UM TEXTO LONGO, SIM. Ora, não me lixem. Às vezes há distracções nos blogs, naturalmente, e vê-se onde cada um quer chegar — a qualquer lugar muito longe, a qualquer lugar muito perto. Mas irrita-me muito aquele ar de circunspecção polida, muito culta e importante, escandalizada e correcta ao mesmo tempo. Todos querem ser o «observatório que não é observado», aquele que repara em todos os defeitos dos outros, aquele a quem nada comove, aquele para quem uma coisa é sempre outra, muito pior, muito enganadora. Ah, eu sei, todos sabemos, as pessoas fingem, exibimo-nos em todo o lado, citam-se livros, fala-se de filmes, discos, bandas, viagens, retratos, tudo o que comove. Mas irrita-me o tom, esse tom de quem desconfia que só o próprio é que lê os livros que leu — e leu, certamente. Mas as mentiras dos outros também são agradáveis, detectam-se com facilidade, paira sobre elas uma aura de vulgaridade. Desiludimo-nos? Não: a vida é assim mesmo, contabilizamos doutoramentos com bibliografias frágeis, artigos com rabos de fora. Irrita-me quem veio aos blogs para moralizar e evangelizar, espalhar a verdade, ganhar adeptos, praticar a pior das coisas que é o proselitismo no meio da tempestade e da desgraça. Porque se não houvesse desgraça não havia «blogosfera» (essa comunidade de cinquenta e seis ou oitenta e dois amigos que se conhecem e falam uns para os outros, e se cumprimentam, se visitam, se irritam), as pessoas viam televisão e faziam piqueniques debaixo dos sobreiros ou iam à pesca para a beira do mar. Mas irrita-me isso, sim, essa tendência para não ironizar, para fazer de tudo uma campanha brutal contra a fragilidade dos outros e contra os seus pecados, as suas falhas, as suas indignidades, as suas mentiras — está tudo tão à vista, aqui.
Repito: está tudo tão à vista, aqui — os que contam as visitas e as
page-views, os que não resistem a dizer que foram citados. Mas há os outros, sim: os que escrevem — e pronto. Os que dizem o que querem dizer. Os que se estão nas tintas. Os que têm uma palavra que não nega que gostava de ser lida? É isso um pecado assim tão criticável, tão menosprezável? Quando é que as pessoas escrevem — e pronto? Quando é que passam a escrever o que querem mesmo dizer, escondendo aquilo que acham que é para manter escondido, e não estão com muitas justificações, lapsos, vulgaridades, paralaxes?
Há nos blogs uma fragilidade muito evidente: são coisas que se escrevem porque sim, porque apetece naquele momento, porque nos lembramos, porque alguém falou disso, porque a ventania vem do lado do mar, porque o pó se levantou no meio do deserto em frases curtas, em textos longos, ou porque começou a chover no domingo. Essa fragilidade é um bem porque podemos discutir com ela — ou comover-nos. Ah, mas claro que a comoção é um perigo, tal como a pieguice, a lamechice, o horror aos outros, sim, claro que é. Mas pior do que isso vão ser os blogs dos deputados quando o parlamento publicar o livro de estilo (será como o código de conduta do
Expresso?).
E por que é que os oitenta e dois amigos ou os cinquenta e seis conhecidos não hão-de poder falar uns para os outros? Entre mil blogs portugueses, por que é que não se hão-de conhecer e dizer «piadas privadas» e falar do que lhes apetece? E por que é que tem de começar a haver auto-censura estabelecida para que fulano não desça do púlpito, a desancar? Não me lixem. Vigiemo-nos, comentemo-nos em regime de permanência. Por que é que não se há-de ser a poeira da praia?
A nossa escravidão, desde a infância, é definir «posse» e «poder». O vazio é o único lugar de encontro quando descobrimos essas circunstâncias — e, nesse lugar, compreender não é concordar, tal como discordar não significa não compreender. Um comentador do Talmude dizia que devíamos fugir da superstição e da crendice, das faúlhas do céu — mas que, na verdade, não se pode viver sem essa chama de irracionalidade, tal como a
certeza absoluta é um acto de idolatria, de imprescindibilidade — e a imprescindibilidade é a idolatria com pés de barro. O que tem a ver com outra característica que anda aí à solta, oscilando entre a agressividade e a vitimização: ambas são compensações, claro, compreensíveis, somos humanos, tão humanos. Nos blogs, a única coisa a cobiçar é a aceitação dos outros, o reconhecimento — não os livros que os outros leram ou não leram , os actos de censura, a comunhão ideológica. Isso é tão humano como a chama de irracionalidade que não se pode afastar da vida inteira, sob pena de a «vida inteira» ser só «parte dela», a mais visível, a mais autoritária, a mais inflexível. Quem tem listas de reivindicações sobre o presente e culpados permanentes a apontar, vê reduzida a sua margem de criatividade.
E o riso. O riso de todas as maneiras. O riso devia ser o centro de muitos debates, contra o risco de
intelectualizar toda a linguagem, isto é, de lhe criar uma autoridade escolar em anexo (sim, como
attachment). Há pessoas que riem muito, há pessoas que riem pouco, há pessoas que só riem e há gente que não ri nem sabe rir. Não é obrigatório rir em nenhuma circunstância (o Nuno Costa Santos criticava essa tendência para a «obrigatoriedade do humor» nos blogs, a obrigatoriedade de se «ser engraçado»), mas o riso é um caminho que nunca se pode evitar. Tal como a ironia, a piada. A pequena piada. E rir de si próprio sobretudo, não se levar tão a sério.