junho 30, 2004

CONSPIRAÇÃO. Sim, há a nossa indignação e o esbanjamento ético correspondente. A quantidade de virgens ofendidas e escandalizadas com o actual processo político é realmente cansativa, perorando sobre moral, abandonados que estamos, coisa vil que são os princípios. Já o sabíamos de há muito. Durão faltou às promessas -- à promessa de cumprir o mandato. Isso é de uma clareza mais do que lapidar. Mas, para lá de tudo isso, que nos fornece um capital de indignação muito para lá do suficiente, e da hipótese de Santana Lopes ir a primeiro-ministro, que nos preenche vários parágrafos entre a pilhéria e a apreensão, há uma realidade muito mais prática que também ocupa espaço: o que vai mesmo acontecer? Nessa matéria, confesso, suponho que Santana prefere eleições. É o seu campo aberto preferido, liberta-o da cumplicidade do presidente, da desconfiança do seu eleitorado, da artilharia da oposição. Por isso, sendo evidente para qualquer pessoa que a esquerda deve exigir eleições quanto antes (seria uma vergonha que o não fizesse), poderíamos especular sobre isso: eu acho que Santana prefere ir a eleições, caso seja designado presidente do PSD amanhã à noite. Pode perder, sim, arrastando consigo a vingança que lhe foi dedicada por Durão Barroso (deixar-lhe o partido e uma hipótese de governo); mas, em campanha, Santana estará como peixe na água, sacudindo do capote a «tralha barrosista» (o rigor orçamental, a ditadura das Finanças), fazendo as tropelias que entender, desafiando Ferro Rodrigues, nomeando adversários. Esse é um ponto.
Ele sabe que, se aceitar as exigências de Sampaio e dos «pilares do regime» (desde as regras de bom-comportameno orçamental até à ideia de morigeração geral), acabará o Santana Lopes como Santana Lopes gosta de vender Santana Lopes. Deixar que o Presidente lhe diga como deve ser tratada a economia, como deve falar sobre a Justiça ou sobre a iliteracia, sobre a «opção atlantista» (que tema!, que tema!) ou sobre os costumes em geral, parece-me que significa abdicar de coisas bastantes.

junho 27, 2004

O GÉNIO ESTÁ ONDE? O Ilídio Martins, com quem costumo concordar em muitas coisas, tremeu de pânico com o penálti marcado pelo Helder Postiga. E não foi o único: «O que me ia matando foi aquele penálti do Postiga. Não, não achei nada genial. O que eu achei é que Postiga arriscou muito, talvez demasiado. O que estaria a dizer-se agora de Postiga caso tivesse falhado e o falhanço tivesse ditado a eliminação de Portugal?» Acontece que o penálti, assim marcado, com esse ar de folha-seca, à Djalminha, foi a gargalhada que humilhou os ingleses definitivamente. Esse penalti, mais o sorriso do Cristiano Ronaldo depois de marcar o seu, mais o de Ricardo, empurraram os ingleses para o fundo das primeiras páginas. E isso é que foi delicioso. O futebol é assim. E se Garrincha não tem feito aqueles dribles durante a sua vida inteira? E se Didi tivesse sido mais correcto? E se Cubillas não usasse o peito do pé esquerdo para ajeitar a bola antes de a trocar para o direito -- como uma mania -- diante da irritação dos adversários? Provavelmente, se Postiga tivesse falhado, estaríamos todos a pensar que tinha sido infantil, sim. Acho que sim. Mas, como marcou, hoje rimos do James, e do Vassel, e do Owen, e do Beckham, e do Cole, e do Scholes, e do The Sun ou do Daily Mirror. E do Tottenham, já agora. E, assim, o golo de Postiga arrasou a potência da treta que era o futebol inglês em selecção nacional: engolidos pelo miúdo que preferiu uma folha-seca, um «vai buscar!» sem pestanejar. Não houve nenhuma imagem que mais me divertisse nesse jogo: a de James, vendo a bola passar-lhe ao lado. Eu, se fosse um dos patetas que escreveu aquelas coisas no Mirror e no Sun, escondia-me sempre que visse passar Postiga a caminho dos treinos no Tottenham.

FINLÂNDIA. O Sob a Estrela do Norte é um blog português feito na Finlândia. Há uns dias, publicou uma fotografia de Kilpisjärvi, e desapareceu «para contemplação». Reconheço que é uma boa hipótese. Estive na Finlândia durante uns tempos, e é um dos cenários mais espantosos do Grande Norte. Nestes dias de Euro ouvem-se lêem-se alarvidades de todo o género: uma delas, quando se comenta o jogo da Dinamarca ou da Suécia, diz respeito à frieza dos nórdicos (os finlandeses não são propriamente nórdicos) -- «gente sem emoções», dizia ontem um energúmeno futeboleiro na rádio. Ninguém pode viver «sem emoções» diante do sol da meia-noite (não, não é o meu «espírito contemplativo» a falar) ou da aurora boreal de Outubro. Durante esses tempos de Helsínquia, corria quase à universidade para ler os jornais portugueses que chegavam: o Expresso (que tinha um correspondente local, o Pedro Oliveira, com quem fiz uma viagem gelada, verdadeiramente gelada, pela Carélia) e o Jornal de Notícias. Uma senhora da sala de leitura, ao fim de uns dias, punha de parte o JN, como se dissesse «este já tem cliente», e entregava-mo com uma piada em finlandês que eu nunca percebia -- mas ria bastante. Compreendo o autor do Sob a Estrela do Norte, ao abandonar-se à luz de Kilpisjärvi. Sem querer, em terras de calor, recordo Rovaniemi -- a cidade do Círculo Polar que os nazis destruiram e Alvar Aalto reconstruiu --, Muonio, Kautokeino, Kuopio, as estradas silenciosas da Lapónia, mas também aquela neblina tardia sobre a Mannerheim, as páginas incompreensíveis do Helsingin Sanomat (que tinha publicidade em toda a primeira página excepto no cabeçalho), o Parque Sibelius (e a Casa Finlandia, de Alvar Aalto) e até as tardes em que se procurava um pouco de silêncio na Temppeliaukio (uma das mais belas igrejas de Helsínquia, escavada na rocha). Sim, dizer que eles são frios é de uma banalidade estonteante.

COMENTADORES. Não sei quem disse aos comentadores desportivos (ou seja, de futebol) que a sua função é, durante os jogos, substituírem o treinador e fazerem substituições por ele, de controle remoto na mão. Geralmente, dá asneira. Ao ver o Portugal-Inglaterra na SportTv brasileira, o comentador dizia: «Bom, Ricardo tem fama de defender penaltis, mas desta vez ainda não vimos nada disso...» Pimba: dois segundos depois Ricardo defendia o pontapé de Vassel (na verdade, desde o intervalo que um deles pedia a entrada de Rui Costa...). Na televisão portuguesa há uma enorme quantidade de substituições que Scolari devia ter feito durante cada jogo e, salvo erro, devia ter convocado outra equipa completamente diferente. O brasileiro Leonam Penna gostava de futebol efectivamente jogado. Um dia, a meio de um jogo, perguntaram-lhe o que achava daqueles remates à trave. Está quase lá, hã, Leonam? Imagino o que diriam sumidades como Diamantino Miranda, Pedro Gomes, Gabriel Alves e outros. Ele limitou-se a responder: «Bom. Bola na trave é bola mal chutada.»

VOX POPULI. José Pacheco Pereira tem razão por motivos inteiramente desvalorizados na discussão em torno da nomeação de Santana Lopes. Ou seja: a nomeação de Santana Lopes significa a escolha, por parte do PSD, de quem melhor poderá ganhar as próximas eleições legislativas – incluindo se forem «as antecipadas», a muito curto prazo. O PSD das províncias sempre achou graça a Santana Lopes: o rapaz tem jeito, palavra, ousadia e bom porte. Se as eleições internas no PSD fossem abertas a esse PSD das grandes províncias, Santana Lopes teria arrebatado o partido há muito. O país das grandes províncias ou respeita um professor ou aceita deixar-se seduzir por um sedutor.
António José Teixeira tinha toda a razão quando, na SIC-Notícias, também dizia que esse (o de Santana Lopes) seria um governo inteiramente diferente, o que não deve fazer-nos pensar nas melhores razões. Em relação ao post anterior: sim, seria um governo saído do mesmo «quadro parlamentar», mas «o quadro parlamentar» é que seria outro, assim de repente.

BOM MOTIVO, MAU MOTIVO. Vital Moreira encontra um bom e um mau motivo para convocar eleições antecipadas. O primeiro motivo, o mau, é o que decorre «dos sistemas parlamentares de governo» – não faz sentido pedir novas eleições porque existe a «possibilidade de formar mais do que um governo dentro do mesmo quadro parlamentar». Seria o presente caso: a base parlamentar existe. O segundo motivo, o bom, «consiste em sublinhar que a formação de outro governo do PSD sem novas eleições significaria premiar indevidamente um partido cujo líder abandonou o cargo, desrespeitando o compromisso político com os eleitores, em troco de um lugar externo». Sendo assim, as eleições antecipadas serviriam também para castigar o partido – ou «quadro parlamentar» – que foi derrotado a 13 de Julho, em eleições que não têm nada a ver com o assunto. Nesse caso, a reacção de Jorge Sampaio teria de ser mais do que uma amostra daquela indignaçãozinha de quem descobriu que está a ser ignorado ou que a vida política pode «decorrer» independentemente da sua presença ou da sua ausência.
Depois da sua reacção diante das câmaras de televisão, o dr. Sampaio poderá convocar novas eleições – ou nomear Santana Lopes, mostrando que, pura e simplesmente, gosta de se indignar para mostrar que está ali.
A questão política (eu sei: boa para especulações e para analistas) é que um eventual governo de Santana Lopes não seria o governo nascido do quadro eleitoral anterior – a prova está na reacção de Manuela Ferreira Leite, por exemplo. Ou seja: Santana Lopes formaria um governo do PSD, mas com base num programa inteiramente diferente daquele que o «quadro parlamentar actual» validou, aprovou e defendeu. Eu sei que é o mesmo partido. Mas é outro partido.

A CONSTITUIÇÃO VISTA DO BRASIL. O Prof. Jorge Miranda estava com um semblante mais do que carregado enquanto aguardava o seu voo do Brasil para Portugal ontem mesmo; ao vê-lo de passagem, num aeroporto, apeteceu-me consolá-lo: «Eu sei, professor, eu sei… A Constituição…».

A FALTA QUE FAZ. Ah, a falta que faz a literatura num dia destes. Sinceramente. Às vezes a literatura é tão menos absurda do que isto. Isto, a esquizofrenia política destes dois ou três dias. Nem sempre o absurdo está na nossa agenda, como se sabe.

junho 25, 2004

O MEU MAU CARÁCTER (O CANTINHO DO HOOLIGAN), 2. Ah, esquecia-me de dizer que também gosto muito quando a França perde, mesmo aos flipers. Desde Platini (sim, eu nunca gostei de Platini) que tinha isto atravessado. Obrigado Charisteas, ou lá como te chamas.

PATRIOTAS DE TRAZER PELA TRELA. Depois de ler os textos editoriais da imprensa desportiva (a maior parte, confesso), e sem ser da imprensa desportiva, sobre a Pátria e a vontade de vencer, o desígnio inquebrantável e o mérito e a convicção, os condestáveis de Portugal e os corações de leão, a mais velha aliança e a perfídia dos adversários, o querer inabalável e a confiança fantástica, o génio lusitano e o imparável arreganho [sic] das nossas tropas, das falanges verde-rubras -- e tudo isto a propósito de um fantástico jogo de futebol --, só vejo duas hipóteses: 1) enviar-lhes um frasquinho de Dimicina ou Ultra-Levur, para deter a incontinência que parece estar fora de controle; 2) erguer um monumental manguito a essa fauna.
Eles têm uma enorme capacidade para estragar qualquer jogo de futebol. Nestas alturas, releio aqueles textos de Nelson Rodrigues sobre as vitórias brasileiras (nomeadamente de 1958, na Suécia, e de 1962, no Chile) e anoto as diferenças. Ah, patriotas de trazer pela trela, não vos basta que os rapazes marquem golos e que joguem como jogadores, que as vitórias sejam saborosas e merecidas.Não vos bastam as bandeiras, o entusiasmo, a criancice, até o deslize, a paixão, o encantamento. É preciso estragar tudo logo de seguida: quantas das vossas lágrimas são a merda de Portugal.

POR HORAS, 2. A reacção do CAA, no Blasfémias, é perfeitamente justificada.

POR HORAS. Eu admito, com a sinceridade dos incrédulos, que Durão Barroso irá para Bruxelas, a menos que aconteça alguma coisa irremediável. Escrevi na quinta-feira, que duvidava da decisão do primeiro-ministro, mas agora tenho razões para encarar essa hipótese. Ou seja, é uma grande animação, a que está prometida para amanhã -- configurando o que pode ser um totobola perfeito, com apostas mútuas ou mutuamente armadilhadas. Esta ideia de Pedro Santana Lopes ser o novo primeiro-ministro também faz parte das apostas mútuas.

De qualquer modo, fica aí o texto:
O regresso do pântano?

Portugal raramente nos serve. António Guterres queixou-se do pântano e aproveitou uma derrota eleitoral para se livrar do país. Bom, não devia dizer-se isto com esta leviandade, mas, intimamente, todos sabemos que não andou muito longe disso. Eu imagino Guterres nessa noite de desaire eleitoral, cercado pelo grupo de doutores do partido, pelos recados – ao longe – do dr. Soares, pelos avisos dos amigos, pelo arrependimento de não ter aceite os cargos internacionais, por alguma crispação alheia, pelo riso dos cínicos. E invocou as suas razões, hoje esquecidas de quase toda a gente, para sair. Portugal não nos serve. Periodicamente transforma-se num pântano. Guterres, como outros antes dele, leu na sua derrota o indício de uma ingratidão (do país, do partido), as sombras dessa guerra entre subgrupos socialistas para reivindicar vitórias em trânsito, coisas medíocres. Muitos dos que o criticaram em público comentaram, na intimidade dos subgrupos, que Guterres tinha razão: o pântano alastrara e todas as suas margens eram inseguras.
Portugal não nos serve. É um país relativamente fácil, ao contrário do que se apregoa. Sucumbe, flutua, mostra-se cínico quando se lhe pede grandeza, alonga a biqueira do sapato para se mostrar moderno (obrigado, Eça).
Esta notícia de que Durão Barroso estaria talhado para presidir à Comissão Europeia pode bem ser uma armadilha, e traz suficiente água no bico. O primeiro-ministro sabe que é uma impossibilidade, do ponto de vista ético – mas a ética, toda a gente sabe, não devia ter nada a ver com a política. A esquerda cobrar-lhe-á (não sem razão, diga-se de passagem) qualquer hesitação, mesmo que a coligação se desfaça (como parece estar escrito). Guterres viveu esse dilema diante da mesma hipótese e, acredito, Portugal serviu-lhe menos ainda, a partir de então: país pequeno, cheio de pronomes e advérbios, a precisar de incentivos mesmo quando tem tudo para triunfar, minúsculo de teimosia, maiúsculo de ego.
Mas, seja como for, Durão Barroso sabe que se trata de uma impossibilidade, até porque o ciclo eleitoral não lho permite. Até lá – até ter uma oportunidade – tem uma coligação para resolver (e não se compreende tão bem o que Nobre Guedes e Telmo Correia têm vindo a dizer?) e alguns meses para fazer esquecer o período mais obtuso da sua governação, rendido ao “discurso da tanga”. A partir de agora não tem desculpas nem oportunidades. A depressão tem um período para se instalar e outro para se ultrapassar: ambos já passaram, irremediavelmente. Já não há álibis.
Guterres caiu definitivamente quando, depois de umas férias de Verão com as capivaras e os jacarés do Pantanal, regressou e pronunciou, em Esposende, uma inaceitável e constrangedora homilia que contrariava tudo aquilo que o bom-senso aconselhava: onde se lhe pedia mudança, Guterres desculpou-se. Em vez do confronto e da escolha, Guterres preferiu o consenso geral e a concessão – para não dizer a ausência de personalidade.
Convém perceber que há uma diferença essencial entre “governar” e “gerir”. Gerir com bom-senso, qualquer burocrata, contabilista ou jovem diplomado pode fazer, com maior ou menor competência. Mas governar – ou seja, escolher, dirigir, ousar, imaginar, arriscar, não facilitar e, finalmente, entusiasmar – exige mais do que um gabinete para a gestão de crises correntes: exige ousadia. Com as coisas neste estado, as oposições não precisam de se esforçar muito – a menos que o governo se encarregue de, com a regularidade de um pêndulo, se devorar a si próprio e de alimentar de suspeitas a perversidade dos eleitores. E aí sim, teríamos o regresso do pântano. É um cenário confrangedor.

POR HORAS, POR UM FIO. Alguém me explica, sem grandes teorias ou rodeios, o que está por horas?

UM ANO. Também do Descrédito.

AÇORES, UM ANO. O Foguetabraze faz um ano, também. Cracas, lapas, Especial Mello Abreu, Beldina, lagoas ao fim da tarde, cervejas no Pópulo, areia de Porto Formoso, criptoméridas da Ponta da Madrugada, e abraços.

TERRAS DO NUNCA. O Terras do Nunca, do João Fernandes, faz um ano. Eu diverti-me muitas vezes com o João, depois de termos postado. Encontrávamo-nos nos corredores do jornal e prometíamos beber uma cerveja que ainda está por abrir nesta altura do ano. Mas, no meio da esquizofrenia, nesses encontros raramente falávamos sobre os blogs, havia sempre outras coisas. Não temos as mesmas ideias sobre o mundo, mas creio que o mundo também tem ideias diferentes sobre nós.

O MEU MAU CARÁCTER (O CANTINHO DO HOOLIGAN). Eu não tenho coração para penaltis. Nem para penaltis dos outros, quanto mais dos portugueses. Durante o Euro, vi jogos em vários lugares – anteontem estava no Rio, a assistir à eliminação da Alemanha por uma das mais deliciosas equipas deste campeonato, a República Checa. No barzinho de Copacabana que tinha a televisão ligada, os apoiantes da Alemanha eram tratados como «argentinos». Não havia pior insulto. Ontem vi o jogo em Salvador, era feriado de São João na Baía e eu vi isso como um mau sinal, as pessoas estavam desmobilizadas. Esperei que a selecção portuguesa estivesse mais mobilizada. Esteve, sim, mas teve fases (nem vou falar disso, mas acho que esteve bem e que Scolari também mexeu bem na equipa). Sofri à antiga portuguesa.
Eu não gostava de Beckham; agora gosto bastante. Gosto quando ele falha, quando ele falha seja o que for, um passe, um salto para trás, mas de penaltis nem se fala – gostei que ele falhasse aquele. Também gosto muito quando Vassel falha seja o que for. Vejo-o fazer um lançamento lateral e apetece-me que ele falhe estrondosamente ou parta um braço (depois pode recompor-se); quando se trata de um penalti, então, o meu coração rejubila.
Mas eu não tenho coração para penaltis. Aliás, eu não devia ter coração para jogos destes. Foi emocionante mas teve fases. Teve aquela fase em que não se sabia até onde ia o nosso ataque; teve depois a fase em que não se sabia até onde ia a nossa resistência. E teve, então, a fase em que não se sabia até onde ia a minha resistência. Foi até ao fim, até ao penalti de Vassel; depois levantei-me e ia desistir, quando Ricardo marcou o seu penalti. Eu não tenho coração para penaltis: quando há jogos destes nem vale a pena falar de tácticas, de falhanços, de jogadas perdidas. Eu estava preparado para um Rooney fantástico, exuberante, perigoso, com o dobro do talento de Beckham, o que não era difícil. Mas também me esquecia de dizer que gosto quando Rooney sai lesionado a meio de um jogo contra Portugal. Gosto quando ele se lesiona ao voltar-se para o lado, quando parte um dente a mastigar pastilha elástica, ou se engasga a beber água. Gosto bastante quando acontecem desgraças dessas num jogo que vai a penaltis.
Num jogo destes, todos temos o direito de ter mau carácter, de querer que Scholes fique careca, que Cole tropece nas próprias pernas, que aquele adepto inglês de cara pintada e com asas inglesas caia num precipício e que Owen tenha um ataque de urticária.
E portanto foi a vitória da rapaziada contra os metrossexuais. Nunca desistiram. Tiveram momentos em que jogaram menos bem, mas isso não me interessa. E até ajudo a meter os ingleses nos aviões. Com uma chuva de manguitos. Um hooligan é um hooligan.

ESQUIZOFRENIA. «Será que alguém pode ser mais esquizofrênico do que o Postiga?», pergunta-me o Milton Ribeiro. «Ele era a única pessoa calma no Estádio da Luz. Quase morri naquele pênalti.» Tem razão: um penalti à Djalminha, uma verdadeira folha seca, exemplar.

junho 23, 2004

BLOGOJORNAL. Escrevi há uns dias (respondendo a um leitor que insistia que eu tinha de ter uma opinião sobre as Europeias) que "um blog não é uma dependência jornalística". O Eduardo Prado Coelho, no Publico, diz que "um jornal não é exactamente um 'blogue'." O Paulo Gorjão diz que "um blogue não é exactamente um jornal." Ora, a coisa promete.

EURO NO BRASIL, 3. Vi hoje, no Rio, as primeiras camisolas falsificadas da selecção nacional fora de portas: lá estavam Figo com o número 7 e Deco com o número 11, imagine-se.

PARABÉNS, 2. Ao Tempo Dual. Um ano.

PARABÉNS, 1. Ao Bruno Sena Martins, do Avatares de Desejo. Um ano.

junho 22, 2004

SOLSTÍCIO. Bom verão para o Causa Nossa.

BRASIL NO EURO, 2. O fluminense, tricolor-tricolor, Sérgio Sant’anna (O Voo da Madrugada, publicado pela Cotovia) dizia-me que o Euro está a atrasar o trabalho do seu novo livro. Já preparou tudo para o Portugal-Inglaterra.

BRASIL NO EURO. O Besugo, do Blogamemucho, acha que os brasileiros não estão por nós no Euro. Não acho que seja assim. A imprensa, agora, está pró-portuguesa – antes, no começo, era só a televisão (nomeadamente o canal Sportv, que transmite todos os jogos). Quando o árbitro deu por terminada a partida entre Portugal e Rússia, os comentadores do Sportv festejaram a vitória portuguesa como se fosse sua. Durante o Portugal-Espanha, foram claramente pró-portugueses, não tenho dúvida – e muito bem informados. O Globo de ontem festejava o inglês Rooney, que tem muitos admiradores, com esta nota na primeira página: «Agora, o english team defrontará a selecção portuguesa». O Lance, o diário desportivo mais importante, que começou por vibrar com a França, a Inglaterra e a Itália, naturalmente, tem sido muito mais pró-português. Mas é na rua que se nota muito mais esse sentimento. Não, não concordo contigo, meu caro Besugo. Ah… esqueci-me de dizer: claro que a imprensa brasileira festejou bastante a ripada de 3-0 (em Campo Grande) que Portugal levou do Brasil em vólei. E o Estado de São Paulo, creio, dizia: «Brasil ganhou a Portugal com equipa de reservas.» Era a pura verdade.

BRIZOLA. Passei há instantes na Pinheiro Machado, onde fica o Palácio Guanabara, nas Laranjeiras (Rio de Janeiro). Lula tinha acabado de entrar, para visitar o velório de Leonel Brizola, e foi recebido com gritos de «traidor!»; houve tumultos e a fila de cerca de duas mil pessoas demorou um pouco a recompor-se. De manhã, Rosinha Mateus, a governadora do Rio, e o marido Garotinho, foram cumprimentados pela multidão. As sondagens de hoje dizem que a rejeição de Lula chegou aos 47,6% (apenas 16% dizem que votariam Lula de novo) – mas, de qualquer modo, não deixa de ser incompreensível e absurdo que os Garotinhos sejam bem recebidos e Lula seja maltratado no interior do próprio palácio. Nos últimos tempos, Brizola foi ácido para Lula e foi, mesmo, uma das fontes (a principal) para o controverso artigo do The New York Times sobre os «hábitos alcoólicos» do presidente – que respondeu ainda mais ácido, dizendo que «disso [bebida] ele tem muita experiência». Memória, memória… Ou é do calor?

junho 21, 2004

AÍ ESTÁ. Muito bem, desta vez convenceram, sim senhor.

junho 20, 2004

POLICIAIS. Os livros de Alfredo Garcia-Roza (publicados no Brasil pela Companhia das Letras, em Portugal pela Gótica) têm sido outra das leituras, também do género «obra completa», para conhecer melhor as investigações do delegado Espinosa no Rio de Janeiro. Um sabor extraordinário, uma generosidade à flor da pele, uma melancolia que só o Rio oferece, sem ferir, sem magoar. Terei de ir ao Bairro do Peixoto, nas traseiras de Copacabana, para conhecer a praça onde vive Espinosa, onde os seus livros se amontoam, onde ele come kibe e se encontra com Irene. Não há outro remédio, neste género de livros.

LIVROS DE AVENTURAS. Por vários motivos li de seguida os livros de Artur Pérez-Reverte. Sem parar, com poucas interrupções. E lembro-me de uma entrevista ao Diário de Notícias de há uns meses (cito de memória): «Não, não sou artista. Eu sou um profissional; conto histórias.» Acho que há nessa ideia uma rara dignidade, só possível num escritor de eleição.

FIGO. As declarações de Figo sobre «o respeito aos históricos» são muito más. Não pelo que dizem. Mas pelo que deixam para ver: chato, rezinga, chatarrão, mesmo quando marca golos. Figo é um dos expoentes do nosso futebol, sem dúvida, um jogador de eleição. Mas essa ideia de que ninguém tem o direito de julgar o que fazem os jogadores em campo -- porque eles não comentam cinema, nem literatura ou política -- tem endereço claro. E a resposta é só uma: era o que faltava. O respeito pelos históricos é uma grande farfalhice por parte da rapaziada que se julga sempre absolvida, mesmo que não jogue coisa que se veja. É uma conversa muito antiga, para quem tenha estado distraído.

DIREITA. O Causa Nossa prepara a sua Festa do Solstício, no próximo dia 22. Infelizmente, não posso estar. Só há uma coisa que me intriga: o Aviz é candidato a um dos prémios do Causa Nossa – como blog de direita, juntamente com o Blasfémias e o Mar Salgado. Quando voltar a defender a abstenção terei de pensar duas vezes.

ENTUSIASMO JUVENIL. Seguindo os jogos do Euro pela televisão brasileira noto duas coisas: primeiro, que o Brasil torce mesmo por Portugal e irrita-se com os jogadores da selecção portuguesa como se fossem os do escrete; segundo, que os seus comentários sobre as bancadas dos estádios levam-me a crer que já não pensam que as portuguesas andam todas de lenço na cabeça ou que roubaram o bigode do pai. Bem pelo contrário, ficam entusiasmados. A impressão não é só minha; trata-se de uma autêntica revolução cultural.

junho 17, 2004

OBRIGADO. {ACTUALIZADO} Sim, sinto-me mesmo obrigado a agradecer as mensagens pelo primeiro aniversário do Aviz. Há muita gente que se interroga sobre «para quem escreve», mas a blogosfera tem essa vantagem -- só tem esses problemas quem quer ser lido por outros leitores. Neste caso, alguns dos recados que chegaram à caixa de correio ou que vieram pela própria blogosfera, deixaram um pouco -- um rasto -- de comoção (às vezes pelas razões menos evidentes). Por isso tenho mesmo de agradecer, ainda que seja assim, a uma lista de amigos anónimos ou conhecidos, virtuais ou reais (isso não tem grande importância, pois não?, somos só um coração a bater na net).
Obrigado (desculpem aqueles que ainda não li): A Vida dos Meus Dias, Adufe, Albergue dos Danados, Almocreve das Petas, Ânimo, Apenas um Pouco Tarde, Arcabuz, Avatares de Um Desejo, Azelhas do Mar, Babugem, Blasfémias, Blog Suite Blog, Blogame Mucho, Blogue dos Marretas, Bloguítica, Bomba Inteligente, Causa Nossa, Catalunya@Large, Cibertúlia, Classe Média, Companhia de Moçambique, Contra a Corrente, Crónicas Matinais, Daedalus, Desassossegada, Diário de Lisboa, Elsinore, Esmaltes & Jóias, Esquizóide, Estrada do Coco, Fogotabrase, Fumaças, Grande Loja do Queijo Limiano, Hauptwege und Nebenwege, Impertinências, Janela Indiscreta, Klépsidra, Linha de Cabotagem, Local & Blogal, Lua, My Moleskine, Ma’Schamba, Mar Salgado, Não Esperem Nada de Mim, O Bom Selvagem/A Tasca da Cultura, O Estrago da Nação, O Intermitente, O Maranhão, Opiniondesmaker, Placard, Ponto.Média, PréDatado, Quartzo, Feldspato & Mica, Respública, Retorta, Rua da Judiaria, Seta Despedida, Sob a Estrela do Norte, Terras do Nunca, Touch of Evil, Tugir, Um Bigo Meu, Um Pouco Mais de Sul, Virgem Nação, Voz do Deserto.

O Aviz tem estado mais parado nos últimos tempos -- o trabalho nómada tem destas desvantagens. Mas, como se fala sempre disso nestas ocasiões, continuo a não saber se acaba, quando acaba ou se isso é apenas uma preocupação sem sentido. Deve ser. Quando, um dia, acabar, será como a chuva que vem de repente ou se afasta sem darmos isso; nada de cerimónias. Estamos todos de passagem pela rede e não vale a pena filosofar sobre o assunto.

junho 16, 2004

TERRA QUEIMADA. [Actualizado] Se as televisões anunciam que «o filho [maior, vacinado, independente, emancipado] de fulano/fulana» (no caso, Leonor Beleza) foi preso por tráfico de haxixe, não surpreende. É uma informação normal, onde o nome de «fulano/fulana» remete para o interesse do público. Que alguém tente, por um instante que seja, tirar dividendos políticos da situação, trata-se de uma abjecção.

A SER VERDADE. A ser verdade a linha anunciada por Scolari, parece-me muito bem. Já o tinha escrito, pedindo estas alterações.



UM ANO. E, portanto, o Aviz faz um ano, exactamente.

junho 14, 2004

ELEIÇÕES. O leitor Carlos Nunes diz, por mail, que não me manifesto sobre as eleições europeias. É quase verdade. Depois, pergunta-se (pergunta-me): «Isso deve-se à derrota da direita ou à sua defesa da abstenção?» Não. Deve-se ao facto de estes resultados não terem grande importância para aquilo que, em meu entender, tem mais importância. Os resultados não andam muito longe daquilo que se previra e que era política «e sociologicamente» esperado. São exactamente esses, incluída a abstenção de 60%. Depois, um blog não é uma dependência jornalística.

EURO 2004. O Estádio do Dragão está definitivamente talhado para vitórias de azul-e-branco.

SOBRE O FUTEBOLINHO DA SELECÇÃO. A selecção é uma equipa sem vícios: não bebe, não fuma e não joga.

ELEIÇÕES, O COSTUME. Há conclusões a tirar destas eleições, sim. São as do costume. Basta ler a imprensa.

junho 11, 2004

EURO 2004, QUASE PARA TERMINAR AS JUSTIFICAÇÕES. Variações sobre o tema, no Frankfurter Allgemeine Zeitung:

«Se o futebol ainda conserva um resto de magia, seria bom que ela se manifestasse durante o Euro’2004. Só um pouco. Andamos muito tristes, na Europa. Andamos muito cansados da Europa, na Europa. Se os leitores da “Frankfurter Allgemeine Zeitung” fizerem um pequeno esforço de releitura das páginas do jornal, hão-de reparar que a Europa, ultimamente, não tem produzido grandes novidades, esperanças, entusiasmos, paixões ou alegrias. Basta, para isso, que leiam o que dizem os “génios” da Comissão Europeia, de Romano Prodi a qualquer funcionário de Bruxelas ou de Estrasburgo – é assustador, não é? Sim, eu sei que os tempos não estão fáceis, há o terrorismo, a guerra no Iraque, a discussão sobre o défice orçamental, os subsídios comunitários à agricultura, o alargamento da União, o Big Brother na televisão (em quase todas as televisões), o fundamentalismo islâmico, o preço da cerveja, a crise na literatura. Uma pessoa normal não tem grandes razões para estar satisfeita.
O mundo do futebol também tem as suas crises: uma burocracia hereditária tomou conta dele, na Europa e fora dela, encheu-o de leis, compromissos, prefácios a volumes legislativos, comissões de juristas que tratam do off-side e dos lançamentos laterais, penalizações diversas, acordos com televisões e agências de publicidade, enfim, tudo o que é necessário para que o futebol funcione, enriqueça uma indústria minuciosa e que, às vezes, funciona como um Estado dentro de um Estado (ou de vários Estados, como acontece na União Europeia). Seja como for, não poderemos mudar isso, e não creio que seja o mais urgente.
PORTUGAL É UM PAÍS PEQUENO E APAIXONADO. Poderia, em vez de se dedicar à organização do Euro’2004, ter melhorado as suas contas públicas, promovido a sua literatura e as suas artes (infelizmente, a língua portuguesa é tão minoritária que não são muito conhecidos além-fronteiras o génio de Camões, o humor de Eça de Queiroz ou de Camilo Castelo Branco, a pintura de Paula Rêgo ou Graça Morais, a música de Frei Manuel Cardoso ou Carlos Paredes), modernizado a administração e os serviços públicos, investido na educação elementar. Mas acontece que Portugal gosta bastante de futebol, tanto como de receber visitas. Eu não concordei com isto, de organizarmos o Euro’2004: achei que devíamos ser europeus sérios e circunspectos, bons aprendizes em matéria económica, empenhados no estudo, no trabalho e nas nossas contas bancárias – “como os alemães”, conforme se diz em Portugal.
De qualquer modo, a decisão estava tomada. É por isso que eu peço um pouco da magia do futebol neste começo de Verão antecipado: golos, sim. Mas também a nossa memória de uma jogada luminosa e arrepiante. Europeus, precisamos disso neste momento. Precisamos da alegria do jogo, da sua inocência. O brasileiro Garrincha, que foi um dos melhores jogadores do mundo – teve, em relação a Pelé, o defeito de descuidar a sua carreira e de gostar muito de jogar –, era conhecido por essa inocência: diz-se que, nesses anos cinquenta em que jogou com a camisola do Botafogo (um clube do Rio de Janeiro), driblava uma defesa inteira: um, dois, três, quatro, às vezes cinco, deixava os adversários sentados na relva depois das suas fintas e, não contente em ficar sozinho diante da baliza, pronto para marcar o golo, esperava que a defesa se recompusesse para que pudesse driblá-la outra vez. Já não há futebol deste, evidentemente (os adeptos do Botafogo desesperavam, porque preferiam golos, o que é bastante compreensível); mas ele traduz a alegria de jogar – que está a fazer-nos muita falta. E, a esta distância, apela à nossa disponibilidade para “ver futebol”.
Já não voltaremos a esse tempo. Penso nisso quando vejo as imagens tristes de Maradona, internado numa clínica argentina. Mas não sou um saudosista, um reaccionário. Num mundo cheio de ressentidos e desesperados, de politicamente correctos, o futebol também abre a porta para o teatro da justiça absolutamente humana (um golo é um golo) e para a contingência das vitórias absolutas (que já não existem, como se sabe). Neste caso, na Europa de 2004, o futebol vai interromper esse ciclo de ressentimento e de primeiras páginas (dos nossos jornais) dedicadas a personagens cinzentos e banais.
ORA, O FUTEBOL É ISTO QUE ESTÁ À VISTA DENTRO DOS ESTÁDIOS: UM JOGO. Às vezes é brutal, sim. E deselegante (a quantidade de sonetos sofríveis e mesmo de má qualidade produzidos ao longo da história da poesia também é inquietante, para não falar dos romances europeus), tanto quanto podem ser o espírito humano ou a massa humana reunida em multidões à solta. Joga-se com brio, sim, e sem piedade – se bem que ela apareça de vez em quando, mas não faz parte do seu dicionário essencial.
Gostar de futebol, por isso mesmo, é um exercício sobre o qual as explicações flutuam ao sabor do momento. Prefiro nunca falar delas, mas podem mencionar-se: a arte, o domínio da bola, o exercício de conjunto, a elegância do passe, a apoteose do golo, a festa da multidão, a cor e a luz dos estádios. São ninharias. Gosta-se de futebol. Ou não se gosta. Podemos ter muitas explicações para a ideia de “gostarmos de futebol”, tal como os críticos literários gostam de revolver a obra de Shakespeare ou de Goethe à procura de mais um sinal do admirável génio desses dois europeus. Mas, um leitor de Goethe e de Shakespeare, tal como um adepto da sua equipa de futebol, sabe intimamente que esse génio está lá: o que ele espera, no momento em que está mais perto dos seus livros ou dos golos da sua equipa, é apenas pouco de magia, de respiração, de alegria.
O mundo está perigoso; um pouco de futebol, em Portugal, pode ajudar-nos a sermos mais optimistas. Como toda a gente que precisa de ilusões.»

NACIONALISMO BARATO. O sociólogo Carlos Fortuna, citado pelo Público e pela Lusa, diz que a onda de bandeirame suspenso nas janelas portuguesas, a propósito do Euro 2004, revela um «nacionalismo barato, imediatista e pouco consistente». Com certeza. Mais: «Face à consciência nacional de um défice de resultados positivos [do país], os portugueses querem sucesso rápido, breve e imediato, e o futebol resolve-se em 90 minutos.» Para o sociólogo, existe em Portugal um «défice de nacionalismo e de auto-estima». Estas coisas são óbvias, quase lugar-comum, e por isso mesmo devem ser discutidas. A euforia planetária em redor do futebol causa arrepios, evidentemente – mesmo através da RTPi –, e provoca enjoo rápido. Mas isso é o próprio «evento» em si mesmo, com a sua carga pesada de maus repórteres, de más reportagens, de banalidades, de excesso, de omnipresença, de fadiga acelerada. O «nacionalismo futebolístico», a meu ver, tem outra explicação e não tem a ver com «a fome de sucesso»: se Portugal fosse um país rico, a euforia futebolística sentir-se-ia na mesma, haveria bandeiras na mesma (provavelmente não a 1 euro, claro) e excesso de paixão popular. A popularidade do futebol não tem a ver exclusivamente com a «frustração nacional». E esse défice de «auto-estima» é gerado mais pelas boas consciência pátrias – que gostavam de ter outro país – do que pelos portugueses propriamente ditos (eu, por exemplo, não gosto lá muito da bandeira portuguesa, mas isso é outro problema). Claro que seríamos mais civilizados se não houvesse presidentes da Câmara como Ferreira Torres ou processos em atraso nos tribunais, se as escolas funcionassem melhor e os políticos usassem melhor ortografia. Eu sempre escrevi contra a hipótese de realizarmos o Euro’2004 em Portugal, mas já o temos à porta. Agora é jogar. E pendurem bandeiras onde lhes apetecer. Quem quiser, evidentemente. A frustração poderá ser maior, mas há hipóteses, há hipóteses…

MORRER ASSIM. Não há nada a fazer diante da morte. Pede-se contenção, que não se aproveite a morte para a campanha mais imediata, que haja reserva de silêncio, que se respeite o silêncio e a ausência. Nada a fazer. É compreensível que assim seja, no meio do ressentimento. Ninguém é santo, inocente ou ingénuo.

CONTRA A CORRENTE. O Carlos, do Contra-a-Corrente, assinala que Mário Soares decidiu chamar «Contra a Corrente» às suas crónicas no Expresso (o que é, manifestamente, um absurdo -- nada está mais na corrente do que Mário Soares) e, avisado, descobriu que Leonor Pinhão também usou esse título para as suas crónicas em A Bola (o que é outro exagero porque não há nada tão na corrente como ser manifestamente do Benfica...) [Já agora, Vergílio Ferreira pensou, na altura, chamar ao seu diário Contra a Corrente e achou melhor, bem vistas as coisas, chamar-lhe Conta Corrente. Ele sabia que as palavras são rapidamente apropriadas pelos seus contrários. E tinha razão. De vez em quando, aliás, acho conveniente -- e creio que o Carlos concorda -- reler algumas das páginas políticas de Vergílio Ferreira. Sim, ele continua a participar destes debates actuais, com a vantagem de o ter dito quando era difícil pisar o risco sem que a patrulha ideológica do costume saltasse aos guinchos.]

junho 10, 2004

CERVEJA. O F. Curate, no Daedalus, é um conhecedor de cerveja e mencionou a coluna que sobre o assunto mantenho na Grande Reportagem. Justamente, em Dia de Portugal recebi um mail sobre uma das últimas recomendações (suponho que em relação à Golden Gate; segue-se a Bohemia Weiss, que é francamente um achado), apelando ao meu patriotismo: como português eu devia defender o consumo de vinho e não de «uma bebida alemã». Pobre patriotismo que precisa de tintos para gritar «Arraial, arraial, por el-rei de Portugal!» Ora, eu não defendo o consumo de nada, mas recordo aquele período (um dos mais ridículos da história mental portuguesa) em que se discutiam os níveis de alcoolemia aos volantes lusitanos; alguns dos participantes no «debate» vinham para os jornais dizer que era preciso ter em conta «a tradição portuguesa de beber vinho» para discordar do projecto do então ministro da Administração Interna, Nuno Teixeira -- depois assassinado, à traição, como se tornou costume, por António Guterres. Outros vinham atacar os «cervejófilos», porque o consumo de cerveja seria um ataque frontal à economia portuguesa, onde o vinho continuava «a dar de comer a um milhão de portugueses», como no tempo do dr. Salazar. Tamanha desgraça foi outra das imagens do patrotismo português de pacotilha.



AMOS OZ. O livro de Amos Oz, How to Cure a Fanatic (leio na tradução brasileira: Contra o Fanatismo, edição Ediouro) é um relâmpago no meio da noite, com a diferença de ficar a brilhar durante muito tempo. Para os que têm todas as certezas sobre o processo do Médio Oriente, vale a pena gastarem um pouco do seu precioso tempo de pregação e ler Amos Oz:
«A condição de península é a própria condição humana. [...] E isso é verdade em relação a grupos sociais, culturas, civilizações e nações e, sim, a israelitas e palestinianos. Nenhum deles é uma ilha, assim como nenhum deles pode fundir-se completamente com o outro. Aquelas duas penínsulas deveriam estar relacionadas e, ao mesmo tempo, deixadas a sós.»

DIAS DE CHUVA. Nos trópicos, a chuva continua. Mas à distância há um tom de tragédia, e não apenas pela morte de dois políticos como Sousa Francou ou Lino de Carvalho -- mais pela conjugação desse halo de tragédia e da festa que se aproxima ou se afasta. Essa contradição cria uma tensão estranha, difícil de explicar senão pelas suas coincidências. Ao longe, as coisas têm essa nitidez, pelo menos.

NELSON DE MATOS. A ser verdade que Nelson de Matos abandona a Dom Quixote, trata-se de uma má notícia. Sobretudo pelo que ele representa, na Dom Quixote, para os autores portugueses e para a presença de um homem atento. A sua memória de editor faz-nos falta. Mas acho que está a tempo de novas aventuras -- e isto é só uma suspeita que espero confirmar-se. De resto, também aqui no Brasil há problemas na Planeta (o grupo editorial que detém a Dom Quixote) e alguns dos melhores editores abandonam a casa.

junho 05, 2004

SAMPA. Um cybercafe em São Paulo. Largo do Arouche, fim de tarde de sábado, frio, frio, frio. Ninguém disse que Saturno tinha chegado aos trópicos para ficar para sempre.

junho 03, 2004

MÁRIO QUINTANA. «Sinto uma dor infinita/ Das ruas de Porto Alegre/ Onde jamais passarei...» {Mário Quintana, Apontamentos de História Sobrenatural}

junho 02, 2004

PORTO ALEGRE. Sempre me pareceu uma cidade quase fora do Brasil. Há uns anos, foi aqui que vi neve pela primeira vez no Brasil, a alguns quilómetros, a caminho de Caxias, na serra (depois, em Criciúma, Santa Catarina). Moacyr Scliar fala do bairro do Bonfim, onde hoje há edifícios altos, arvoredo nas laterais (não tanto como em Santa Cecília), e eu trato de imaginar como seria a Porto Alegre do tamanho de um shetl brasileiro. Para quem não leu Moacyr, eu recomendo a sua obra mais apaixonada, A Majestade do Xingu, relato da vida do médico Noel Nutels -- e o mais divertido, A Mulher que Escreveu a Bíblia.