens. Foram sempre frágeis e passageiros, cantavam desilusões de amor, encontros furtivos, bilhetes no meio dos livros, telefonemas cheios de lágrimas. A voz de Paula Toller sempre me tocou — sim, eu sei, não vale a pena falar da «grande música brasileira»; estou a falar de Kid Abelha. E os arranjos de George Israel, o faz-tudo da banda, de sax-tenor a guitarra e piano. Aquelas canções chamam-se «Fixação», «Os Outros», «Lágrimas e Chuva», «Pingos de Amor», «Educação Sentimental», por aí fora. O disco Acústico, da MTV brasileira, foi uma prenda que me deixou mudo. Acho que uma parte de mim mudou toda. Toda.

GOULD. Sempre tive uma grande admiração por Stephen Jay Gould e li dois dos seus livros, O Sorriso do Flamingo e O Polegar do Panda (publicados pela Gradiva). Há uns meses, no Brasil, deparei com O Milênio em Questão (Companhia das Letras), um livrinho de pequeno formato sobre a natureza do milénio (ou seja, se o conceito de milénio não passa de uma invenção inclemente), sobre a passagem do milénio e a polémica acerca da data exacta em que isso aconteceria, se em 2000 ou se em 2001. Foi o seu último livro, suponho. É divertidíssimo porque destrói todas (eu escrevi «todas»?) as teorias milenaristas — justamente porque cada um escolhe o calendário que mais lhe fica a jeito.
A certa altura, depois de determinar, segundo a teoria de James Ussher (primaz anglicano da Irlanda por volta de 1650 — espero que isto não me traga problemas com o bom Tiago) que Jesus Cristo teria nascido em 4 a.C., Gould chega à conclusão de que o milénio «já teria passado» a 23 de Outubro de 1996. E o que aconteceu nesse dia? «Bem, algo de sugestivo veio à tona naquele dia. Certa vez, George Burns afirmou, com inegável justiça, que a vitória dos New York Mets no campeonato de 1969 foi o primeiro milagre incontestável desde que o mar Vermelho se abriu. Sendo assim, se Deus de facto acena para nós por meio de eventos cruciais da nossa cultura secular, o dia 23 de Outubro de 1996 foi marcado por um milagre de relevo. Os New York Yankees, perdendo por dois jogos a um em seu confronto com os todo-poderosos Atlanta Braves, estavam em desvantagem irremediável de 6 a 3, com apenas cinco rodadas mais no oitavo inning do quarto e crucial jogo — uma derrota e o déficit de 3 a 1 teria selado o seu destino. Mas os Yankees venceram aquele jogo numa das viradas mais implausíveis e espectaculares do desporto. Assim, com base na suposição altamente razoável de que Deus torce pelos Yankees (além de ser uma figura gentil e inescrutável) é bem possível que Ele tenha usado a data para mandar um sinal e solicitar que nos preparemos seriamente antes que Lhe faltem as razões para mais delongas antes de puxar de vez a cortina final sobre a vida terrena como ela é.» [Há aqui um pormenor que o Acho Eu) não deixará de olhar como piada: trata-se do oxímoro fatal de um Jesus Cristo que nasceu quatro anos antes da sua Era, conforme determinou o bispo anglicano.]
Além de se aprender bastante sobre a medição do tempo, o livrinho de Gould está cheio de bom-humor: «Tenho uma queda pelas fraquezas humanas; de que outro modo continuaríamos rindo (e há que continuar rindo) num mundo árduo como o nosso?» E tem aquelas piadas de judeu, sim, como as de Woody Allen (e que dão uma boa ideia do que podemos fazer com as citações, no caso do Epicurtas ): «Bom, de facto a Terra gira em volta do Sol, e a evolução regula a história da vida, mas duvido que possamos identificar Jack, o Estripador.» Ou: «Temos a falsa impressão, reforçada por testemunhos sabiamente exagerados, de que o universo funciona com a regularidade de um relógio ideal e, portanto, Deus deve ser um matemático rematado.»

EPICURTAS O Epicurtas, vejo agora, escreveu um comentário sobre o metabloguismo que anda por aí. A certa altura: «Por outro lado o FJV, no Aviz, lá vai jocosamente referindo a paranóia da caça à citação, e isso deixa-me triste! :-( Deixa-me triste porque me menospreza; porque me olha de cima, do alto do estatuto de Colunista. Como quem diz: comentem, comentem… e lutem lá por merecer, da nossa parte, uma referenciazita que vos aumente o pindérico número de pageviews que ostentam aí ao lado…»
Ora, meu caro Tyler Durden, não é nada disso. O que eu defendi foi, justamente, o direito a fazerem-se citações sem censura e sem limite nos blogs — e que ninguém tinha o direito de vir impor uma moral particular nesta matéria. A única coisa irritante nas citações é quando se trata de uma «apropriação indevida» que geralmente é de uma histeria insuportável. E sempre ridícula: «Eu acho que, como diria o imortal Stevenson, o mar está cheio de água.» Na televisão, em entrevistas «intimistas», isso tem um resultado demolidor. O entrevistador pergunta qualquer coisa banal, como «gosta de futebol?»; a resposta tem esse excesso garantido: «O mundo do prazer, escreveu o genial Heine, alás citando Espinosa, é acessível a todos.» Aquilo que a pequena intelligentsia faz é banalizar os nomes, como banaliza os autores. Lembro-me de uma entrevista com um cavalheiro, na TV: citou 16 autores durante a primeira meia-hora. É de uma pessoa de torcer de riso.
O que eu defendi é que um blog é uma «coisa pessoal» — e que a imposição de um «código de conduta» dava vontade de rir. Como escreveu a Bomba Inteligente, se é verdade que não escolhemos estar na vida, já ter ou não um blog depende exclusivamente de nós. E para provar que isto é verdade, já tenho aqui uma ou duas citações preparadas. Nem mais.

SALINGER Escrevi sobre a «paixão por Salinger» a propósito de uma referência que encontrei no Conversas Matinais. A M.J.O. enviou um mail sobre Salinger. «Pelo que percebi através da leitura de outros blogs, o tema surgiu com o livro The Catcher in the Rye e foram muitos os elogios ao nosso Holden Caulfield. Fiquei apenas um pouco desiludida (e por isso escrevo este mail) pela ausência de referências a outros livros de Salinger, igualmente singulares. Refiro-me especificamente a Carpinteiros, Levantem Alto o Pau de Fileira, Seymour, Uma Introdução e Franny e Zooey, todos eles já editados em Portugal. Aquilo que estes livros têm em comum são (tal como acontece em outras obras do autor) as suas personagens. E neles encontramos pelo menos quatro equivalentes ao Holden: são eles Buddy, Seymour (os meus preferidos), Franny e Zooey, quatro irmãos (família Glass) que nunca mais esquecemos. Conheci-os tardiamente, admito (já tinha mais de 20 anos), e senti aquela perturbação que nos leva a questionar: “O que é que eu andei a ler até agora para ter ignorado o Salinger?” Sei, no entanto, que fiquei diferente depois de conhecer os Glass. E regresso muitas vezes a eles.»
A M.J.O. é um dos raros casos de honestidade neste universo — eu tenho acompanhado muito do que escreve no seu jornal; fico sempre admirado quando alguém pede desculpa de «só ter lido» determinado livro «aos vinte anos». Ora, eu li o The Catcher in the Rye depois dos trinta (li primeiro Carpinteiros, Levantem Alto o Pau de Fileira porque queria compreender o entusiasmo da Maria da Piedade Ferreira, então na Quetzal, que o publicou com algum heroísmo). E só não perguntei «o que é que eu andei a ler até agora para ter ignorado o Salinger?», porque já tinha feito essa pergunta algumas vezes em relação a outros autores.

NÃO FALAR MAIS SOBRE ISSO. Depois de escrever o «texto longo, sim» recebi alguns mails — para lá das referências que foram publicadas — e sei que não devo falar mais sobre o assunto. Já está. Por vezes toma conta de nós uma irritação profunda ou um desânimo com o qual não somos obrigados a saber lidar. O blog, no fundo, tem alguma coisa a ver com a primeira maturidade da adolescência, com as coisas gratuitas e cheias de paixão. Portanto, já está.

julho 18, 2003

UM TEXTO LONGO, SIM. Ora, não me lixem. Às vezes há distracções nos blogs, naturalmente, e vê-se onde cada um quer chegar — a qualquer lugar muito longe, a qualquer lugar muito perto. Mas irrita-me muito aquele ar de circunspecção polida, muito culta e importante, escandalizada e correcta ao mesmo tempo. Todos querem ser o «observatório que não é observado», aquele que repara em todos os defeitos dos outros, aquele a quem nada comove, aquele para quem uma coisa é sempre outra, muito pior, muito enganadora. Ah, eu sei, todos sabemos, as pessoas fingem, exibimo-nos em todo o lado, citam-se livros, fala-se de filmes, discos, bandas, viagens, retratos, tudo o que comove. Mas irrita-me o tom, esse tom de quem desconfia que só o próprio é que lê os livros que leu — e leu, certamente. Mas as mentiras dos outros também são agradáveis, detectam-se com facilidade, paira sobre elas uma aura de vulgaridade. Desiludimo-nos? Não: a vida é assim mesmo, contabilizamos doutoramentos com bibliografias frágeis, artigos com rabos de fora. Irrita-me quem veio aos blogs para moralizar e evangelizar, espalhar a verdade, ganhar adeptos, praticar a pior das coisas que é o proselitismo no meio da tempestade e da desgraça. Porque se não houvesse desgraça não havia «blogosfera» (essa comunidade de cinquenta e seis ou oitenta e dois amigos que se conhecem e falam uns para os outros, e se cumprimentam, se visitam, se irritam), as pessoas viam televisão e faziam piqueniques debaixo dos sobreiros ou iam à pesca para a beira do mar. Mas irrita-me isso, sim, essa tendência para não ironizar, para fazer de tudo uma campanha brutal contra a fragilidade dos outros e contra os seus pecados, as suas falhas, as suas indignidades, as suas mentiras — está tudo tão à vista, aqui.
Repito: está tudo tão à vista, aqui — os que contam as visitas e as page-views, os que não resistem a dizer que foram citados. Mas há os outros, sim: os que escrevem — e pronto. Os que dizem o que querem dizer. Os que se estão nas tintas. Os que têm uma palavra que não nega que gostava de ser lida? É isso um pecado assim tão criticável, tão menosprezável? Quando é que as pessoas escrevem — e pronto? Quando é que passam a escrever o que querem mesmo dizer, escondendo aquilo que acham que é para manter escondido, e não estão com muitas justificações, lapsos, vulgaridades, paralaxes?
Há nos blogs uma fragilidade muito evidente: são coisas que se escrevem porque sim, porque apetece naquele momento, porque nos lembramos, porque alguém falou disso, porque a ventania vem do lado do mar, porque o pó se levantou no meio do deserto em frases curtas, em textos longos, ou porque começou a chover no domingo. Essa fragilidade é um bem porque podemos discutir com ela — ou comover-nos. Ah, mas claro que a comoção é um perigo, tal como a pieguice, a lamechice, o horror aos outros, sim, claro que é. Mas pior do que isso vão ser os blogs dos deputados quando o parlamento publicar o livro de estilo (será como o código de conduta do Expresso?).
E por que é que os oitenta e dois amigos ou os cinquenta e seis conhecidos não hão-de poder falar uns para os outros? Entre mil blogs portugueses, por que é que não se hão-de conhecer e dizer «piadas privadas» e falar do que lhes apetece? E por que é que tem de começar a haver auto-censura estabelecida para que fulano não desça do púlpito, a desancar? Não me lixem. Vigiemo-nos, comentemo-nos em regime de permanência. Por que é que não se há-de ser a poeira da praia?
A nossa escravidão, desde a infância, é definir «posse» e «poder». O vazio é o único lugar de encontro quando descobrimos essas circunstâncias — e, nesse lugar, compreender não é concordar, tal como discordar não significa não compreender. Um comentador do Talmude dizia que devíamos fugir da superstição e da crendice, das faúlhas do céu — mas que, na verdade, não se pode viver sem essa chama de irracionalidade, tal como a certeza absoluta é um acto de idolatria, de imprescindibilidade — e a imprescindibilidade é a idolatria com pés de barro. O que tem a ver com outra característica que anda aí à solta, oscilando entre a agressividade e a vitimização: ambas são compensações, claro, compreensíveis, somos humanos, tão humanos. Nos blogs, a única coisa a cobiçar é a aceitação dos outros, o reconhecimento — não os livros que os outros leram ou não leram , os actos de censura, a comunhão ideológica. Isso é tão humano como a chama de irracionalidade que não se pode afastar da vida inteira, sob pena de a «vida inteira» ser só «parte dela», a mais visível, a mais autoritária, a mais inflexível. Quem tem listas de reivindicações sobre o presente e culpados permanentes a apontar, vê reduzida a sua margem de criatividade.
E o riso. O riso de todas as maneiras. O riso devia ser o centro de muitos debates, contra o risco de intelectualizar toda a linguagem, isto é, de lhe criar uma autoridade escolar em anexo (sim, como attachment). Há pessoas que riem muito, há pessoas que riem pouco, há pessoas que só riem e há gente que não ri nem sabe rir. Não é obrigatório rir em nenhuma circunstância (o Nuno Costa Santos criticava essa tendência para a «obrigatoriedade do humor» nos blogs, a obrigatoriedade de se «ser engraçado»), mas o riso é um caminho que nunca se pode evitar. Tal como a ironia, a piada. A pequena piada. E rir de si próprio sobretudo, não se levar tão a sério.

DEUS. Leio numa revista que, há cerca de um mês, a Igreja dinamarquesa «despediu» um pastor. O homem, numa entrevista a um jornal de Copenhaga, tinha dito que Deus não existia. Aqui está um motivo para o Tiago reflectir.

POSTA RESTANTE. A propósito do texto sobre traduções, a Marta Almeida escreve que são, também, importantes «as edições da recente Cavalo de Ferro, todas a partir da língua original. A juntar ao facto de estarem a apostar em (bons) autores pouco divulgados entre nós.» Inteiramente verdade. A Cavalo de Ferro tem publicado boas edições, além do mais.
 
Abel Campos trata de assunto sério, referindo-se ao meu texto sobre a silly season:
«O Aviz repete o que já li já noutros blogs, a saber que “a D. Maria Barroso (...) anunciou que ‘há um grande desejo de fazer desaparecer a família Soares’ (veio no Público), que, aliás, comparou ao clã Kennedy.» Abel Campos cita correctamente a entrevista de Maria Barroso: quem faz a comparação é o jornalista e não a entrevistada, que, aliás, passa pelo assunto.
[…] «Quero sublinhar que não tenho obviamente procuração da família Soares nem me revejo nas declarações em causa do patriarca Mário, que até me parecem estar bem arrumadas na estante silly season. […] Mas faz espécie que determinadas declarações atribuídas à pessoa X sejam tão prontamente desmentidas, com provas irrefutáveis e esmagadoras, e que outras continuem alegremente o seu caminho sem desmentido algum. Não resisti portanto a enviar este comentário, ainda por cima injusto para si, pois, repito, li a mesmíssima coisa noutros blogs sem ter reagido, certamente por preguiça. E também, como eu disse no início, por finalmente se tratar de coisa pouco importante.»
Abel Campos tem toda a razão e o erro foi meu ao citar uma informação publicada num blog, acreditando nas suas aspas. Inacreditável preguiça de leitor distraído, de que me penitencio. A D. Maria Barroso não comparou a «família Soares» aos Kennedy. Quanto ao resto, que é o essencial, lá ficou e lá ficará, como escreve o Abel — o que não desculpa o erro.

julho 17, 2003

NÃO, NÃO TEM TÍTULO.


Escreves quando? Fazes muitas vezes essa pergunta
no meio de observações casuais, mas tu sabes
a resposta. Aguardas que venha uma nuvem
ou que os animais te despertem a meio da noite.

Estremeces, de tão pouco cuidado. A morte
poisa devagar no teu ombro, como uma suspeita.
Sofres muito, dois dias de chuva lembram-te
a passagem do tempo, a doçura das coisas, doce

veneno, o do esquecimento. Tantas vezes o pedes,
de tantas maneiras, não te dás conta de nenhuma.
Só, só no mundo, inventariando os segredos,

só nessa voz, solitário nessa página de um livro,
ninguém te visita ou chama o teu sono, a ninguém
pertences, a nenhuma vida que há-de vir.

PARANÓIA. Millôr Fernandes, o humorista, pergunta: «Esse “tenham calma”, do Lula, não é o “lenta e gradual”, do General Geisel?». Tenho a impressão de que até o Millôr está a perder o sentido de orientação.

TRADUZIR. De entre as coisas que vale a pena ler nos blogs gostaria de referir o dicionário da novilíngua portuguesa do Opiniondesmaker. Outro dia (estou a pôr leituras em dia), escreveu sobre uma tradução que gostaria de ter: «Tenho três traduções de Almas Mortas. A segunda nem a li toda. Parecem livros diferentes.
Estou ansioso de ler uma versão traduzida do russo a sério da Ana Karenina. E um Oblomov recente, e novo Pais e Filhos do Turgueniev! Já nem falo de Lermontov e de Saltikov Chtchedrine. Pelo menos as biografias do Troyat, que ele escreveu em francês!»
Tem razão: era bom que, de vez em quando, aparecessem uns clássicos de literaturas orientais ou «de leste» traduzidos a partir das suas línguas. Já há bons exemplos entre nós (Bulgakov, por exemplo). Isso lembra-me a tradução de um livro do finlandês Mikka Waltari, O Egípcio (edição Bertrand, final dos anos sessenta) — é um bom livro, uma história comovente e Waltari um «clássico contemporâneo» (mais conhecido pelas suas narrativas sobre a guerra); um dia, depois de uma temporada finlandesa, passei por Paris e comprei a tradução francesa, da Folio/Gallimard. Foi uma surpresa e tanto: a edição portuguesa dava um volume substancial, com o texto em — digamos — corpo 11/12. A francesa, traduzida do finlandês, dava para dois volumes igualmente substanciais, mas em corpo 10/11. Ou seja, a edição portuguesa roubara-me cerca de 200 páginas. E não eram nada más.

No entanto, há melhorias evidentes. Traduziram-se muitos clássicos entretanto, e a edição portuguesa está de parabéns (tanto o Manuel Alberto Valente, como o Nelson de Matos, foram responsáveis por essa melhoria, sem dúvida). Um dos clássicos que fez as minhas delícias foi a tradução do Tristram Shandy (Vida e Opiniões de Tristram Shandy), de Lawrence Sterne, obra de Manuel Portela (edição da Antígona). É lá que vem uma das frases mais deliciosas da teoria literária ocidental: «O mais verdadeiro respeito que podeis mostrar pelo entendimento do leitor é dividir as coisas a meio amigavelmente, deixando-lhe a ele algo que imaginar, por seu lado.» A tradução teve um prémio e mereceu-o; e atenção, que Manuel Portela também traduziu W.H. Auden e Blake (Cantigas da Inocência e da Experiência, Uma Ilha na Lua, e Poemas do Manuscrito Pickering seguidos de Os Portões do Paraíso).
Claro que a Recherche é outro exemplo a notar, de Pedro Tamen (edição Relógio d’Água e Círculo de Leitores) — e já se fazem traduções directamente do hebraico, por exemplo (de Liba Mucznik), o que permite ler Amos Oz sem passagem pelo «sotaque» francês ou inglês. Infelizmente, ainda não se traduziu O Sino da Islândia, de Halldór Laxness, outro dos meus livros; quando o fizerem, que seja a partir do islandês.

PRECONCEITOS. O Luís Januário, que acaba de abandonar o A Aba de Heisenberg (e que agora está no A Natureza do Mal, um blog muito bem escrito, com muito para ler) diz, num texto que agradeço do fundo do coração, que eu tenho «um preconceito contra a esquerda». É verdade que tenho preconceitos — mas não são bem contra a esquerda. Tenho «preconceitos» porque acho que se devem ter e não faz mal nenhum que se mantenham até prova em contrário (nesse dia, abandonam-se). Enumerá-los equivale a tecer auto-elogios (do género das estrelas de televisão: ah, não gosto da hipocrisia, não gosto da mentira, das unhas grandes do dedo mínimo, não gosto das coisas que eu não sou, etc.); disso, não gosto mesmo; mais vale dizer que se tem alguns preconceitos, sim.
Houve um tempo em que prestava atenção a quem queria «uma vida livre de preconceitos». Ouvi muitas coisas contra a «civilização judaico-cristã» e a herança de culpa que ela deixou. Não tenho outra civilização à mão, embora compreenda as outras e não tenha preconceitos contra elas. Acho que a culpa é um legado importante: sem culpa seríamos mais selvagens, mais idiotas e muito mais arrogantes. Também, por isso, não tenho preconceitos contra a culpa. E, além da culpa, acho que o medo também é importante. E a vontade de voltar atrás (o que não é ser «saudosista»), o direito de não falar (o que não é «não ter opinião»), o temor do sagrado (o que não é «fascínio pelo religioso», que se aproxima muito do ecletismo). Os meus preconceitos são simples, fazem parte do dia-a-dia — como as restrições alimentares, o calendário, os muros no meio do campo. Sei que nada do que é humano nos é estranho (ah, desculpo-me por citar Pessoa, mas só o faço às vezes). Sei que somos vistos pelos outros e que os outros têm opiniões sobre nós de acordo com os seus preconceitos, que são geralmente preconceitos diferentes dos nossos — e que nunca achamos inteiramente justas as opiniões que têm de nós (porque muitas vezes temos boa opinião da nossa opinião). Sei que os blogs são formas de se notarem os nossos preconceitos e de fornecer opiniões rápidas, ainda mais rápidas do que os factos — e, por isso, tenho um preconceito, sim, contra quem repete banalidades como se fossem certezas: sobre a importância de Saramago, a crise do Médio Oriente, as actrizes mais na moda, ou a alternância democrática. E também tenho um leve preconceito contra o relativismo, sim: essa mania de que tudo é igual, de que tudo se equivale (um quarteto de Mozart e uma canção de Madonna, um poema de Bashô e um livro de Paulo Coelho), de que as culturas se podem «misturar» e de que o «melting pot» é o melhor dos mundos — o que é diferente daquele conceito que vem no livro do timorense Luís Cardoso, «o mundo vai ser mulato». E tenho outro leve preconceito contra a ignorância e os erros ortográficos, mesmo que não saiba muitas coisas e possa dar um erro ortográfico. Sei, por isso, que nunca seremos senão julgados permanentemente e que cada frase é um precipício. Por isso, ainda, «gosto de piada», à brasileira — piada sobre política, piada sobre judeu, piada sobre intelectual, piada sobre literatura, piada sobre sexo. E gosto das piadas de Woody Allen muito acima das outras — tal como de gozar com as palavras «deliquescente» e «manemolência», e expressões como «vegetação luxuriante» e «casamento fracassado». Embora ache que o pior de tudo são coisas como «estrutura», «alegado», «dirija-se ao multibanco mais próximo» ou pessoas que intelectualizam tudo, que têm medo da ironia ou têm um desejo permanente de serem correctas para além do desejável.

CÓDIGO DE ÉTICA & CONDUTA O Luís Filipe Borges / Desejo Casar escreveu ontem um diálogo interessante entre dois taxistas já devidamente censurado pelo «código de ética» (imaginemos que o Expresso reproduzia o incidente...):

«— Então, pénis? Não viu o sinal vermelho, fornique-se?!
— Não estava vermelho, seu homossexual com parque de estacionamento no ânus!
— Ah não, fezes?! Que cor era então, seu filho de uma concubina daltónica?
— Estava amarelo, meu caro indivíduo vítima de diminuição mental!
— Amarelo é a cor da sua icterícia. Sugiro-lhe que vá sodomizar primatas.
— A sua vida privada não me diz respeito, excremento! Aconselho-o a praticar cunnilingus com a senhora sua progenitora.
— Mais um comentário desses e ponho-lhe fim à vida a toque de pontapés nos testículos.
— Mas que coito do... olha, ‘tá verde! Adeuzinho, bom trabalho!
— Adeus, força!»

SILLY SEASON Primeiro, foi a D. Maria Barroso que anunciou que «há um grande desejo de fazer desaparecer a família Soares» (veio no Público), que, aliás, comparou ao clã Kennedy. Agora, segundo leio na imprensa desta manhã (no Jornal de Notícias e no Correio da Manhã), o Dr. Mário Soares disse ontem à TSF que querem «silenciar a família Soares»; no lançamento do seu livro Um Mundo Inquietante parece ter dito que existem muitas pessoas que preferiam o seu silêncio. A mim parece-me que num país onde existe uma imprensa livre, a Fundação Mário Soares, jornais, eurodeputados — ninguém pode silenciar o Dr. Soares. Parece-me mais grave se alguém quer «fazer desaparecer a família Soares», mas atribuo isso ao primeiro grande calor do Verão.

FASCISMO ECOLÓGICO, ETC. O O Maranhão, meu simpático vizinho de Aviz, também saiu ao ataque: a destruição da barragem do Maranhão tem de acabar (à expressão que o Aviz usou, «fascismo ecológico», acrescentou a de terrorismo económico e ele sabe do que fala). No seu blog tem divulgado mails de outros cidadãos de Aviz que dão conta desse desencanto.

julho 15, 2003

FASCISMO ECOLÓGICO A rapidez com que se reage a estas coisas é impressionante. Num post de há algumas horas, escrevi que a fábrica da Lactogal — em Aviz — configurava aquilo que chamei «fascismo ecológico»: com o argumento da defesa do emprego num concelho onde grande parte da população trabalha no sector público, pode continuar a, alegremente, expelir diariamente o seu mau cheiro. J.A.H. escreve, por mail, em defesa dos empregos e contra «a mania da ecologia que esconde o essencial para mostrar o acessório» [sic], ou seja, que eu quero, claro, fomentar o desemprego «para que se salvem os passarinhos» [sic]. Sinceramente, essa distinção é boçal demais. O essencial, aqui, é o seguinte: há uma fábrica que destrói o bom ar de Aviz há anos. Fundamentalmente, a defesa dos empregos é compatível com a defesa «dos passarinhos» — sobretudo numa área paisagística de beleza impresionante —, embora ninguém tenha coragem de o dizer em campanha eleitoral. Os pesticidas e a agricultura intensiva já danificaram o que tinham a danificar da barragem do Maranhão (mas «os recordes são para serem batidos», lembra Woody Allen) sem lucros aparentes quer para a agricultura moribunda da região, quer para o próprio Maranhão. Além do fascismo ecológico há, ainda, a falta de senso.

ÉVORA II. Parece que uma repórter do Público deixou passar, numa peça sua sobre uma livraria de Serpa (a Vemos, Ouvimos e Lemos, do meu amigo Luís Afonso), uma afirmação grave: que em Évora não havia livrarias. É certo que não foi a jornalista que escreveu essa sandice, mas convinha que houvesse juízo. Havia um tempo em que os jornalistas eram medianamente cultos e, quando escreviam sobre Évora, tinham o cuidado de terem lido, por exemplo, o Aparição, de Vergílio Ferreira — até para situarem a geografia da cidade — para não falar da Carta ao Futuro («Évora é uma cidade branca como uma ermida, para ela convergem todos os caminhos da planície», etc. etc.) ou de qualquer livrinho de Túlio Espanca. Ora, quem lesse Aparição saberia que existia a Nazareth, na Praça do Giraldo — ainda lá está. Quando vivi em Évora, era normal passar pela Nazareth (e, depois, pela CDL e Alcárcova) e pedir um livro de manhã, que ele viria «na camioneta da tarde», de Lisboa. O proprietário e fundador da Nazareth foi um livreiro ilustre; hoje já não tem (longe disso) o brilho «de antanho», como diria Machado de Assis. Mas lá está. A mais recente O Som das Letras, da Anabela e do Luís, é uma boa livraria que organiza sessões de lançamento, visitas de autores, leituras, feiras — e tem uma boa selecção de cds, além de fornecer aquilo que devia ser normal, «um bom serviço aos clientes». Sem falar, ainda, da Fonte de Letras, de Montemor-o-Novo, que é um exemplo para muitas livrarias «mais urbanas» (também com sessões, leituras, café) , não se pode dizer que não haja livrarias por ali à volta. E assim se deixam passar sandices.

ÉVORA I. O Contra-a-Corrente tinha escrito sobre a ameaça de um «desfile de moda» em Évora. Anunciou ontem que a coisa custou 75.000 €, quantia nada menosprezável. Seria bom ver quanto gastou o Ministério da Cultura, em anos anteriores, com organizações destas. Também conviria ver as quantias que as câmaras municipais dispensaram dos seus orçamentos (verba da «cultura») para «certames» de moda, com ou sem o Carlos Castro. Não negando que «a moda» (cujo universo se tornou uma palermice, com o seu público aéreo, banal, vulgar, boçal e incapaz de soletrar duas palavras com mais de três sílabas e que não incluam «fashion» no parágrafo seguinte) seja uma área apreciável da «criação contemprânea», acho que a euforia já foi pior. Não havia escola secundária, câmara municipal ou «comissão de festas locais» que não incluísse nos seus «eventos» um desfile de moda, com o seu cortejo de banalidades, sem olhar àquilo que chamaríamos «prioridades».

DISTRACÇÃO ABSOLUTA. Só por isso se pode explicar que ainda não tenha recomendado o Bicho Escala Estantes. O Escala Estantes é livreiro, fala de livros e, mesmo que não concordemos com ele, há ali uma determinação e um talento a distinguir. Mais: ele escreveu isto, que acho muito saboroso sobre a blogolândia: «Odeio essa vossa treta de comunidade. O vosso medo de estarem sós é aberrante.» Convenhamos que se trata de um trabalho de serviço público, este; é que o Bicho Escala Estantes dá notícias sobre publicação de livros & outras trivialidades do sector. Muito bom. [Este pormenor não será dispiciendo: ele gosta de livros, o malandro.]

PECADO DE SAUDADE, OUTRA VEZ. THERE IS REGRET. «There is regret. Always, there is regret./ But it is better that our lives unloose,/ As two tall ships, wind-mastered, wet with light/ Break from an estuary with their courses set/ And waving part, and waving drop from sight.» {Philip Larkin}

TERROR. O terror é uma coisa que vem de noite e se prolonga por todas as horas, por todos os sobressaltos, por todas as memórias. As coisas vão ficando abjectas, contaminadas, atingem todas as folhas do diário, todas as páginas, todas as imagens que voltam do passado para se reconstruirem à minha frente. Como uma nuvem, como uma ameaça. Pode ser do Verão, pode ser deste Verão, pode ser das praias abandonadas, das florestas à beira das estradas, das coisas que ficaram desarrumadas, mas alguma coisa atravessa o mar como uma substância que toca a abjecção, que, ou afasta o medo para sempre ou se associa a ele, ao terror. Às vezes, as coisas são assim.

AVIZ, ECOLOGIA. Sobre a barragem do Maranhão, em Aviz (repito que escrevo Aviz com z, enquanto me der na real gana), existe, além do céu, o peso de algumas indústrias transformadoras. Nada é tão idílico na província como se pensa na cidade. Mas nota-se mais quando há poluição como aquela que é causada pela fábrica local de latícinios, a Lactogal. O peso da fábrica na «estrutura social» de Aviz é imenso: alguns empregos (mas não tantos como isso) têm permitido que a fábrica continue a poluir o que pode. A isto, no caso, chama-se fascismo ecológio. A barragem do Maranhão, que podia ser uma fonte renovável de energia para Aviz, é a vítima desse assalto. O mau cheiro da fábrica só ainda não chegou às autoridades. Outra forma de exercer o fascismo ecológico.

OUTRO. Vejo (e leio) com satisfação que o Outro, Eu regressou à rede. De férias, recomposto, aí está Carlos Vaz Marques. Leiam.

julho 14, 2003

LULA & O BRASIL. O «messianismo de Lula» é um fenómeno curioso. No Brasil, Lula está condenado a salvar a pátria — inclusive contra a sanidade da mesma. Em Portugal, pede-se-lhe que salve o Brasil em nome das derrotas da esquerda portuguesa. Aproveito para dar uma vista de olhos no texto de Rui Baptista, nos Suspeitos do Costume:

«Na TV Globo, o presidente Lula da Silva garante que vai ceder às reivindicações do Movimento dos Sem Terra, procedendo ao assentamento de 100 mil famílias até ao final do ano. Mudo para a Bandeirantes. O presidente Lula da Silva anuncia que vai ceder aos pedidos dos magistrados brasileiros para terem um regime especial de reformas. Mudo para a TV Record. Um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus jura que “Deus é fiel” e pede dinheiro aos crentes. Regresso à Globo. Lula da Silva está a garantir que vai ceder aos pedidos não sei de quem. Dias mais tarde, em Portugal, o cantor Djvan diz-me, em entrevista, que “Lula vai dar a vida pelos brasileiros”. A mim, também me quer parecer que sim…»

JOEL NETO. O autor de O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas e de O Terceiro servo, Joel Neto, acaba de chegar à blogolândia com Não Esperem Nada de Mim. Boa entrada, outro blog a visitar em permanência.

Joel escreve sobre várias coisas — e sobre o Brasil: «Ontem, por isso, fui à parada dos Jerónimos. Esperava samba, futebol, termus com café cheiroso. Mas nada. Vi uma faixa com as palavras “Brasileiros Emigrantes no Mundo — Uma questão de Estado” e, debaixo dela, meia dúzia de homens e mulheres de ar deprimido, trocando impressões sobre a desvalorização do dólar.» Pois é, Joel. O lulismo tem muito que se lhe diga.
Havia uma canção interessante de um cubano, Carlos Puebla (o que cantava Hasta Siempre Comandante até à exaustão), La Reforma Agraria, que tinha um refrão que era citado e recitado em permanência em 1975: «La reforma agraria, va/ de toda manera va, etc etc.» As pessoas tinham esquecido outros dois versos importantes da mesma canção: «Llegó el comandante/ y se acabo la diversión.» Ora, meu caro Joel, a frase não é muito grande, mas é uma visão do mundo.
Daí que eu pense que «os homens como ‘Rui’ e as mulheres como ‘Vani’, o delicioso casal de Os Normais», que é — sem dúvida — uma das melhores séries de humor da televisão (no GNT), ainda não falaram sobre o assunto.

ESCUSAM DE ME MANDAR MAILS. O Comprometido-Espectador escreveu um texto sobre a leitura do problema israelo-palestiniano. Apoio.

UMA QUESTÃO PARA OS JORNAIS. Leio, no Desejo Casar, um texto de Nuno Costa Santos. Ele propõe um novo alinhamento para os jornais portugueses. Parece-me muito bem:

«Consultório político: Ainda há por aí muita gente confusa. Mais do que consultórios sentimentais e sexuais, precisamos de consultórios políticos. O consultório político seria conduzido por um enigmático professor e apontaria direcções ideológicas, tentaria enquadrar politicamente os cidadãos e daria conselhos naquele tom pedagógico, usado nas diversas variantes editoriais da clássica “Maria”. Em vez de cartas do género “Chamo-me Guga, tenho 21 anos e sou da Amora. Desde pequenino que não me sinto lá muito homem e tenho um pai que foi comando. Devo mudar de sexo?” teríamos pedidos de consulta neste estilo: “Sou o Luís Carlos, da Bobadela, e sempre achei que era de esquerda - até ontem, quando dei por mim a dizer à mesa que o senhor Berlusconi, para além de ter uma ironia de grande originalidade, usa uns belos fatos. Professor, ando confuso quanto à minha identidade política. Devo mudar de partido?”. O consultor político deveria também ir buscar técnicas à astrologia: “Prevejo que a semana seja dramática para os nativos do Bloco de Esquerda, dado que não está prevista para estes dias nenhuma vigília contra a globalização, em todo o território nacional. Por sua vez, os nativos do PSD seguirão, esta semana, o exemplo do Governo no tocante à Função Pública – vão reformar as suas relações amorosas e sexuais no sentido de as tornar mais dinâmicas e competitivas e de instituir contratos por objectivos”. Quando se justificasse, o consultor político poderia também passar receitas aos cidadãos mais perturbados com a política nacional, como "emigração imediata para países civilizados" ou "interdição de assistir ao canal Parlamento (agora AR tv) durante mais de 15 minutos por dia". É todo um mundo de possibilidades e de interactividade com os leitores que se abre – e que talvez merecesse ser objecto de atenção por parte dos editores de política dos nossos jornais. NCS»

EDITORES & AUTORES. O Oceanos, agora num mano-a-mano com o Textos de Contracapa, menciona um livro: Lo Peor no Son los Autores (Autobiografia Editorial, 1966-1997), do excelente Mario Muchnik (sim, poderia escrever excelente a propósito do Nelson de Matos ou do Manuel Alberto Valente). Ora, sendo assim, até era bom que se falasse de livros em que os autores falam dos seus editores. Há alguns e nem só Camilo e Balzac têm coisas a dizer. De facto, eu acho que os editores, além de «homens do negócio», fazem parte desse corpo disforme dos «agentes culturais» de um país. «Mas os autores, Senhor! Porque os fazeis sofrer assim?...»

MARANHÃO. É com prazer que dou as boas-vindas a O Maranhão. Não, não se trata de um blog de homenagem a S. Luís do Maranhão, no Brasil, mas sim de uma referência à barragem do Maranhão, em Aviz, Portugal. Trata-se, portanto, de um vizinho: tem informações sobre Aviz e redondezas e, pelo que vejo, começou anteontem a sua vida, que espero seja longa.
Uma das perplexidades do Maranhão diz respeito à grafia de Aviz: é com um s ou com um z? As placas da Junta Autónoma das Estradas divergem. Já houve leitores do Aviz que colocaram a mesma pergunta. Os dicionários, de facto, escolhem agora o s de Avis, que é uma designação mais recente. Ora, nem bissectriz nem Beatriz passaram a escrever-se bissectris ou Beatris. Portanto, será Aviz nesta loja. Aquele z prolonga a palavra até ao fundo da planície. Hoje de manhã, com o sol de Verão, tive a certeza de que os dicionários se tinham enganado, mesmo que a câmara municipal tenha modernizado a grafia. Aviz tem um ar antigo. Fica bem com as laranjeiras das ruas e com a mancha de água do Maranhão, que transforma a vila numa ilha.

julho 13, 2003

KHAZAR. [LIVROS PERDIDOS, 1] Nas tardes de domingo podemos recorrer a livros de há anos, esquecidos das fichas de leitura. Sucesso nas livrarias americanas (e até francesas...) nos anos oitenta, o Dicionário Khazar, de Milorad Pavic foi publicado em Portugal em 1990. É um livro-enigma, «romance-enciclopédia», como lhe chama o autor; na verdade, trata-se de um livro que não existe (é apresentado ao leitor como uma «reconstituição da primeira edição de Daubmannus (1691) destruída em 1692 e ampliada até aos dias de hoje» (que teria sido escrito em três línguas: hebraico, grego e árabe, o que teria impossibilitado, inclusive que as entradas do dicionário apareçam por ordem alfabética; os khazar, que era suposto terem vivido algures entre o mar Cáspio e o mar Negro, também não existiram e a sua língua segue o mesmo caminho).

Na abertura:
«O autor actual deste livro garante que o leitor não será condenado a morrer depois de o ter lido, como foi o destino dos seus predecessores, em 1691, quando o Dicionário Khazar ainda estava na sua primeira edição e quando o seu primeiro autor ainda vivia. [...] O lexicógrafo propõe um acordo ao leitor: ele escreverá as suas observações antes do jantar, e o leitor lê-las-á depois das refeições. Assim, a fome impulsionará o escritor a ser breve e o leitor, saciado, não achará a introdução demasiado longa.»

E há uma história deliciosa (sim, eu sei, Pavic leu Borges...):
«Um dos primeiros exemplares desse primeiro dicionário sobre os khazar foi impresso por Daubmannus com tinta venenosa. Esse livro envenenado, protegido por uma fechadura de ouro, era acompanhado de um exemplar de controlo com uma fechadura de prata. Em 1692, a Inquisição mandou queimar a edição de Daubmannus, restando apenas o exemplar envenenado e o da fechadura de prata que o acompanhava. Estes escaparam à censura. Assim, os insubmissos e os infiéis que ousavam ler o dicionário proibido expunham-se a um perigo mortal. Aquele que abria o livro paralisava rapidamente, aguilhoado pelo seu próprio coração como se fosse por um alfinete. O leitor morria, efectivamente, na nona página, ao ler as seguintes palavras: Verbum caro factum est. (O verbo se fez carne.) O exemplar de controlo permitia conhecer o momento da chegada da morte, se fosse lido ao mesmo tempo em que se lia a obra envenenada. Nesse exemplar de controlo figurava a seguinte observação: "Quando acordardes sem sentir nenhuma dor, sabereis que não estais mais entre os vivos."»

E ainda outra, que não resisto a citar, sobre um antepassado da família Dorfmer, que possuiu um exemplar do suposto Dicionário mas que não lia:
«Jamais lia livros e dizia: "A luz deposita os seus ovos nos meus olhos, como a mosca deposita a sua saliva numa ferida. Sabe-se o que daí pode sair..." O ancião não suportava os alimentos gordurosos e, sem que a sua família observasse, mergulhava todos os dias uma folha do Dicionário Khazar no seu prato de sopa, para que ela absorvesse a gordura, e depois jogava fora a folha engordurada. Antes que a sua manobra fosse descoberta, destruiu do Lexicon. O livro era ilustrado com gravuras que o ancião não utilizava, pois elas estragavam-lhe o gosto da sopa. Somente essas páginas ilustradas teriam sido conservadas.»

Sobre o método de leitura do livro:
«O leitor pode utilizar esta obra da maneira que mais lhe agradar. [...] Pode folhear este livro da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, como era folheada a enciclopédia editada na Prússia (fontes hebraicas e islâmicas); poderá ser lido na ordem escolhida pelo leitor: pode começar, por exemplo, naquela página em que o dicionário se abrir. Pode ser lido igualmente em diagonal, a fim de se obter um corte através dos três livros, islâmico, cristão e hebraico. [...] Pode ler como come: servindo-se do olho direito como se fosse um garfo, do olho esquerdo como se fosse uma faca, e jogando fora os ossos por sobre os ombros. É o bastante. Pode ser que lhe aconteça perder-se entre as palavras deste livro, como aconteceu com Massudi, um dos autores deste dicionário, que se perdeu nos sonhos de outra pessoa sem poder encontrar o caminho de volta.»

Finalmente, para quê ler o livro?
«O autor aconselha o leitor a só pegar neste livro em caso extremo. E mesmo que apenas se contente em passar os olhos por ele, deve fazê-lo no dia em que o seu espírito e a sua vigilância estejam mais agudas do que habitualmente e que o leia como se fosse contrair a frebre "saltadora", essa doença que salta um dia em cada dois e que só nos dá febre nos dias femininos da semana.»

O livro foi publicado em Portugal pela Dom Quixote (e pelo Círculo de Leitores), em duas versões (feminina e masculina) e tem esta nota importante: «Quanto aos que julgam um livro, os críticos literários, são como os maridos traídos: sempre os últimos a saber.»

Espero ter tentado alguém.

JOSEPH MITCHELL. A bondade da L.G. fez-me chegar um livro de um dos jornalistas mais notáveis da América, Joseph Mitchell, My Ears Are Bent (Pantheon Books): «Except for a period in 1931 when I got sick of the whole business and went to sea, working on a freighter wich carried heavy machinery to Leningrad and brought Soviet pulp logs back, I have been for the last eight years a reporter on newpapers in New York City. In the summer after I left the University of North Carolina in 1929 I had an appendix operation and while getting over it I read James Bryce's American Commonwealth, a book which made me want to become a political reporter. I came to New York City with that idea in mind. The first story I remember covering was a Jack the Ripper murder in a apartment house; an old woman had been strangled with a silk stocking and cut to death in her bedroom, the walls of wich were virtually covered with large, lascivious photographs.»
Mais à frente:«Politicians, as a rule, make work easy for the reporter. Some of them are so entertaining you can write about them under water. (Herbert Hoover is not in this class. He is the gloomy kind.I have interviewed him twice and both times his face kept reminding me of the face of a fat baby troubled by gas pains.) It is perhaps an ugly commentary on the American press, but the function of the interviewer on most newspapers is to entertain, not to shed light.»
Pensem na imprensa portuguesa: «An interviewer soon begins to judge public figures on the basis of their entertainment value, overlooking their true importance. It is not easy to get an interview with Professor Franz Boas, the greatest anthropologist in the world, across a city desk, but a mild interview with Oom the Omnipotent will hit the bottom of page one under a two-column head.»

PRAIAS. Rui Branco, no País Relativo, homenageia Ramalho Ortigão. Além de destacar o seu lado mais jornalístico, distingue também o que chama «penetrante “olhar sociológico”. Esta última característica, que de costume nos faz baixar a cabeça e esperar o pior, ou pelo menos um bocejo, é exactamente o que faz cintilar os textos de Ramalho».
Nem por acaso, R.B. escolhe um dos títulos mais «luminosos» de Ramalho, As Praias de Portugal. Guia do Banhista e do Viajante (eu também falaria dos seus textos sobre a Holanda). O livro é uma preciosidade e ainda bem que a Frenesi o reeditou há dois anos: viagem, sociologia, geografia, literatura, iluminação. Aí está o programa de um livro tão inocente e aparentemente inócuo como esse, fotografando para o «turista sociológico» de hoje o mundo das praias portuguesas na viragem do século. Há outro livrinho «de época» que sempre me tocou, dentro mesmo género: Memórias da Linha de Cascais, de Branca Colaço e Maria Archer (de 1943). «Leitor amável: tu entras na moderna e simpática estação do Cais do Sodré, compras o teu bilhete, tomas lugar no óptimo comboio eléctrico, e não lanças ao caminho que percorres até Cascais um olhar aguçado pela curiosidade erudita. Nem sabes o que perdes!» Dedica um capítulo (o IX) a Oeiras, chamando-lhe Cidade do Futuro (mas não menciona Isaltino de Morais...). E há este mimo: «Desde séculos que se arreigara na tradição a fama de o Estoril ser terra maninha, terra estéril. O seu ermo, o lugar híspido, tinham por isso mesmo atraído os franciscanos, desejosos de recolhimento e de silêncio.»

CAMUS. IV R.T.D. escreve num mail que foi em A Morte Feliz, curiosamente, que «aprendeu» o significado do «sentimento religioso». É bem provável. A experiência religiosa é muitas vezes um impulso que vem de uma frase ou de um gesto fatal; nunca se sabe. Quase no final de A Morte Feliz, Mersault (portanto, o mesmo nome do personagem de O Estrangeiro) agoniza diante das encostas do Chenoua, depois de uma pleurisia (uma interrogação: seria tão doce a escrita de Camus caso não fosse tocada pela recordação do Mediterrâneo, do «mar imenso de gotas de prata»?). O fim da tarde estava cheio de nuvens vermelhas e ele diz, «mergulhado no travesseiro e de olhar posto no céu»: «Quando era pequeno, a minha mãe dizia-me que eram as almas dos mortos que subiam ao Paraíso. Era uma maravilha, ter uma alma vermelha. Agora sei que, normalmente, é só um presságio de vento. Mas continua a ser uma maravilha.» A diferença entre uma coisa e outra depende desse impulso que vem de uma frase.

CAMUS. III Nos Primeiros Cadernos (esse blog de que falava Pacheco Pereira), Camus comenta René Char e escreve: «Para os gregos, a beleza é o ponto de partida. Para um europeu, é um fim, raramente atingido. Não sou moderno.» E, depois: «Verdade deste século: à força de vivermos grandes experiências, tornamo-nos mentirosos. Acabar com tudo o mais e dizer o que tenho de mais profundo.»

CAMUS. II Em O Homem Revoltado há uma passagem que às vezes se devia comentar quando se fala do ressentimento: «O ressentimento é sempre um ressentimento contra o próprio que o experimenta. [...] Parece finalmente que o ressentimento antegoza a dor que desejaria ver sofrida pelo objecto do seu rancor. Nietzsche e Scheler têm razão quando vêem um belo exemplo desta sensibilidade no passo em que Tertuliano informa os seus leitores de que no céu a maior fonte de felicidade dos bem-aventurados será o espectáculo dos imperadores romanos a arderem no Inferno. Esta felicidade era igualmente a das pessoas de bem que iam assistir à execução de sentenças de morte.»

CAMUS. I Em Os Justos [tradução portuguesa de António Quadros, edição Livros do Brasil], que é uma peça que devia ser lida para se discutir «o terrorismo», Skouratov [o militar russo]diz: «Começamos por querer a justiça e acabamos por organizar uma polícia.» De seguida, vira-se para Kaliayev [o «socialista revolucionário» que, ao longo do texto se «distingue» de Stepan, o «revolucionário sem amor»] e oferece-lhe o perdão: «Que perdão?», pergunta o outro. «Que pergunta essa! Ofereço-lhe a sua vida.» Kaliayev pergunta-lhe: «E a quem a pediu?»

Dora, uma das revolucionárias de Os Justos: «Nessa dia a revolução será odiada pela humanidade inteira.» Stepan responde:«Que importância tem, se a amarmos o bastante para a impor à humanidade inteira e a salvar de si mesma e da escravatura?»

Mais tarde, Dora: «A morte! O cadafalso! Sempre a morte! Ah, Boria!» Annenkov: «Sim, irmã. Mas não há outra solução.» Dora: «Não digas isso. Se a morte é a única solução, não vamos nesse caso pelo bom caminho. O bom caminho é o que leva à vida e ao sol. Não é possível ter eternamente frio.»

Quantas vezes discutimos já este assunto?

Depois, encontro nos Primeiros Cadernos um fragmento de «leituras» que Camus preparou para escrever Os Justos e em que comenta textos de Voltaire, Rousseau, Schopenhauer, Netchaiev ou Mikhilovski. Em 1870, este último escreveu: «Se o povo revolucionário irrompesse pelo meu quarto com a intenção de quebrar o busto de Bielinski e destruir a minha biblioteca, lutaria contra ele até à última gota do meu sangue.»
Na peça, ele colocaria esta frase na boca de Dora: «Se tu não amas ninguém, isso não pode vir a acabar bem.»

julho 11, 2003

LISPECTOR. O Portugal dos Pequeninos cita Clarice Lispector — um dos textos de Perto do Coração Selvagem, aliás: «Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.»
Continuo a recomendar, já agora, o blog brasileiro Perto do Coração Selvagem.

RICHARD ZIMLER. Richard Zimler é escritor e vive no Porto — é o autor de O Último Cabalista de Lisboa (Quetzal), um livro belíssimo já traduzido em doze línguas. O novo livro de Richard já saiu em inglês, Hunting Midnight (Delacorte Press) — e será em breve publicado em Portugal. O tema é «vizinho» do O Último Cabalista de Lisboa, e parte da figura de John Zarco Stewart, filho de judeus secretos, e de Midnight, descendente de escravos. O primeiro artigo sobre o livro foi publicado esta semana e vale a pena dar-lhe uma vista de olhos. Richard tinha concebido um «ciclo sefardita» de vários romances, estando portanto publicados os dois primeiros (O Último Cabalista de Lisboa e Hunting Midnight), sendo o terceiro passado em Goa nos finais do século XVI.

REPAROS MATINAIS. V Creio que é Fernando Macedo o responsável por um dos melhores organizadores de bibliografias da «blogosfera» portuguesa. O seu Mostarda tem um texto muito bom sobre Blondel que, como diz, é um autor pouco conhecido em Portugal. Há alguns filósofos, ensaístas e escritores franceses dos anos cinquenta e sessenta que sofreram bastante com a onda de «depreciação da cultura francesa», sem terem culpa nenhuma — nunca o seu nome pôde ser associado à vaga de charlatães ou de banalidades que nos encheu a paciência depois. Blondel é um deles, dos que não tem culpa nenhuma. Outra referência do Mostarda é à biografia de Peter Brown sobre Santo Agostinho, que não conheço e vou procurar. A última «biografia medieval» que li devolveu-me um Maimónides (Moshe ben Maimon) fascinante, quer pelas suas duas contribuições, o Mishneh Torah e o Guia dos Perplexos, mas sobretudo pela sua vida propriamente dita, desde a fuga da península para a Palestina e para o Egipto. Uma das coisas mais surpreendentes tem, aliás, a ver com a coexistência de uma obra tão racional como a Mishneh Torah, uma codificação da Lei, e do Guia, cujo título o aproxima dos grandes místicos.

REPAROS MATINAIS. IV Corre por aí uma grande alegria com a redescoberta de Camus pelo Abrupto, retomada pelo Oceanos. Eu fico feliz — é um dos meus autores de juventude, de facto; não se pode esquecer A Morte Feliz ou A Peste, já que O Estrangeiro pertence à categoria do cânone ocidental. Toda a obra de Camus é desorientadora e, como diz JPP, os seus Cadernos podem ser lidos como textos de blog. São verdadeiros diários de perplexidades. Abri ao acaso as páginas de A Morte Feliz e de O Homem Revoltado para recuperar algumas dessas perplexidades, mas acabo sempre rendido diante da descrição da Casa Diante do Mundo desse romance (A Morte Feliz), das suas mulheres atenciosas e vagas, da disponibilidade do herói-Mersault que regressa do fundo de O Estrangeiro como se nunca tivesse sido condenado. «Mer, soleil et femmes» (tal como felicidade, tempo e tranquilidade) — trilogia fantástica de uma obra que resistiu aos ataques mais brutais da «linha da frente» do seu tempo (com Sartre ao leme, naturalmente). Camus nunca suportou bem essa maldade de Sartre, da sua «ortodoxia entusiástica» («um anti-comunista é um cão») e da sua perseguição; é compreensível: o ataque foi mais do que brutal — foi traiçoeiro e maldoso. Hoje estranho ainda mais a forma como, nos anos setenta, Camus era maltratado como «autor reaccionário» — e, mais do que isso, a forma como O Homem Revoltado ou O Mito de Sísifo serviam de argumentos para essa crucificação. O tempo passa, generosamente. Depois alguém recorda essa trilogia («Mer, soleil et femmes»; felicidade, tempo e tranquilidade) e é como se uma onda de alegria chegasse às estantes.

REPAROS MATINAIS. III Uma das vantagens de falar com o Manuel Jorge Marmelo (e de ler o seu Apenas um Pouco Tarde) é que ele se refere bastantes vezes a livros e a autores de que eu gosto particularmente. Desta vez escreveu no seu blog um texto sobre Caio Fernando Abreu e O Ovo Apunhalado, contos. Caio morreu eu 1996 e deixou um livro que merece ser lido como um retrato fantástico (escrevo «fantástico» por se trata de um livro contaminado por um delírio de duzentas páginas), Onde Andará Dulce Veiga?, um romance publicado seis anos antes pela Companhia das Letras. Dulce Veiga é uma saudosa cantora dos anos sessenta e setenta. Desapareceu misteriosamente de S. Paulo sem deixar rasto. Um jornalista escreveu um artigo sobre ela e é encarregado, pelo proprietário do jornal, de a encontrar. A busca é o começo de uma aventura e de várias desventuras, cheias de sexo, literatura, música, álcool e Brasil. O caso de Dulce Veiga lembra muito aqueles que aqui se comentavam ontem, o de J.D. Salinger e de The Catcher in the Rye e o de Jean Rhys e Um Vasto Mar de Sargaços: o seu desaparecimento criou um mito maior do que a sua própria obra. Acontece que, enquanto vamos lendo o livro de Caio Fernando Abreu, vamos reconstituindo as canções e as actuações de Dulce Veiga em cabarets, salas deespectáculo, discos cheios de pó e de riscos (eram vinyl, está bom de ver): são canções que nunca existiram. Tal como o rancho onde imaginei por várias vezes que Salinger se tinha escondido, ou a pequena casa com uma cerca de madeira pintada de branco e um baloiço cheio de mantas onde sempre imaginei que Jean Rhys passava os dias. Nunca existiram. A literatura é isso.
Sobre o desaparecimento de Salinger ou de Rhys, BZR/Buster Keaton escreveu ontem: «Interessa-me nestas referências o silêncio em si, a ausência, não as suas razões ou consequências. Apenas o silêncio do escritor. Pausa ou apagamento, como na música e na respiração. Ruído fóssil. Estática. Flat. Gritamos mais alto para ficarmos surdos, não para sermos ouvidos.» Parece-me bem.

REPAROS MATINAIS. II O Contra-a-Corrente insurge-se contra a organização de um «certame de moda» organizado pela Câmara Municipal de Évora e pela Delegação do Alentejo das Mulheres Empresárias. Vão estar lá «criadores consagrados» (não é muito verdade). O facto de fecharem várias ruas e praças da cidade branca e azul já é um transtorno que se vai tornando um mau hábito em todas as cidades e vilas portuguesas — as câmaras e juntas de freguesia transformaram as suas terras em couto privado e tratam mal os seus cidadãos: tudo o que é arraial, «certame de moda», «acontecimento desportivo», «desfile de estudantes» e outras habilidades é sempre pretexto para fechar ruas sem avisar os cidadãos e tomando «o colectivo» como factor absoluto nas suas decisões. Acho isso mal — isso e o lixo que fica de um dia para o outro, as violações sistemáticas à lei do ruído, a violação dos direitos individuais dos cidadãos.
Mas há uma coisa mais preocupante em Évora. Vivi em Évora durante alguns anos; uma cidade como aquela merecia melhor destino do que ser decorada, nos arredores, por barracões de hipermercados de média-baixa qualidade. Merecia mais do que a «modernização» à bruta e sem qualidade do «parque habitacional». Évora deixou há muito de ser «a cidade dos nossos sonhos», como escreveu Vergílio Ferreira, para ser uma cidade a saque, disponível para «modernizar-se» à vontade e sem regras. Eu, se fosse a Unesco, pedia para rever o processo de classificação como Património Mundial, antes que fosse tarde.
Às vezes, esses dias que passei em Évora parecem-se com certas imagens de azul & cobalto. Mania minha, de gostar de cidades assim. Alguém há-de perguntar: «Ai é? E as pessoas de Évora não hão-de ter direito a gostar de uma cidade estragada?» Pois sim.

REPAROS MATINAIS. I Oiço na rádio, com o habitual desfilezinho de adjectivos, que um congressista democrata anunciou que a administração Bush sabia dos atentados do 11 de Setembro e que isso vai aparecer num relatório de uma comissão mista do Senado e do Congresso destinada a avaliar a má prestação do FBI e dos serviços secretos americanos. Já se suspeitava, sendo o FBI uma das piores polícias do mundo, e com piores resultados operacionais. O dado mais relevante é este: a comissão prepara-se para assumir publicamente que o atentado terrorista do 11 de Setembro foi financiado e teve a colaboração da Arábia Saudita. Muitos dirão que não é uma novidade. É certo que não. Mas, para os mais impressionáveis, à esquerda e à direita, insisto que a ****** e o governo de ****** já tinham dito isso. No próprio dia do atentado.
[Ah, querem saber o que significam os asteriscos?…]

julho 10, 2003

PORTO SEM CERCO. O Cerco do Porto é outro blog que recomendo. Fala da cidade sem maneirismos, sim, e sem as habituais fronteiras. Sem «cerco», mesmo. Até quando fala de futebol, o que é raro nestas coisas.

E outro, ainda, o BZR, assinado por Buster Keaton, mas que na verdade é de um velho amigo que não «via» há muitos anos. Hoje é economista (e bom, parece-me) e, também em resposta ao José Pacheco Pereira, que no seu blog lançara o repto para se falar em «objectos perdidos», fala de «Objectos por perder». Escreve sobre «Comandos (TV, CD,DVD, etc.)»:

«Costumavam enfiar-se pelos abismos dos sofás e aí permanecer para grande arrelia dos donos. Os últimos eram finos como uma folha de papel. Houve também a moda dos transparentes, dos miméticos e dos deformáveis. Sobreviveram mais tempo porque, além de se fundirem entre si, começaram a incorporar funções domésticas: abrir cortinas, refrescar cerveja, controlar luzes, aspirar migalhas. O recorde pertence a uma marca branca, indo-alemã, com 387 funções, entre as quais o voto electrónico, a depilação a laser e a visão nocturna. Ainda se produzem em ateliês retro, mas apenas para fanáticos. A maior colecção encontra-se no já referido MOMA, mas há interessantes colecções de particulares.» É bom.

POLÍTICA INTERNACIONAL Paulo Gorjão anima um blog, o Bloguítica Internacional. Ele foi Visiting Fellow na Australian Defence Force Academy e é professor universitário. O seu blog é de grande utilidade para quem se interessa pela matéria e não se quer perder em propaganda e ideias feitas — como usa teclado inglês, não tem acentos, nem cedilhas, nem tis — ah, o que um português não daria por uma cedilha e um til no outro lado do mundo!
Ver, sobretudo, os seus textos sobre a área Ásia-Pacífico, evidentemente.

PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM. Ir ao Perto do Coração Selvagem de vez em quando é ainda uma surpresa. Já escrevi aqui: é um blog brasileiro mantido em homenagem a Clarice Lispector — por princípio. Mas há tudo o resto que às vezes se gosta de ler e não é preciso escrever:

«Não estamos mais no mês das borboletas, mas ontem uma luz imensa tomou conta da sala. No telefone, a voz que eu tanto ansiava ouvir. Ela ligou. E eu vi que tudo podia fazer sentido. Tudo mesmo! O cheiro que eu acho que só ela tem, as músicas da Jussara Silveira que me fizeram companhia nos últimos tempos (que ouvimos juntos no dia do vatapá), o sotaque... Também devo relatar que o anjo marajoara contribuiu muito para as claras em neve, para essa leveza em meio ao caos. O anjo e seu riso em flor, que inunda as pessoas que estão próximas, tomando de vez conta da gente.»

«O final de semana, na verdade, foi marcado por uma profunda introspecção que começou com o filme Longe do Paraíso, na sexta, seguiu com Amarcord, de Fellini, no sábado, até o último episódio de Dawson's Creek, no domingo. O fim das coisas pode sinalizar o começo de outras? Dizem que sim.
Fico pensando nisso cada vez que sou confrontado com a morte. Quando ela atinge pessoas muito próximas, que sempre habitaram meu imaginário afetivo. Nosso repertório, por mais amplo e complexo, não comporta certas respostas. Não fomos feitos pra isso. O mistério, aquele que nos remete ao ovo e à galinha, resume tudo. Desde o beijo roubado até a palavra que nunca foi dita.»

PARIS, LISBOA. Não sou fã de Paris (sim, gosto do Marais, está bem), mas os textos de José Mário Silva sobre o seu regresso de Paris ao volante de um Clio 1.2 sem ar condicionado lembram as aventuras do Sud Express no regresso da Europa, depois de um mês de lições de geografia e de ciência ferroviária. Havia quem preferisse apanhar o comboio de Paris para Madrid e regressar no Lusitania, mas eram raros — Madrid ainda não estava na moda, Espanha ainda era um país impossível, cheio de espanhóis, Ducados e comboios vagarosos. De modo que o Sud Express era a nossa referência — não éramos emigrantes, não estudávamos em Paris, não vínhamos do exílio; mas a gare de Austerlitz era uma parte essencial da nossa geografia de Verão, cheia de mochilas e de despedidas. No meu caso nunca foram «despedidas românticas», nem foram as «despedidas de Verão» (o título de Urbano), mas era a última oportunidade de comprar revistas e jornais na estação, antes do dia e meio de viagem. E havia aquela travessia tenebrosa de Espanha, do país basco; a sensação de regressar à Pátria, que nunca era muito feliz; a sujidade que se acumulava em carruagens de má qualidade e sem conforto; sem falar do abuso permanente que eram as entrevistas com os gendarmes na fronteira, quando se entrava em França, vindo de Espanha — filas intermináveis de rapazes e raparigas a quem os polícias franceses (que se recusavam a dizer uma única palavra noutra língua — nem inglês, nem espanhol) pediam passaportes e faziam perguntas sobre o destino. Lembro-me de como ficavam estupefactos quando alguém lhes dizia que só iam para Paris «de passagem». O meu caso era esse, aliás: depois do conforto das carruagens francesas, Paris era só o tempo de passar de Austerlitz para a Gare du Nord, em busca do comboio para Hamburgo ou das ligações para qualquer parte do Norte. Lembro-me de ver num gendarme, depois das perguntas habituais, o sinal de uma certa desilusão: como?, não ficas em Paris?, não vais ver os museus? Para muitos dos fanáticos de inter-rail da época (e eu era um deles), a Europa verdadeiramente começava depois de Paris — para os mais radicais, só depois da Alemanha, aliás, quando o comboio saia de Puttgarden e entrava na ponte que nos levava a Rødby, na Dinamarca. Não sabíamos o que era a mittleuropa, evidentemente. Mas havia um grau superior de civilização, sim: a forma como se era tratado nos transportes públicos, nos comboios — não como «material circulante» mas como passageiros mesmo, em carruagens limpas, com pessoal educado. Isto lembra-me algumas observações do Guerra e Pas sobre civilização e boa educação e o dever de não estacionar no lugar dos deficientes mesmo que seja só para ir ao multibanco. Os nórdicos «eram chatos», sim, mas nunca estacionavam indevidamente onde quer que fosse. E tinham uma paciência imoderada: em Oslo (que tinha uma estação bonita, de plataformas de madeira), um cavalheiro da companhia ferroviária passou uma boa meia-hora a explicar como é que se fazia o percurso até Bergen, se poderia chegar lá de manhã (para aproveitar a noite inteira de viagem no comboio) para ir visitar o parque e a montanha, evocando Grieg, Peer Gynt e a memória de Ibsen. Tudo junto.