agosto 31, 2003

NÃO ESPEREM NADA. Duas coisas simples em que estou de acordo com o Joel Neto e em que acho que vale a pena insistir: os textos «Todos os sábados, com o Expresso» e «Ao ponto a que chega esta merda do politicamente correcto». Já lá vou.

SEGUNDA INTERRUPÇÃO PARA FUTEBOL. A RTP anunciou um estudo de um médico suíço que alerta para os malefícios das competições futebolísticas (os campeonatos europeus e mundiais): estar horas a fio em frente à televisão a apoiar as equipas preferidas aumenta em 50% as hipóteses de um acidente cardíaco, sobretudo se isso for acompanhado de uma bebida alcoólica ou de um cigarro. Duas apostas: a Suíça nunca teve futebol que se visse; o médico é um antropósofo de Basileia. De contrário, eu já tinha morrido.

INTERRUPÇÃO PARA FUTEBOL. «Ah, se os outros fossem iguais a você...» O verso da canção brasileira serve para recomendar, de novo, o Nietzsche & Schopenhauer, que se apresenta como «um blog optimista sobre o Benfica». Os textos são muito bons, a ironia está lá, o «benfiquismo» é suportável e os textos são mesmo assinados por Frederico (Nietzsche) e Artur (Schopenhauer). Suprema ironia, o endereço do blog tem ressonâncias galegas: «http://setezero.blogspot.com/». Algumas citações: «Que o Benfica jogue mal e ganhe. | Neste ponto é o meu instinto infalível. O estilo bom em si é pura loucura, puro “idealismo”, como o “belo em si”, o “bom em si”, a “coisa em si”.» • «O elogio da mediania. “Fiz muita força para que saísse esta equipa [Louvièroise], que nem sequer conheço. Era o adversário que nos interessava. Estou contente, na medida em que podia ter sido pior e por isso estava preocupado.” As palavras de António Simões, assalariado do clube como director desportivo, dizem mesmo tudo. Javier Marías, esse notável escritor espanhol, abria uma crónica, em 1995, com a seguinte frase: “O pior que pode acontecer a uma equipa é perder o seu carácter.”» • «O elogio da grande penalidade. Fernando Couto à chegada a Portugal: “O Benfica tem vários avançados que fazem golos, como o Simão.”» • «Camacho quer que o benfica faça história | Eu preferia que fizesse golos.»
Nunca me passaria pela cabeça citar um blog benfiquista, mas este ultrapassa de longe o futebol.

NOITE, O QUE É?, 7. Um estranho mundo de coincidências e de esperas. Pensamos nas mesmas coisas, nas mesmas palavras, nas mesmas fotografias. Pés a chapinhar na água, a luz dos relâmpagos, passeios sem destino, um sopro, coisas que ficam por dizer, guardadas. E aromas, cheiros: café, bolachas, bolo, um cigarro.

VELHOS, FRANCE AID. A propósito do texto sobre «os velhos», «France Aid», de quinta-feira passada, recebi alguns mails. Como é normal, agradeço. No entanto, Inês Santos, de Coimbra, diz que «para defender os velhos não é preciso, como o faz, atacar os jovens». E que isso é parte da minha «tentação reaccionária».
Talvez não. Nelson Rodrigues dizia que a juventude não era propriamente uma idade — mas, antes, uma questão de «falta de idade». Nos nossos dias, a «juventude» é uma força política nada negligenciável e um mercado sobrevalorizado. Há uma secretaria de Estado da Juventude, institutos governamentais preocupados com a juventude, além de um discurso político totalmente orientado para a juventude. As televisões tentam, na medida do possível, ser jovens, atrevidas, ousadas — como se atrevimento e ousadia fossem atributos exclusivos da juventude e como se atrevimento e ousadia fossem, por outro lado, valores inquestionáveis e absolutos. Absurdo. Em primeiro lugar, a juventude tem apenas uma vantagem: a idade. O que é, também, a sua grande desvantagem, e por isso deve ser «posta no lugar». A falta de idade permite, aos jovens, dar pulos, erros ortográficos e passar noites em branco. Mas impede-os de apreciar outras coisas. Os velhos gaiteiros, esses, não farão nem uma coisa nem outra. Morrerão de stress.

DEUS ANDA METIDO NISTO? A questão das «guerras religiosas» existe mesmo, mas periodicamente tem um peso desproporcionado. As tradicionais reuniões de Assis sobre o «encontro de religiões» e o «espírito da paz» dá pano para mangas, a esse propósito; eu acho esses encontros praticamente inúteis para lá do que se possa dizer sobre o monoteísmo, as traduções dos textos e a «necessidade de entendimento» — quando lhe acrescentam a religião «como factor de paz», os discursos acabam todos a falar sobre o vazio. Até agora, as religiões têm funcionado como «factor de perturbação» e de barbárie, e só o ocidente percebeu inteiramente — há muito tempo — a necessidade de separar as duas coisas, política e religião.
Um antigo rabino de Lisboa dizia, a brincar, que não bastava ter uma «religião cardíaca», ou seja, «de coração» — mas que era preciso cumprir, observar. Evidentemente. No entanto, quando se trata de passar para a política, para a vida de todos os outros, acho que a religião deve também passar para o lado de dentro, para essa «dimensão cardíaca», interior, da comunidade dentro da comunidade. Na vida política, os religiosos nunca ensinaram grande coisa. Pelo contrário.

O VALOR DAS VÍTIMAS. Reparo, com alguma surpresa, que poucos blogs se referiram ao atentado mais recente no Iraque, o de sexta-feira, o dia das orações nas mesquitas. Evidentemente que há retaliação tribal, como notam vários — e como gostam de acentuar, a uma só voz, os comentadores na televisão, chamando a atenção para a dualidade sunitas-xiitas. O facto de o atentado ter ocorrido numa mesquita aumenta ainda mais a «tensão religiosa». Penso que há mais. A questão não é sunitas vs. xiitas, mas muito mais complexa e, provavelmente, brutal, tentando radicalizar as reacções da população xiita contra a presença americana.
O que me espanta mais, no entanto, é o valor das vítimas. Será que as oito dezenas de mortos em Najaf se reduzem ao ayatollah Mohammed Baqir al-Hakim, assim se justificando a falta de interesse da notícias — arrastada para o meio das secções de «internacional» dos jornais e para as segundas meias-horas dos telejornais? O ar triunfal com que se apresentam as mini-entrevistas com desconhecidos «líderes espirituais» (como na TVI, que escolheu um entrevistado «que tinha ido a Meca») que justificam e defendem o ataque à ONU de Bagdad, contrasta com esta secundarização dos mortos de Najaf. Ainda me hão-de explicar como é possível que a imprensa tenha reduzido o mais recente massacre do Congo (3 000 pessoas chacinadas num dia) tenha merecido apenas uma «breve» nos jornais. Será que era por serem pretos? Ou porque o relativismo ocidental dá para tudo?

BENDITAS SEJAM AS MOÇAS. No intervalo das suas férias o Jorge Marmelo e eu falámos três vezes — uma em que ele me dizia que estava em Marvão, a dois passos de Aviz; outra em que eu lhe perguntava se a Barbearia Teixeira, no Porto, estava ou não aberta; a terceira não me lembro, mas por certo aconteceu. Unem-nos várias coisas (já trabalhámos juntos num programa de televisão, aliás) além de ambos escrevermos em Macintosh (aqueles computadores que são imunes aos vírus dos PC) — acho que os livros brasileiros são uma delas. Há tempos, comentámos ambos Caio Fernando Abreu (continuo a recomendar Onde Anda Dulce Veiga?) e Moacyr Scliar. Agora, ele foi à Fnac e comprou o Benditas Sejam as Moças, do Antônio Maria. Acho coincidência a mais.

A QUESTÃO JONI MITCHELL. Escrevi, em provocação deliberada ao João, que achava a Joni Mitchel «insuportável» — a verdade é que nunca trauteei «Both Sides Now», nem na versão de «Sinatra de elevador» que o Alberto Gonçalves cita e aprecia. O João diz que assim não se pode discutir (depois almoçámos lado a lado...) e tem razão: eu não conheço muito bem a Joni Mitchell, nem o seu lado actual de «fria jazzy lady», embora retenha aquela imagenzinha de «loira hippie que alguns pintam» (os termos são do João, que acha que «a obra poética e a construção musical de Joni Mitchell são das mais complexas do mundo pop/rock» — ignorava; sou um bruto em matéria de pop, só na semana passada ouvi um disco completo dos Coldplay). Por seu lado, o Paulo Azevedo, por mail, recomenda-me o Travelogue', da Joni Mitchell, «sem o pré-conceito da insuportabilidade».
Numa coisa estamos todos de acordo: quando falamos de Leonard Cohen. As coisas que teríamos a dizer.

E agora, uma pergunta desmoralizadora, já que falamos de Joni Mitchell: conhecem Flaco Jiménez?

FIM. Outro blog interessante, O Céptico, dá por encerrada a sua actividade.

GRANDE REPORTAGEM. Recebi alguns mails sobre a Grande Reportagem, o meu texto «Às vezes, há coisas assim» e o fim da revista. A Grande Reportagem, cujo número 150 acaba de sair, interrompe aqui as suas edições mensais. Regressará a partir de Novembro, semanalmente, aos sábados — distribuída com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias. Para provar que é assim, já lá estão mais jornalistas a preparar a nova edição, como o Joel Neto, a Mónica Bello ou o João Lopes Marques. Já agora, neste número 150, além de 70 páginas de fotografia (e de um «especial prémios» de várias páginas), podem ler artigos muito bons — ensaios — de Gonçalo Ribeiro Telles, José Pacheco Pereira e Pedro Mexia.

PERGUNTAS COMPLICADAS. Nem sempre se pode responder logo, de imediato. Há perguntas que não são perguntas, apenas; Vergílio Ferreira distinguia entre «perguntas» e «questões». O Nelson Gonçalves faz perguntas difíceis e importantes num mail: «Escrevo-lhe porque actualmente estou a ler Disculpen las Molestias, de Fernando Savater, que reúne os textos publicados por este senhor sobre o terrorismo da ETA e a problemática geral do país Basco. Um livro bastante actual pois fala sobre quem sofreu (e continua a sofrer) na pele o terrorismo da ETA e foi publicado antes do 11 de Setembro. A dada altura aparece numa das suas cronicas o seguinte dilema: um terrorista colocou uma bomba, pronta a explodir, em um dos 100 colégios da cidade. A única forma de evitar que a bomba rebente é forçar o terrorista a revelar a localizaçao da bomba. É legítimo torturar o terrorista para que revele onde colocou a bomba? Eu creio que nao utilizaria a tortura pois violar a lei e os direitos básicos de qualquer pessoa, mesmo que bem intencionado (e o inferno está cheio de pessoas bem-intencionadas) é abrir um precedente perigoso. Hoje é para salvar as vidas de crianças inocentes, amanhã poderá ser forçar um criminoso a confessar. No entanto se o meu filho estivesse numa dessas escolas... O que eu gostaria de saber é qual seria a sua decisão.»
Voltarei a isto.

agosto 30, 2003

ABRAM OS OLHOS. Nem sempre temos tempo para descobrir coisas novas — nem paciência. Mas a leitura do Abram os Olhos é mais do que uma recompensa. Muito bom.

agosto 28, 2003

JONI MITCHELL. O Terras do Nunca queixa-se de que escreve sobre Israel e lhe caem em cima (mentira, João, mentira — imagina os mails que me chegam de cada vez que sou eu a escrever...). Mas que não lhe «caem em cima» quando escreve os nomes de Zeca Baleiro, Joni Mitchell, Brel ou Neil Young. Estás enganado. Eu, por acaso, acho que a Joni Mitchell é insuportável, mas como tu gostas, é capaz de ter alguma graça, não sei, talvez.

NOITE, O QUE É?, 6. Uma voz. Uma música, o vento desta manhã, a tempestade («a tempestade também és tu dentro do meu coração»), os carros que passam ao longe. Inventa-se uma língua estranha, cativante, a meio da noite — sem mágoas, sem profecias.

SEM CARACTERES. Outra descoberta fascinante e muito promissora é o Sem Caracteres. Livros, política, vida de todo o dia (e desporto, em bicadas soltas, avulsas). O João tem ali matéria para nos cativar. Portanto, se há blogs que acabam, há blogs que se apresentam ao serviço. Este, por exemplo, é dos que dá bons sinais.

BENFICA. Eu, que sou portista, acabo de descobrir um blog excêntrico e delicioso: Nietzsche & Schopenhauer, «um blog optimista sobre o Benfica». É um sítio onde passarei a ir frequentemente. Há lá ironia, riso, discórdia, conformação, evidências, tudo o que o futebol devia ter. É um achado, benfiquistas. Parabéns.

BLOGS, NÃO-BLOGS. O pior que poderia acontecer aos blogs, além de elaborarmos códigos de conduta, seria determo-nos mais tempo do que o necessário nas razões que levam alguns bloggers a «encerrarem actividade». É provável que existam blogs que não resistam ao Verão ou que só existam porque há Verão, e disponibilidade, e vontade de falar. Isso dura enquanto dura. A natureza do blog é profundamente individualista — mesmo quando abriga vários individualismos. Acabam como começam, temos pena ou não, mas sabemos que ressuscitarão por aí, se ressuscitarem. O impulso que leva alguns bloggers a iniciarem actividade é precisamente o mesmo que os leva a «encerrar actividade». Alguns esgotam os seus objectivos. Alguns, outros, cansaram-se, e estão no seu direito. Outros mudam de rosto e não nos apercebemos (sim, sim). Têm uma marca de exibicionismo e de intimidade, de clarividência e de lugar-comum, de banalidade e de excepção. Tudo isso é natural. Que o Pedro, primeiro, tenha querido acabar com o Guerra e Pás e que o outro Pedro quisesse, depois, interromper o Flor de Obsessão é natural — porque as razões até estão lá inscritas (talvez mais no Guerra e Pás). Mas nada disso é dramático. Tudo isso estava escrito e inscrito, como disse.
Prevejo, de facto, que boa parte dos blogs acabem por estes dias, quando acabar o Verão, quando a vida ganhar «outro sentido» ou for necessário «regressar à vidinha». Um blog não é «um meio de comunicação social». O seu carácter flutuante diz-nos que «viver sempre também cansa», que há coisas que nascem da imensa harmonia do mundo, e que há outras que vêm do fundo da tempestade. Não interessa. Temos de ser tolerantes para com a própria natureza do blog, que é essa: existe enquanto existe.
Não sei quando acabará o Aviz. Vou escrevendo, tenho a noção de que escrever num blog é uma coisa precária (não tenho contador, não quero, não caio em tentação, não — claramente, não — acho que um blog tenha «audiência», talvez tirando o Abrupto), que somos voyeurs e objectos de voyeurismo em simultâneo. Mas há coisas que se dizem através dos blogs e há coisas que não digo através dos blogs. O que escrevo noutros lados não me impede de escrever o que escrevo no Aviz, mas não penso muito nisso. Não roubo tempo «ao outro lado» para escrever neste; nem roubo tempo «a este lado» para escrever no outro. Cada coisa — cada suporte — tem a sua natureza, mesmo que não a saiba identificar. No Aviz escrevo sobre a noite, sobre a insónia, sobre a minha fé e as minhas saudades, sobre política, sobre o que quiser, sem me importar com a opinião de Luís Delgado. Não tenho a ideia de uma «utilidade» dos textos; acho que há textos dos blogs que têm dignidade suficiente para serem publicadas em livro, numa revista, numa página de jornal; e há colunas de jornal que nunca deixaria que se publicassem no meu blog, porque nenhum preço paga aquela mediocridade, aqueles erros de gramática ou aquela falta de ideias. O mundo é um mistério, não é?
Acho que é por isso mesmo (por o mundo ser um mistério) que tenho um blog. Discuto com quem quero (e só com quem quero), discuto até onde quero (e só até onde quero), no registo mais «disponível» por que se possa optar. Provavelmente por ser assinado e se tratar de um blog público não é tão confessional como seria um «diário pessoal». Mas mesmo o carácter confessional da escrita, como se diz no Norte, «vai da pessoa». Muitas vezes, o Aviz é um texto único contra a noite, contra a insónia, contra os mosquitos que vêm com o Verão. E vai com a música que estou a ouvir.
Na generalidade, inclusive, penso que há blogs muito interessantes com que aprendi bastante — sobre literatura, sobre filosofia, sobre política. Com outros, irrito-me em silêncio porque prolongam aqui a ignorância que se detecta nas «conversas de circunstância», reproduzindo erros e omissões da imprensa generalista ou da mais alinhada. Mas por isso mesmo defendo a inexistência de qualquer código de conduta senão aquele que deriva do bom-senso — que é uma coisa muito pessoal. Desconfio daqueles que vêm educar as massas e arrebanhar multidões (acho o proselitismo muito discutível). Desconfio ainda mais daqueles que se vêem investidos da missão de «acordar consciências» para pôr toda a gente a discutir e a «debater». Aqui deixamos o que queremos e só somos julgados por isso. Acho bem que existam blogs que citem, citem, citem, que exponham as suas paixões e que escondam os seus amores. Tudo se nota, quando é escrito. Escrever profundamente é mostrar os lugares da paixão (a paixão, a divergência, o ressentimento, o amor, a delicadeza, a tranquilidade), mas só quando se quer. Muitas vezes é só insónia. Só perguntas: e a noite, o que é? — por exemplo.
Fazer de um blog mais do que isso já me parece extravagância.

FRANCE AID. A questão levantada pelo O Comprometido Espectador não tem a ver, como se percebe, unicamente com a França — mas tem razão no seu essencial, sobretudo depois do que se disse sobre o «apagão» americano.
Tem a ver, sim, com uma realidade dramática das sociedades ocidentais, que é a da crueldade com que se tratam os velhos. Para obviar a esse drama inventou-se a «terceira idade» com uma série de quinquilharias e de benefícios sociais. Um velho deixou de ser velho para passar a ser um «cidadão de terceira idade». Mas a verdade é que um velho não deixou, mesmo assim, de ser um velho. Eu gosto de velhos. Tenho medo da sua imensa sabedoria — porque é imensa, provocadora — e aprecio-a. Acho que é um bem indiscutível. Ora, as sociedades ocidentais esquecem os seus velhos, endeusam «a juventude», que é um estado ligeiramente flutuante. A juventude representa um mercado fabuloso, idiota e vulnerável, fácil, demasiado fácil. Os vários «institutos de juventude» e «políticas de juventude» acabam por defender doutrinas desprezíveis e amargas sobre a condição humana, em nome desse endeusamento que transporta consigo o desejo de novos consumidores e de uma vitalidade prolongada do que resta de humanidade em nós. Mas a verdade é que este ocidente despreza os velhos, abandona-os. É, provavelmente, uma das coisas que toca o que há de irracional em mim, esse desprezo e esse desrespeito — a forma como as famílias maltratam os velhos, a forma como são acondicionados em lares que deviam ser encerrados e os seus donos condenados a penas pesadas, a forma como o próprio Estado, com as suas «políticas [idiotas] de juventude», os seus subsídios a «rádios jovens», a desfiles de rock e de indigência intelectual (coisa em que não se deveria meter nunca) condena antecipadamente os velhos ao esquecimento. Os «jovens», essa categoria inútil e preguiçosa, apodrece no meio de apoios do Estado e dos incentivos da indústria da diversão, recebe subsídios e é infantilizada na escola até ao limite do improvável. Os velhos são abandonados — e a humanista França não vai aos hospitais recolher nem os seus corpos nem a sua memória.
Uma sociedade que maltrata os seus velhos, ou que não humaniza profundamente a sua relação com eles, é uma sociedade que dá pena e que revela a sua face abjecta. A forma como lidamos com a parte realmente indefesa da vida — os velhos, as crianças —dá uma ideia da forma como lidamos com a vida propriamente dita. Pessoalmente, acho que é uma das histórias mais chocantes deste Verão. Esse retrato não é apenas confrangedor. É vil. É o retrato de uma vileza e de uma crueldade sem desculpa. Sem desculpa. E podemos escrever isso várias vezes.

COMENTÁRIOS. SEM COMENTÁRIOS. O assunto merece reflexão. O O Comprometido Espectador comentou-o:
«France Aid. Eu sei que o 14 de Julho já passou, mas na altura nada de extraordinário me ocorreu para dizer sobre o país que está na vanguarda da humanidade, i.e. a França. Mas hoje aproveito o balanço e reincido. Não creio que se tenha dado o devido relevo ao caso dos 10.000 mortos em consequência do calor que por lá se fez sentir. Eu repito: são 10.000 mortos. São mais mortos do que os soldados americanos que conheceram o mesmo destino nas campanhas do Vietname, Kosovo, Afeganistão e Iraque todas juntas. […] Tudo isto já de si seria trágico. Mas vem ainda rematado por um dos mais notáveis exemplos de “humanismo europeu”: neste momento há centenas de pessoas mortas amontoadas nos hospitais franceses cujas famílias não vieram reclamar os corpos e o Estado francês se prepara para enterrar numa "vala comum" (está aqui no «Público» de hoje). Está-se mesmo a ver um dinâmico francês de meia-idade beberricando um cocktail numa esplanada: “Merde! Pápá est mort. Mais on est si bien à la plage...” Eu pergunto-me o que não se diria se tudo isto se passasse nos EUA.»

agosto 25, 2003

RUBEM FONSECA, 3. Escreve, num mail, o Diotima: «Descobri-o há cerca de seis anos, tenho hoje 26, e tornou-se, rapidamente, um vício. Tenho tudo o que há publicado em Portugal e já mandei vir muita coisa do Brasil. Foi com verdadeira satisfação que vi um dos meus autores preferidos ser reconhecido com um prémio tão importante. Contudo,senti-me egoísta, pois pensei que agora não ia ser uma referência, uma paixão só minha. Passei dos melhores momentos da minha vida entre as suas páginas, de Feliz Aniversário, a E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto, Secreções, Excreções e Desatinos, acabando, bem, em Histórias de Amor. O humor corrosivo, a sobrevivência, a carne, o sexo, a vida. É tudo. É um Brasil escrito com o melhor português. Afinal, é bom saber que partilhamos um pouco de loucura com os outros.»

FUTEBOL. O futebol já deixou de ser assunto para as segundas-feiras, sobretudo quando se joga mal. Na verdade, este futebol da I Liga é assustador e mau. Há poucos jogadores de que eu aprecie realmente o futebol — talvez Deco, talvez aquele miúdo do Sporting, Lourenço, talvez este e aquele; mas poucos. Falta-lhes carácter. Eu gostava de Raí como gostava de Sócrates, como gostava de Zico, como gostava de Cruyff ou Van Basten — como teria gostado de Didi e de Domingos da Guia —, como gostava do antigo Ronaldo. Um luxo. Mas Raí era um caso: odiado pelas multidões e por Zagallo (que preferia o Animal, ao jogo limpo de Raí — recordam-se da história do Brasil-Argentina no Maracanã?), o paulista era um modelo de elegância no seu lugar, um modelo de jogador: olhava em frente porque «em frente» era todo o relvado. Tinha carácter e inteligência, gostava de jogar. O adeus de Raí, há três anos, foi o adeus desse modelo de carácter. Só não foi uma perda porque o vi jogar algumas vezes, e gostei.

Quando penso em futebol, penso no Brasil (e na pena que tenho de o Vasco já não me emocionar como antes). Há uns anos, em S. Paulo, durante uma reunião internacional que juntou meia centena de escritores e editores sobretudo da América Latina, falou-se muito de futebol. A zona do «centro velho» de S. Paulo favorece o tema e, na altura, a final da Copa local mobilizava uns quantos. Christopher Domínguez Michael, editor da Vuelta, a revista mexicana fundada por Octávio Paz, foi quem mais me surpreendeu. À partida, anunciou que gostava de futebol, que seguia as aventuras do futebol de toda a parte e que o incomodavam os intelectuais que, sem terem ido a um estádio, se declaravam inimigos do «maior espectáculo do mundo» ou, pior ainda, se diziam indiferentes. Eu tinha acabado de ler o seu La Utopía de la Hospitalidad, um livro de ensaios — e não esperava essa declaração de princípios. Não havia no livro nenhum sinal. Nada a fazia prever. Nem na filiação em Octavio Paz.
Nada faz prever quando alguém se diz realmente amante do futebol, muito menos Christopher, que passava todos os intervalos do congresso à procura de alfarrabistas ou em delírio recitativo com Hugo Gola, o poeta a quem — com toda a ternura — chamávamos «brujo», um argentino exilado em MéxicoDF desde as primeiras matanças dos generais. À noite, alinhava — à mesa do bar, no Largo do Arouche — na discussão sobre quem iria ganhar o Mundial: «O que mais detesto é que misturem literatura e futebol. São coisas diferentes.» Nada mais certo (isso e o riso — ou a pena — que dá ler poemas do Manuel Alegre sobre o Figo). O futebol pode bem ser uma metáfora da vida, de toda ela, de todos os gestos, de todos os heroísmos ou desalentos — mas o futebol é futebol, a vida anda por ali, mas é coisa diferente. Só uma metáfora, também. Pode ser tudo, o futebol, e por isso é que gostamos dele — agora, que lembro esse campeonato do mundo, o de França, lembro-me do passe de Hierro para Raul fuzilar a baliza de Rufai, dos golos de Salas, de Oliseh ou de Njamka, até do falhanço de «Zubi» na mais infeliz tarde dos espanhóis (que levou Kiko ao maior dos desalentos no último jogo). E por isso é que gosto mais de ver o jogo dos marroquinos ou dos nigerianos do que os croatas, muito mais dos mexicanos do que dos italianos, e prefiro, incomparavelmente, outros jogos a estes que, na sua generalidade, não adiantam nem atrasam. E prefiro que o António Lobo Antunes diga que se está nas tintas para o futebol, porque o Benfica agora não ganha, do que as lérias dos catedráticos que imaginam tácticas que, no máximo, dão para não perder durante metade do jogo.

Fazemos, muitas vezes, críticas à falta de velocidade, de carácter e de sentido de oportunidade destas equipas portuguesas — nestes primeiros jogos —, até para bem do futebol, onde a fé deve ocupar uma parte substancial da alma dos espectadores, mas na companhia da confiança. Ora, há pouca confiança nestas equipas, dentro e fora dos balneários, dentro e fora dos relvados. A fé é manifestamente insuficiente. De contrário, o futebol passa-nos ao lado, como uma distracção e um desvario. Ou um desvio a meio da floresta, uma demonstração de ócio estival disponível nos sofás a cada jogo do dia aprazado.
Um jogo ganha-se desde o princípio. Há um apelo que vem não sei de onde, uma espécie de sinal que é bem capaz de ser visível desde os primeiros passes. E isso não tem nada a ver com a fase de Guus Hiddink, quando treinava a Holanda; ouvi-lhe a coisa mais espantosa antes de um jogo com o México: «O nosso jogo vai ser simples, disciplinado e táctico. É desta forma que produziremos jogadas de golo.» Os mexicanos não tinham um lema, um projecto ou um sentido para a vida (basta ouvir os mariachis), sabiam jogar, arriscar, perder e morrer, ganhar e renascer. Julgam que isso não tem a ver com o futebol? Lembrem-se: no último minuto daquele Holanda-México, curiosamente, Hernández marcou o golo como um trompetista de mariachis antes de erguer o copo de mezcal e dizer «quiero morir».

Às vezes dá um desgosto enorme ver equipas simpáticas desfazerem-se em fumo quando se trata de jogar, jogar a sério. Na televisão não se percebe bem, nem a generalidade dos especialistas e tecnocratas do futebol é capaz de explicar esse «um não sei quê» que percorre certas equipas Ou é um halo divino ou um sinal de desastre. A velocidade nem é o factor essencial, quando se trata de jogar bem, até porque os passes começam a falhar a partir dos dez metros e começa o diabo a tocar a pantalha do marcador. Nem tem a ver com a preparação física, muitas vezes. Relaciona-se, simplesmente, com a predisposição para ganhar (ontem, por exemplo, o FC Porto teve toda a predisposição para empatar).

Tudo isto é bonito, sem dúvida. Mas o que me anima, a mim que até sou madridista? O facto de o Real ter perdido com o Mallorca na primeira mão da Supertaça espanhola. «O nosso jogo vai ser simples, disciplinado e táctico. É desta forma que produziremos jogadas de golo» — estou mesmo a ver Carlos Queiroz dizer isto.

RUBEM FONSECA, 2. O fascínio de A Grande Arte é mais do que a citação de Arquíloco e a sua dualidade: «eu tenho uma grande arte, firo duramente aqueles que me ferem» / «minha arte é maior ainda; eu amo aqueles que me amam».
Depois de reler as últimas páginas do livro, naquele barroco cheio de personagens grotescos, cultos, irrisórios, fantásticos, percebo que poucas histórias de violência soam tanto a essa doçura. Bebel reaparece no final, um final sem apoteose («deliquescente» até, como gosta o Sérgio Augusto), inesperadamente. A surpresa do amor.

ACORDAR. Acordar cedo tem algumas vantagens: todos os ruídos estão a mais, enquanto o dia não nasce. Como nas fotografias antigas — quando há ordem no mundo —, as coisas estão no seu lugar: a roupa, a chávena do café, as chaves de casa, as chaves do carro, os jornais ainda não chegaram. E mesmo o que está longe parece ter algum sentido. Há um vento matinal, madrugador, com que me dou bem. E, de certo modo, substitui a insónia uma vez por outra. No fundo, só quem tem insónias, e passa muitas noites acordado — à espera — é que valoriza momentos como estes, em que se acorda cedo e em que as últimas palavras estão ainda próximas. «Está tudo bem.» Como se alguém dissesse: «Está tudo bem.»

agosto 24, 2003

RUBEM FONSECA. Leio outra vez A Grande Arte, de Rubem Fonseca (edição brasileira na Companhia das Letras, edição portuguesa das Edições 70). O livro passa por ser um «romance policial» — a questão do género é a menos importante de todas, bem vistas as coisas — e tem essa marca, claro. Há, em todo o romance, um pormenor delicioso — um português fantástico, um cuidado extremo, um delírio de cada frase. Tudo isto é apenas uma coisa: escrevendo tão bem, tudo lhe é permitido: os devaneios, a passagem de uma plataforma a outra, de um narrador a outro, de um capítulo curto para um comprido. Mandrake, o advogado criminalista-personagem principal atravessa o Rio de Janeiro como um vagabundo, atravessa o país (do Rio a Bauru, de Bauru a Corumbá e à Bolívia) como um geógrafo. Mesmo aquela violência latente (o mundo das facas, presente no personagem-Hermes, o Mestre; Fuentes, o china boliviano e faquista, assassino profissional; o desejo de vingança do próprio Mandrake; o massacre na festa) aparece diliuída no meio de uma tentação poética permanente. Vonnegut e Ellroy desenham lugares de violência chocantes — mas Rubem Fonseca tem a doçura do anjo, de modo que até os defeitos de Mandrake aparecem como necessários para contrariar essa tentação.

TELEVISÃO. Ao ver Carlos Fino em Bagdad tenho uma tentação: contar os adjectivos e os advérbios que usa. Aliás, uma das determinações para a redacção seria impedir o uso de adjectivos nos «rodapés» dos telejornais (a SIC é a mais equilibrada); não temos que levar com aquelas «opiniões subtis».

NOITE, O QUE É? 5 Saudade do cinema, quando os filmes contavam uma história impossível («conta-me uma história»), comer a meio da noite, cozinhar, insónias amáveis, olivais perdidos. De noite espera-se sempre mais. E penso nisso muitas vezes: nas horas desencontradas, no que há-de vir, em ser esperado pela própria noite, que é o lugar em que mais espero.

agosto 23, 2003

ESPERA.

Enquanto espero, a casa fica vazia, estranha.
Não há ruído mais familiar do que este: a sua voz,
o seu riso, o lápis e o papel abandonados até
à primeira luz da manhã. Espero muito, conto

os dias, abro os mapas e evito adormecer para
não te perder. Não me pergunto a que lugar
pertenço ou a que nomes eu já dei um nome.
Deixei de fazer perguntas. Agora escurece mais

cedo, e eu fecho os olhos para ver outra vez
esse rosto. O aroma do café atravessa a noite,
atravessa o mar; nunca acabaria de escrever,
ou escreveria sem pausas sobre o mundo que

espera para ser inventado: floreiras, riscos, janelas,
caminhos perto da areia, tardes com outro nome,
viagens longas, estradas que atravessam fronteiras,
canções populares, roupa de Verão, o sabor do café.

ISRAEL, II. Caro João: voltamos ao mesmo, mas com bons modos, como sempre. Eu compreendo que seja difícil definir os limites «teóricos» do que é e não é uma guerra a propósito da questão israelo-árabe. Eu acho que há, ali, uma guerra. Hoje à tarde, no entanto, ouvi dizer na rádio que o exército israelita «assassinou um dirigente do Hamas», como retaliação pelo atentado de Jerusalém, «em que morreram vinte israelitas». Ora, se bem entendo, os dirigentes do Hamas são «assassinados» (não duvido); já no caso dos vinte israelitas, «morreram», ou seja, aconteceu-lhes alguma coisa; já as cerca de cem pessoas que ficaram feridas na sequência da explosão do autocarro, digamos «que se magoaram». Isto não compreendemos ambos, não é?

O MELHOR PEQUENO TEXTO. O melhor pequeno texto da semana, na categoria «Jornalistas», vem no Terras do Nunca: «Carlos Fino já está de novo em Bagdad. A guerra pode recomeçar.»

Um recado do Guerra e Pás

RECADO. O Guerra e Pás fechou hoje as portas com estas duas frases simples e, aparentemente, definitivas: «Este blog termina aqui. É o fim. »
Entretanto, o P. enviou, para publicação, um recado aos seus leitores. Aqui fica.



Póstumo #


«O meu blog acabou e devo dizer que subscrevo uns 96% do que lá está — há frases e ideias que se nos escapam e depois é demasiado tarde. Recebi umas mensagens às quais respondi pessoalmente, mas a esta hora, sexta, 22h40, já recebi tantas mais, que o modem de 56K caseiro se recusa a colaborar. Bem, adiante. Todas a mensagens são de pena pelo fim do meu blog e alguns são mesmo invectivas para que continue. Tanto interesse justifica que saibam um pouco mais de mim. Do que faço, do que faço a sério, só sossego quando fujo a sete pés. Vocês, que escreveram livros, não querem vê-los publicados para fugir deles? As vossas melhores reportagens não acabam em suplícios de tântalo? Os vossos melhores posts não são os mais dolorosos? Pois bem, o blog estava distraído e eu fui-me! Voltarei? Isso, meus caros amigos, é pergunta à qual não sei responder.
Mas posso dizer isto: nós temos esta característica irritante do elogio póstumo (e o meu blog é a prova disso; nunca fui tão elogiado e nem sequer vi um “ainda bem que o gajo se foi embora”). Caraças, se gostam mesmo de outros blogs, de outras pessoas, digam-lhes isso mesmo enquanto eles estão vivos.
Tendo eu o privilégio de estar vivo e de poder ler os elogios ao meu trabalho agora enterrado, sinto que realizei uma das minhas fantasias nas fases de auto-estima negativa: assistir ao meu próprio funeral!
Bem haja a todos e divirtam-se.»

agosto 22, 2003

ISRAEL. Já agora, para aqueles que acham que «é tudo igual», recomendo a leitura de alguns textos muito recentes sobre a situação israelo-árabe, nomeadamente o de Amos Harel sobre as consequências do atentado de terça-feira, mais a retaliação de ontem; o de Aluf Benn sobre a mesma matéria, bem como o de Danny Rubinstein, sobre a situação de Hebron como exemplo da paranóia que estala a cada minuto — e que pouco tem a ver com o que se comenta entre nós. Os textos de Yoel Markus são também, além de «moderados», muito precisos, acutilantes e geralmente pouco apreciados pelos partidos haredim de Israel. Veja-se também este texto do mesmo autor sobre a hipótese de «isto» ser também o fim da carreira de Sharon; e o de Ze'ev Sternhell sobre a hipótese de impor uma solução externa ao conflito.

GUERRA. Meu caro João: li o teu texto «Israel II.» Só tenho uma pergunta: se isto não é guerra, há vítimas que valem menos do que outras?

LINKS. Sim, eu sei. Por isso mesmo, a coluna de links para outros blogs será actualizada em breve — e reformulada.

GINJA & OUTRAS NOVIDADES. O Paulo Moreiras, autor de um saboroso «romance pícaro», A Demanda de D. Fuas Bragatela (edição Temas e Debates) acaba de lançar o seu Elogio da Ginja. Recentemente, o Paulo (que é também autor de uma raridade bibliográfica, que leva precisamente esse título, Elogio da Ginja) defendeu a criação de «regiões demarcadas da ginja portuguesa». Vale a pena estar atento; quem sabe se a ginja, essa bebida esquecida, volta a ser moda. E lança o repto: «A criação de uma ou mais regiões demarcadas da ginja (Alcobaça, Óbidos, Cova da Beira), por que só assim se conseguirá manter uma elevada qualidade e confiança nas ginjas utilizadas. Não se entende que se esteja a importar ginjas do estrangeiro.» É como dizes.

Por outro lado, depois da decisão de encerrar o seu blog, o avizense O Maranhão, felizmente, voltou atrás e regressou à net. E ainda melhor, com textos ainda melhores — e com mais «tempero»... Insisto, felizmente.

GUERRA E PAS. O Pedro acabou o seu blog, Guerra e Pas: «The end.» Vai de férias, depois se vê. Foi muito bom tê-lo entre nós.

RISO. O João Pedro Henriques escreve num dos seus textos, no blog em que participa, que não tratou «dos problemas de fundo mas sim do discurso dos radicais que defendem as posições de Sharon e Bush acusando os moderados de terroristas, idiotas úteis, etc, etc, como o Aviz faz. Fiz-me entender?» Evidentemente que isso vem na sequência da sua deselegante referência do texto de anteontem — e que aqui citei. Há coisas que, lamentavelmente, não se conseguem explicar a algumas pessoas. O J.P.H. de vez em quando entra nesse universo. Sucintamente, e em bruto: J.P.H. quer conversa. Ontem acusava-me de ver terroristas em toda a gente que não concordava com a invasão do Iraque. Hoje reincide na asneira — é uma afirmação tão absurda como desonesta e que desmente quase tudo aquilo que, noutras circunstâncias, eu e o J.P.H. já discutimos pessoalmente, frente a frente, como bons camaradas, expondo argumentos (por isso me surpreende a sua referência — e nunca falaria no assunto se J.P.H. me fosse um desconhecido). A acusação de maniqueísmo é uma pérola de deselegância e não é feita, certamente, de boa-fé. Hoje, ao acusar-me de defender Sharon ou Bush, J.P.H. faz mais do que isso: mostra que nunca leu o que eu escrevi e que não vale a pena tentar explicar-lhe as coisas mais uma vez. Eu podia perguntar-lhe onde é que eu, alguma vez, defendi o governo, a política, as opções ou a figura de Ariel Sharon em matéria de segurança ou no «dossier palestiniano» — mas isso deve dar-lhe algum trabalho e baralhar-lhe as convicções (o mundo arrumadinho é que é bom, não é?)
Para que não me chamem revisionista, cito um texto meu publicado no ano passado no JN: «Sharon será, certamente, uma das figuras que não ajudará muito a estabelecer a paz no Médio Oriente.»
Há dois anos escrevi isto: «Quanto mais depressa os exércitos de Sharon retirarem da Cisjordânia e de Gaza, quanto mais depressa terminar a ocupação, quanto mais depressa os tanques regressarem às bases, talvez seja possível finalmente forçar Arafat a assinar um acordo (qualquer que ele seja), isolar o terrorismo que tem martirizado israelitas e palestianos e, finalmente, estabelecer o Estado palestiniano que não existe desde 1948 porque os estados árabes não permitiram.»
Mais, umas semanas depois: «A presente “campanha militar” ordenada por Ariel Sharon é o que ela é de facto: excessiva, violenta, penosa para israelitas e palestinianos e prejudicial para Israel e para a sua segurança. Sim, Sharon é uma peça do mal que anda à solta no Médio Oriente (já o escrevi antes), o exército tem de retirar quanto antes.»
Mais, uma semana depois deste texto, uns tempos depois da Páscoa judaica, quando o Hamas, a Jihad e as brigadas de al-Aqsa rebentaram com hotéis e restaurantes durante o primeiro seder de Pessah: «Os meus amigos de Israel sabem disso, souberam-no sempre porque vivem lá e convivem com o terror e a violência. Sabem o valor da tão precária vida que se vive em Israel e na Palestina e, por isso, sabem que vem aí mais violência em consequência da estratégia de Sharon.»
J.P.H. hoje chama-me radical (ontem associava-me à extrema-direita como um luso-papagaio às ordens de Washington; de Washington?, ó J.P.H., ainda se fosse do Belize ou do Brasil, por causa das praias!...) e sharonista. Mesmo como anedota parece-me excessivo e desonesto.
Escolhendo-me, de entre todos os bloggers, como exemplo de apoiante da invasão do Iraque, J.P.H. é ainda mais maldoso. No mesmo JN escrevi isto em Março: «Com a guerra não se brinca. A facilidade com que pronunciamos a palavra — guerra — é espantosa num mundo que devia ter aprendido as lições do horror. Dos campos de concentração nazis e comunistas à abjecção de Pol Pot e à acção de extermínio no Ruanda, alguma coisa devíamos ter aprendido; mas não. Não se aprendeu o suficiente, nunca se aprendeu o suficiente. Os combates que atravessam o Iraque são a revelação de uma guerra estranha em que as televisões transmitem em directo não apenas os clarões das bombas no céu de Bagdad, mas também o zumbido da guerra de propaganda que manterá as ruas do ocidente suspensas até ao fim. São duas guerras distintas: a real, de que nenhuma televisão poderá transmitir o cheiro, a intensidade, a proximidade do pânico, a poeira do deserto, o nome das vítimas; e a da propaganda, que se ganha nos palcos da televisão.» Portanto, a juntar à deselegância e provavelmente a razões de ordem pessoal (além de querer conversa), o J.P.H. fala no ar, por ouvir dizer, porque lhe parece.

O J.P.H., que escreve num blog com pessoas inteligentes e bons jornalistas, como a Ana Sá Lopes, a Maria José Oliveira e o Nuno Simas, o Glória Fácil, devia perceber que há pessoas com que se pode falar, concordar, discordar e manter lealdade no discurso. Pelos vistos, não sabe.

PORTUGAL, ENTÃO. 7 O L.M.G. vive em Bragança:

«A discussão sobre Portugal devia ser feita a nível muito básico para que todos percebêssemos do que estamos a falar. Não penso que a recolha de “impressões” seja um método muito mau, embora não seja fiável. Acho que Portugal tem tantos defeitos como qualquer outro país da Europa. Concordo quando diz que demos um salto enorme no cavaquismo mas que isso provocou uma indústria da corrupção. O problema é o fundo da mentalidade portuguesa, muito deixa-andar e pouco empenhada. Nos momentos cruciais somos capazes de dar o litro, de nos esforçarmos e de sermos gente séria, mas em geral descobre-se sempre o gato com rabo de fora da pequena corrupção e do desleixo. Por isso concordo muito com os posts do Guerra e Pas quando escreve sobre a maneira como as coisas funcionam mal em Portugal. Também acho que a província, ou o Portugal profundo, não é o mundo das maravilhas de que se fala de vez em quando, pelo contrário, é o lugar onde se reunem todos os defeitos dos portugueses, com especial importância quando vivem muito próximos e são muito conhecidos um dos outros. […] Um dos problemas crónicos é a ignorância em muitos sectores, desde os opinion makers até ao cidadão comum que não lê nem se interessa muito por aquilo que desconhece.»

PORTUGAL, ENTÃO. 6 No Brasil, São Paulo, B.H. trabalha há seis meses; é engenheiro, trabalha em informática e é de Lisboa:

«Acho que vou ficar. […] Mas a coisa que me impressionou mais foi a qualidade do ensino, ao contrário do que eu pensava e do que se diz. Os meus filhos estudam num colégio privado (mas não desses de elite) e trabalham bastante, são obrigados a estudar o dobro do que faziam aí, onde andaram dois anos na escola pública e três na particular. Os professores interessam-se embora sejam mal pagos, como quase toda a gente no Brasil. […] Outra coisa que me impressionou foi a qualidade do atendimento nas lojas e em quase todos os serviços públicos privados. Em Portugal seria impossível ser tratado assim.»

PORTUGAL, ENTÃO. 5 Em Estocolmo há três anos, J.L.M. é economista e, antes da Suécia, viveu em Londres durante dois anos:

«Tenho saudades do sol, isso tenho — e de dias compridos, de luz do dia até às sete da tarde. No Inverno, quando a luz desaparece por volta das três ou quatro, coberta de cinzento, penso no Minho, onde cresci. […] Mas há coisas de que não tenho saudades. De vez em quando reunimo-nos num jantar mais ou menos português, eu e mais três amigos, e falamos de Portugal; não nos sentimos propriamente estrangeirados, mas temos uma distância confortável que nos permite avaliar melhor o que não está certo, não pode estar certo, em Portugal: o funcionamento da Administração Pública de certeza — essa foi, aliás, a primeira surpresa quando aqui cheguei, porque me senti protegido e não perseguido pelo Estado. O sistema de saúde, muito socialista, funciona com alguma dose de simpatia que seria impossível em Portugal — a senhora telefona a avisar da minha consulta, a lembrar-me dos documentos que tenho de trazer. O fisco diz-me, no fim do ano, o que eu tenho de pagar; nem preciso de me mexer mais. A vida é mais confortável aqui, embora me multem se eu ultrapasso os 60 kms/h onde é proibido circular acima disso. Não quero voltar a Portugal, embora tenha saudades de coisas que me lembram a minha adolescência, como a praia, os matraquilhos, o presunto e as raparigas de Braga. Mas Portugal, estou hoje convencido (até como economista), é um país que trata mal os portugueses. É um defeito que trazemos connosco desde há séculos, não vale a pena dar voltas. Os “iluministas” do nosso século XVIII teriam hoje o mesmo fim que tiveram durante a sua época: ser esquecidos e invejados. Não, afinal não tenho muitas saudades, e tenho pena porque Portugal tem comida óptima. Sou um mau português?»

PORTUGAL, ENTÃO. 4 A conversa sobre «saudades de Portugal» e o «patriotismo» — a propósito do texto inicial com este título, «Portugal, então», que passou para outros blogs — tem suscitado vários mails que irei publicando por estes dias. S.N. é cientista e vive em Nova Iorque há cinco anos:

«Pois, eu tenho saudades, do SG Filtro não, até porque fumo Ventil — mesmo aqui em NY após 5 anos, mais por uma questão de preço do que por amor à Tabaqueira nacional (7 USD por maço de cigarros não dá para o meu salário e ainda não cheguei à fase de mudar os meus hábitos de fumadora... Bacalhau vou comendo de vez em quando mas também não é isso; acho que, de cada vez que se juntam uns portugas a falar de comida portuguesa chega-me matar as saudades a evocar as lembranças da comida da mamã... Embora seja verdade que quando aí vou no Inverno os meus pais têm tanto prazer como eu em satisfazer a minha gula: arrancamos para Ponte de Lima ou Donim para comer papas de sarrabulho. Eu sou do Porto, mas no ano antes de vir para NY vivia em Lisboa; a certa altura sentia saudades da viagem de carro entre Alfama e Oeiras, com o sol na marginal, o cheiro do mar; tanto como do Café Piolho, no Porto, ondei fiz a universidade; e de Terrena, e da estrada cheia de sol no Alentejo, de Ferreira do Bode e de Piódão e de outras terras de que já não me consigo lembrar, ou de um namorado que nesta altura está casado e vai sei pai. Também não sinto o chamamento da Pátria. Na verdade, deixo NY — mas em Janeiro mudo-me para Londres e conto aí passar duas semanas antes de partir para Angola. Duas semanas para matar saudades passados estes cinco anos. E as saudades são muitas, não sei é bem de quê — os amigos não são os mesmos (são menos e estamos diferentes); a família está sempre lá mas, se calhar também por isso, sei que não vai mudar e não me vai abandonar nem cobrar as minhas ausências; e as saudades misturam-se com a culpa de não ver uns a crescer e outros a envelhecer, a terra e as coisas confortáveis por serem familiares (mas o País também não é o mesmo e ainda bem). Uma ou duas semanas por ano nestes últimos cinco anos e o Público nos favoritos da net já não me dão grande autoridade para falar de como é viver em Portugal. Saudades? De ser mais nova e de não ter que tomar decisões sozinha? De ter uma casa (dos meus pais) e me sentir protegida? Tenho saudades, mas daqui a três semanas vou ter saudades de NY.»

agosto 21, 2003

NOITE, O QUE É? 4. A última cinza do dia, o primeiro amanhecer, uma grande quantidade de árvores, tudo o que — de repente — há de subterrâneo, perfeito. Teria sido isto, exactamente isto, que se ouve a meio da noite? Entretanto faço listas, o mundo organiza-se assim, mais tranquilo; os sonhos são sempre desenhos que se podem tornar mais nítidos, mais próximos, à medida que os dias passam. Quantos dias faltam? O que flutua quando o vento passa?

ESTÁ BEM. O João Pedro Henriques, que é um amigo de «vária data», faz no Glória Fácil, agora enriquecido com o contributo da Ana Sá Lopes (muito e muito bem-vinda — com o Nuno Simas e a Maria José Oliveira, aí está um blog a que é difícil resistir), uma referência que eu, sinceramente, não merecia. Não vale a pena lembrar-lhe o que escrevi e o que discutimos longamente. Há momentos assim, mas o tempo passa.

agosto 20, 2003

NOITE, O QUE É? 3 Ouço essa voz escrita, isso basta-me muitas vezes para adormecer. Como o cheiro do café, de facto. O aroma do tabaco. Estar descalço no chão. Nadar. Pão de queijo. Dois livros, ou três. Uma cerveja fora de horas. As estradas que nos esperam, as praias abandonadas, os mapas, a nossa condição. Um dia num país, um dia noutro. Clarões no meio da escuridão.

VAZIO. Na net alguém escreve a palavra que tudo isto sugere: vazio. Um vazio enorme. E a sensação de que vai ser pior.

O QUE É A VERDADE, PORTANTO? Acho que eles ensandeceram. Anos a ouvi-los, a perorar, compostos, de ar sério e, no entanto, contumazes naquela prática de fazer equivaler todo o mal e de manterem a face, a ignorância e os lugares-comuns. O atentado em Bagdad, diz uma luminária na RTP, é a prova de que os americanos não são bem-vindos; mais do que isso, a prova de que os funcionários da ONU tinham privilégios. É estranho isto ser dito por quem é, mas acho que eles ensandeceram. Acho que tudo lhes serve — o relativismo, a falta de escrúpulos, a ignorância outra vez (que é a mãe de todos os defeitos). Afinal, matar americanos, como matar funcionários da ONU, como matar Sérgio Vieira de Mello, como matar miúdos que visitaram o Muro, é tudo a mesma coisa. Tudo se justifica. Eles ensandeceram.

ISSO. «Nada lhes devolverá a vida.» Frase perfeita, e eu sei que é escrita com o coração.

RISO. Na televisão, alguém diz que isto é «terrorismo contra terrorismo». Provavelmente, o abjecto instala-se no coração das pessoas. Não vejo outra hipótese.

ESTRANHO. Às vezes — agora que vejo melhor as imagens da televisão — passava por ali, a caminho de um café. Eu e o Pedro Loureiro atravessávamos a rua, havia uma loja de jornais (de todas as línguas, de todas as tendências, admirável Babel onde toda a gente sabe várias línguas e aprecia uma em especial — encontrámos muitos que falavam português), duas livrarias, restaurantes com cheiro de falafel, humus, cerveja, fumo. Comprávamos jornais — o Haaretz primeiro, sim —, sentávamo-nos a beber café, a ver as raparigas de Jerusalém, os vendedores de pita, os hasidim caminhando com as mãos atrás das costas, apressados para chegarem mais depressa a nenhum lugar. Mais ao fundo, seguindo por essa rua, outra Babel semi-muda de todas as tendências, os miúdos juntavam-se nas noites de sábado. Uma noite, quando regressávamos de Gaza, o P.L. e um amigo comum, o Nadav, partiram para lá dos muros num Volvo velho à procura de cerveja — eu fui para o hotel ver televisão, ocupação dos pobres de espírito e dos que andam de hotel em hotel. De vez em quando passava uma ambulância e eu temia pelo Pedro e pelo Nadav. Hoje esse temor voltou com a naturalidade dos dias de poeira — não a poeira do Neguev, a poeira das ruas, a poeira das colinas de Jerusalém. O lugar, aliás, vê-se da estrada que sai de Jerusalém na direcção do mar. Numa das vezes, ao fim da tarde, íamos apanhar um avião a Telavive, parámos na estrada para ver aquele dorso esbranquiçado de casas, cúpulas de igrejas, minaretes, o céu alaranjado e azul, os cedros nas colinas, os caminhos cheios de gente que descia e subia para a cidade de todos.
Quando oiço alguns analistas comentando a morte à solta em Jerusalém, a meio das negociações do roadmap, sinto vergonha. Por aquilo a que pode descer a tão pouca dignidade dos homens.

agosto 19, 2003

MONSTRO, 3. Diz o Pedro: «Foi um fim triste para um dia de outro modo normal. Acompanhei ao longo de várias horas a Sky News e a sua cobertura do atentado à Sede das ONU em Bagdad. Fiquei chocado quando algumas horas após o sucedido começaram a aparecer relatos de que os socorristas haviam perdido contacto com Sérgio Vieira de Melo, ainda preso nos destroços. E depois, também com a notícia da sua morte. Raiva, fúria, indignação, não sei bem o que sentir. Confusão, talvez. No meio da consternação, no entanto, encontrei as suas palavras e a notícia de que hoje o Afeganistão celebrou o dia da sua independência (apesar de uma semana de violentos e mortais atentados terroristas). E de repente voltei a perceber porque vale a pena. Porque vale a pena persistir e trabalhar para a paz e reconstrução de países como o Iraque. Vieira de Melo e os restantes funcionários da ONU conheciam os riscos, mesmo assim aceitaram a missão de ajudar na estabilização do Iraque. Hoje perderam a vida no Iraque. Os timorenses não se esquecerão do que Vieira de Melo fez por eles, e creio que os iraquianos um dia também.»

MONSTRO, 2. Escreve-me o Filipe: «Ouça Mário Soares na TSF: "era esperado; parece que há uma resistência; um dia rebentam uma conduta de gás, noutro dia fazem um atentado." É mais ou menos como dizermos de um amigo que morreu baleado num bairro de má fama, "era de esperar", "foi estúpido em andar por ali". Diga-me, caro FJV, era capaz de incluir Mário Soares, no grupo dos "idiotas úteis"?» Há coisas, há coisas...

MONSTRO. «O monstro não foi provocado, foi semeado, nutrido, ensinado, adestrado e financiado pelos EUA. Caso não saiba, foi a CIA quem demonstrou aos mujahideen do Afeganistão as virtudes dos carros-bomba ou das crianças amortalhadas em TNT, enfim, a melhor parte do reportório dos grupos fundamentalistas que os mesmos EUA apregoam, amnesicamente, como o inimigo arquétipo», escreve-me o T-Zero. Já sabia.

ASSASSÍNIO, 4. Há uma frase no meio disto, que resume toda a covardia e toda a estupidez: «Não provoquemos o monstro para que o monstro não nos ataque.» Lembra os grandes momentos, de 1936 até hoje.

ASSASSÍNIO, 3. Horas depois, explode um autocarro em Jerusalém; 20 mortos (80 feridos), entre os quais crianças que tinham acabado de fazer a sua primeira visita ao Muro (Kottel). A Jihad Islâmica, cheia de heróis, reivindicou. O mundo está cheio de danos colaterais. Mesmo em Jerusalém.

ASSASSÍNIO, 2. Para os que neste momento estão a falar na rádio lamentando a morte de Sérgio Vieira de Mello como resultado da intervenção americana no Iraque, relembro que o ataque foi contra o quartel-general da ONU e não contra a América. O mundo está cheio de danos colaterais, de cúmplices e de idiotas úteis.

ASSASSÍNIO. A morte de Sérgio Vieira de Mello em Bagdad, nesta tarde, não foi apenas em resultado de um atentado contra o destacamento das Nações Unidas no Iraque ou contra a presença americana no Iraque. Foi um assassínio premeditado. Sérgio Vieira de Mello foi o mais recente dos grandes reformadores da ONU — um homem honrado e bom. Apesar das teias e do compexo brutal de empecilhos armado pelos burocratas da ONU, Sérgio Vieira de Mello procurava sempre mais naquilo que lhe era possível.

Os que se riem a cada atentado, os covardes de todas as tendências e relativismos e idiotas úteis em quase todas as circunstâncias, chorarão em público — mas, intimamente, sorrirão e terão os sarcasmos do costume. Sorriram a propósito da devastação que os «heróis fedayin» lançam nos poços de petróleo e nos oleodutos; sorriram a propósito de cada soldado americano morto; tal como sorriem a cada vítima dos seus heróis armados e preparados para morrer e matar.

A morte de Sérgio Vieira de Mello é apenas mais um crime cometido pelos seguidores de Saddam. Tem a sua marca e o seu rosto. A sua assinatura.

CAFÉ. Subitamente, o cheiro do café. Como de outras vezes os aromas que vêm da terra, dos jardins, dos arvoredos. Mas agora foi o do café, profundíssimo, cheio de promessas. Podemos fazer poesia sobre isso, sem arder de comoção?

PORTUGAL, ENTÃO. 3 O Cruzes, Canhoto! não gostou do texto «Portugal, então.» E escreveu: «Sim, há boçalidade, estupidez, sobranceria em Portugal. Mas nunca notei que fosse em quantidades superiores aos de outros países. São os italianos que têm mais acidentes de trânsito, os holandeses que mijam a cada esquina, os franceses que votaram no Le Pen, os alemães que fizeram o Holocausto, os austríacos que deram uma mãozinha e nunca pediram desculpa, os espanhóis que matam as mulheres à pancada, os ingleses que inventaram as Spice Girls, os suíços fazem referendos sobre que famílias emigrantes expulsar do país e os americanos têm o Jerry Springer Show. Aliás, é de lembrar que os formatos dos programas em que o Aviz se inspira para caracterizar o país foram todos inventados, testados e bem sucedidos nos maravilhosos países estrangeiros. Portugal é um país pequeno, com poucos recursos, que tem feito profundos esforços para sair do obscurantismo onde esteve encerrado cinquenta anos por um reaccionário beato. Tem baixos níveis de educação, baixo poder de compra, pouca participação cívica e pouco associativismo, além de propensão para o hipercriticismo e para mitificação de tudo o que é estrangeiro. Fora isso é tão medíocre como os outros.»

Vamos por partes, que é como deve ser. Quanto à «boçalidade, estupidez e sobranceria», caro J., não mencionei níveis nem quantidades — citei um mail de um amigo. Não comento as boçalidades e infâmias que fizemos ao longo da nossa história, para que possa compará-las com as votações em Le Pen ou com a esclada de Hitler. «Boçalidade, estupidez e sobranceria» existem em todo o lado — basta ver o Jerry Springer, para não ir mais longe, basta ir à louvada Itália para apreciar Berlusconi. Não vou cair nisso de comparar boçalidades. Depois, não me inspirei em nenhum «formato de programa» para falar de televisão (nem no Jerry Springer — que a TVI imita —, nem na Endemol): escrevi apenas — «televisão». E, com isso, quero dizer telejornais; o resto são «programas» e «formatos». Telejornais e ignorância pura, boçalidade, estupidez e sobranceria na televisão. Posso não gostar, não?
Quando à «evolução portuguesa»: Portugal fez um enorme esforço para ultrapassar as deficiências, atrasos e mediocridade — e não apenas em relação ao «reaccionário beato», mas em relação à própria cultura portuguesa. Em duas décadas, Portugal mudou mais do que todos os outros países europeus; fez em dez anos (os dez anos que apanham o cavaquismo, sim) as reformas que muitos outros países levaram várias décadas a percorrer — na universidade, no consumo, na sexualidade, na literatura, na economia, nos comportamentos sociais, na família, etc. Em dez anos (sobretudo com esses dez anos — o que não faz de mim um cavaquista), Portugal ultrapassou com velocidade muitas das barreiras que outros países europeus fizeram saídos da II Guerra. Em dez anos começámos a falar — na televisão — de tudo. E, antes disso, caro J., Portugal fez uma coisa notável: recebeu, em três meses, um milhão de pessoas vindas de África — e essas pessoas, muitas delas marginalizadas, com caixotes de velharias trazidas nos porões, mudaram muito do que era Portugal: modernizaram a indústria no interior do país, chocaram a pequenez das nossas províncias, abriram brechas na «solidez moral» da «nossa terra». Portugal foi um herói. Sinceramente.
Mas desenvolvemos, também nesses dez anos, uma razoável indústria da corrupção e um interessante sentimento de impunidade (que pagaremos: a Expo’98, o Euro 2004, etc); tendo feito uma revolução nas mentalidades (provavelmente, caro J., o «beato reaccionário» já foi esquecido há muito e a sua influência é bem capaz de ser muito remota), não a fizemos na justiça nem no sistema político. Ser tão medíocre como os outros é capaz de ser razão para ficarmos satisfeitos. Mas não me parece, sequer, que seja assim; podemos defender a nossa «boçalidade», a nossa «estupidez» que Sena nunca viu desaparecer só porque veio a democracia. Mas isso é outra conversa. Não vou comparar os nossos defeitos aos dos outros — o que eu escrevi, o que deixei escrito, caro J., é que pessoalmente não me enterneço com eles. Não me peça para emudecer de ternura diante das marchas de Sto. António ou do S. João. Eu não impeço ninguém de saltar para a rua a esganiçar-se, «ó que lindo é o nosso bairro», «manjerico, manjerico, etc.». Em momentos de insanidade até posso achar graça. Mas não me emociono com isso. E perguntei, antes: temos mesmo de gostar da nossa terra? Deverá ser excluído um português que acha muitos vinhos chilenos ou australianos, ou californianos (eu podia dizer italianos ou franceses, mas nisso não me apanham), melhores do que os nossos? Terei de gostar de ler as entrevistas com a D. Filomena Pinto da Costa ou a ex-Albarran, só porque a imprensa americana fuzilou aquele candidato democrata que passeava com namoradas no barco ou o procurador Starr quis saber tudo sobre os hábitos sexuais de Clinton? Terei de me confortar com Herman José só porque «é nosso» — porque o humor da televisão mexicana está abaixo de cão? Ou, quando a TVI levar o mago Alexandrino ao «Jornal Nacional» terei de me censurar e calar, só porque um canal de televisão alemã faz coisa parecida? Terei de me contentar com a arquitectura suburbana de Lisboa e do Porto e de manifestar a minha saudade pelas «nossas coisas»? Foi isso que eu disse. Aliás, ainda lá está. Nunca disse que éramos piores do que os outros. Mas, mesmo assim, defendo que temos o direito de escolher a nossa terra. É uma perspectiva como qualquer outra.

agosto 18, 2003

NOITE, O QUE É? 2. Um magnífico texto de Pedro Mexia (ainda não tem link...) relembra, a certa altura, uma evidência perdida: «Sabemos hoje que, como tem alertado Régis Debray, a perda da dimensão religiosa, mesmo no aspecto meramente informativo, impede muitos de tomar contacto com a cultura ocidental dos últimos vinte séculos.»
Há, na cultura contemporânea, a tentação de pensar que a «dimensão religiosa» é «um mundo à parte» e que só o comentam aqueles que lhe estão intimamente ligados — ou teólogos ou «observantes». Esse perigo de deixar a «dimensão religiosa» entregue às ortodoxias só existe por causa de um pudor, o de dizer o seu nome.

NOITE O QUE É? Muitas vezes penso nisso. Nas horas desencontradas, no ruído do mar, no que tem sentido e no que é só uma aproximação a todos os sentidos que a vida há-de ter. É quando uma imensa harmonia invade as coisas. A minha filha dançou no terreiro, contou ao telefone. Ouço-a no meio do mar.

agosto 17, 2003

METABLOG. A propósito ou a meio de uma polémica, o A Formiga de Langton interroga-se sobre a forma como cada blog «inicia a actividade»: «Nada como ler o primeiro post de cada blog. Os primeiros posts dizem muito, ao contrário do que se possa pensar.» O melhor de todos, até agora, foi o do Aquele Outro — assim, simples: «Inicio do meu Blog... / # posted by jgo @ 9:43 PM.» E mainada.

PORTUGAL, ENTÃO, 2. De repente encontro um blog. Leva o nome de Cristóvão de Moura, e é de Paulo Varela Gomes. Sobre Portugal encontro este parágrafo: «Há duas pessoas em mim quando penso em Portugal: a moderna que sabe que a pátria é um conceito ideológico datado e perigoso. A outra (romântica?) que sonha com Goa portuguesa, embora João França de Sousa me tenha ensinado a aprender que nunca se trata bem disso quando se sonha.Destesto olhar em volta e ver-me num país de Oliveiras de Figueira, donos medíocres de lojecas de merda. Recuso ser deste país. O meu rei é o rei de Hespanha.»

Porquê Cristóvão de Moura. Paulo Varela Gomes explica: «A primeira escolha foi: Alcácer Kibir ou Cristovão de Moura? O fim ou o recomeço? Nunca teria sido 1º de Dezembro ou Braganças, o começo do fim. Poderia ter sido Rio de Janeiro,a capital de um possível recomeço lá para mil oitocentos e trocos. Ou Marquês de Pombal, seu possível agente, um pouco antes. Ficou Cristovão de Moura, o anti-herói de um certo nacionalismo burguês do século XIX, o meu herói português (com Alexandre Herculano, Antero, o meu pai).»

Sobre o personagem histórico: «D. Cristovão de Moura Corte Real (1538-1613), 1º conde de Lumiares e 1º marquês de Castelo Rodrigo, foi uma das grandes figuras políticas do século XVI ibérico. Manteve em toda a sua vida duas fidelidades maiores: aos Áustrias em primeiro lugar, e de entre estes a Filipe II de Espanha e I de Portugal de quem foi conselheiro principal e para quem foi instrumental no acesso do rei à coroa portuguesa em 1580. À sua terra , Portugal, em segundo lugar. E só depois, muito depois, o resto: a monarquia hispânica. Foi para Espanha quando muito jovem no séquito da princesa D. Joana, mãe de D. Sebastião, que encheu de portugueses a administração e a corte espanholas. Casou em 1582 com Margarida Corte Real, filha de Vasco Eanes da Corte Real, capitão da ilha Terceira e de S. Jorge. Vasco Eanes fora fidalgo de D. Manuel I que lhe concedeu casas e imunidades junto à ribeira de Lisboa. A vila de Castelo Rodrigo veio a D. Cristovão não pelo lado da mulher mas pelo do pai, D. Luis de Moura, falecido em 1587. Dela recebeu o título de conde em 1594 e o de marquês em 1598. Viveu quase toda a sua vida de adulto em Espanha e na corte de Filipe II que só abandonou com a morte do Rei em 1598. Foi Vice-Rei de Portugal, residindo em Lisboa e em Queluz, entre 1600 e 1603 e entre 1608 e 1612. O filho, D. Manuel, e o neto D. Cristovão, nunca reconheceram a apropriação da coroa portuguesa pelos Bragança em 1640 e a família perdeu todos os seus bens em Portugal e foi, no século XIX, estigmatizada com a ideia de traição. D. Cristovão percebeu claramente que, após Alcácer Kibir e, sobretudo, perante a ameaça das nações marítimas do norte da Europa, a nação portuguesa só tinha destino possível no quadro da União Ibérica e da igualdade entre estados consagrada pelo estatuto de Tomar. De facto, a história de Portugal como país europeu com influência mundial acabou em 1640. D. João V ainda tentou, com o ouro e os diamantes do Brasil, repetir a odisseia de D. Manuel, duzentos anos antes. O Marquês de Pombal sonhou um país industrializado, menos imperial e mais pragmático. As invasões francesas e a horrível guerra civil que se lhes seguio, desencadearam o progressivo e agónico desvanecimento de Portugal - que Salazar concluiu, inventando um país à sua imagem de medíocre feitor dos ricos e seminarista da Beira, sem grandeza nem rasgo. Estrangulada a revolução de 1974-75, o único episódio digno da história colectiva do povo português desde o século XVI, por gente tão medíocre e tão rasteiramente ambiciosa como Mário Soares, o país que hoje existe envergonha-me. Por isso recordo Cristovão de Moura.»

AVIZ. O Adufe publica um texto sobre o «progrom» que ficou conhecido como a «Matança da Pascoela», onde se diz que «o rei estava lá longe, em Aviz». De vez em quando gosto de recomendar a História da Inquisição de Évora de A. Borges Coelho (edição Caminho) só para alguém perceber a forma como o horror existiu mesmo. Só Aviz contribuiu com cerca de 60 homens e mulheres para o Santo Ofício de Évora.

PORTUGAL, ENTÃO. Por vezes, leio nos blogs críticas severas ao país. Devo reconhecer que quase todas elas são merecidas, independentemente de julgarmos que «isto só em Portugal» ou que só em Portugal é que somos infelizes. Há entre nós uma vasta tradição de queixume, de amargura e de despeito, mas poucos tiveram a coragem e o desplante de Diogo Mainardi, que escreveu mesmo um romance intitulado Contra o Brasil — aliás, tanto os seus livros como as suas crónicas são um caso a estudar. Em Portugal, que eu saiba, no último momento evitamos transpor a barreira; naquele instante em que alguém quer mesmo escrever «merda de país», «merda de gente», e vai escrever, alguma coisa o prende ao «torrão natal» e pensa então em como são relativos os ódios do mundo, em como — afinal, se calhar — o dr. Sampaio não é assim tão ridículo, se calhar a imprensa alemã é pior, a televisão do Liechtenstein é péssima, os suecos suicidam-se abundantemente, os finlandeses bebem para não enfrentarem o céu cinzento, e, sinceramente, os islandeses têm os hábitos de leitura que têm porque com aquele clima são obrigados a passar metade da vida em casa, refugiados no sofá ou na cozinha (e ainda por cima reproduzem-se pouco). Depois, ainda naquele instante, enternecemo-nos com o aspecto dos frequentadores de shoppings ao sábado de tarde, somos compreensivos para com as lágrimas das televisões. E fica tudo assim, tremido.
Por outro lado, de vez em quando leio nos blogs críticas severas às críticas ao país. «Se é assim tão mau, por que é que não saem definitivamente?» Eu acho que, de facto, é uma hipótese, embora tenha o direito de continuar a criticar o que me parece. Tenho uma grande incompatibilidade com o patriotismo (com o nacionalismo ainda mais) e — muito mais — com os seus intérpretes. No regresso a Portugal, nunca tive saudade do SG Filtro, do bacalhau, das sardinhas, «da nossa cerveja», «dos nossos vinhos», das cervejarias, «do nosso futebol», da TVI, do monumento aos Descobrimentos, das estradas nacionais, da música dos Delfins ou da voz da Teresa Salgueiro, dos desfiles de Sto. António. Há portugueses atípicos, evidentemente. Como me diz um amigo, por mail, «esforçamo-nos por acreditar que isto não é assim — que a estupidez está em minoria, que a sobranceria é residual, que a boçalidade é marginal». Mas, depois, a gente liga a televisão. Lá se vai tudo.

REGIONALISMO. Ao passar os olhos por muitos blogs «locais» reconheço que há um avanço nítido, Portugal fora. Mas os problemas são mais sérios quando se trata de «regionalismo» e de «bairrismo», coisas que nunca soube verdadeiramente o que eram a não ser pela sua linguagem de há dois séculos, envergonhada ou épica, miudinha e pirosa. A linguagem do «regionalismo» (com aqueles ditirambos sobre «as glórias da nossa terra», feitos «para mostrar as nossas belezas» ou para «enaltecer a nossa terra, tão desprezada») está frequentemente cheia ou de mau carácter ou de erros de gramática. Não consigo explicar. Aquele verso repetido até à exaustão, «terra linda sem igual», dá-me vontade de rir. Porque, na verdade, há sempre uma terra mais «linda», com mais «glórias», com outras «belezas», sem tanto atavismo.
{Os asturianos criaram uma canção estranha, Asturias, Patria Querida, onde não se «enaltecem as belezas locais»; fala-se dos antepassados, naturalmente, mas há ali um tom irremediável: com todos os defeitos, que sabemos que temos, é a «pátria querida». Pelo contrário, o hino brasileiro é incompreensível para um estudante do secundário: não só não se sabe do que se fala como, sabendo-se, os versos são ilegíleis mesmo para a sua época.}
Ou seja: temos, mesmo, de gostar «da nossa terra»?

BLOGS. Manter um blog cria exigências. Não é uma descoberta, mas uma espécie de rendição. Muitas vezes, a meio da noite — enquanto aguardo notícias soltas —, aparece uma grande vontade de escrever; de outras, nem tanto. Às vezes, nenhuma vontade. E, depois, uma pergunta: «Quando escreves o que tens mesmo de escrever?» Esta pergunta deixa rasto. Exigências.

agosto 15, 2003

ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS. A pequena interrupção no Aviz deve-se aos chamados «motivos gerais»: alterações climáticas, livros por ler, listas de coisas para fazer, folhas soltas, vontade de comer quindim, delírios, o que quiserem. Regresso marcado para amanhã à noite.

agosto 13, 2003

CAPITAL DA «BLOGOSFERA». Aviz tornou-se, definitivamente, a terra portuguesa onde há mais blogs por habitante. Além de O Maranhão, de A Quinta Coluna (ligado a Aldeia Velha, e com muito bom gosto literário e musical) e do Bom Dia Alentejo, apareceu entretanto o Desabafos e o Triste Aviz / Avis Linda. Como disse recentemente, acho isto corajoso numa terra de gente cada vez mais calada. E triste, já agora.

agosto 12, 2003

MADRUGADA. Nessa altura falamos de comida, de muita comida, do céu mesmo em cima das árvores, de todas as coisas proibidas, da música, dos passos na areia, de todas as coisas esquecidas.

ACONTECE. O José Pacheco Pereira escreveu sobre o «Acontece» no Abrupto — é um tema inesgotável. Desde que o Prof. Marcelo lançou na TVI o «anátema», lembrando o «Livro Aberto» da NTV como um «substituto» do «Acontece» (recebi uma série de telefonemas: «Então, és tu que vais substituir o “Acontece”, pá? ») que senti que era útil esclarecer duas ou três coisas. Não faz mal a ninguém, muito menos a mim. Tenho para com o Carlos Pinto Coelho uma dívida e o dever de falar dessa gratidão. O José Pacheco Pereira, que sabe o valor da «gratidão» e dessas coisas que hoje são consideradas «ninharias» (já o provou quando falou do «Flashback» da TSF), há-de perceber o assunto. Quando o Emídio Rangel resolveu acabar com o «Escrita em Dia» na SIC (era o meu programa na altura) por eu me ter recusado a ir para o painel de «Os Donos da Bola» (ou seja: só falo de futebol quando quero), o Carlos Pinto Coelho foi das primeiras pessoas a telefonar-me (ao contrário de outras que — nas suas colunas — se desfizeram em loas a Rangel para tentar aproveitar o «buraco» que se abria na programação da SIC, sim): «O que quiseres fazer em televisão, já sabes, o “Acontece” está disponível.» Agradeci-lhe na altura. Mas o «Acontece» não seria, nunca, o meu programa, nem vale a pena explicar isso agora. O Carlos P. C., como JPP reconheceu, é uma pessoa com fair play. Eu não concordo com o Carlos P.C. em muitas coisas, mas nunca o escondemos um do outro. Quando o «Escrita em Dia» comemorou um ano de existência na SIC, o Carlos P.C. apareceu com uma equipa de reportagem no restaurante onde se festejava a coisa, e fez uma peça simpática — fair play puro. Quando começou o «Ler para Crer» na RTP2 (com um programa que reuniu o José Pacheco Pereira, justamente, e o Domingos Lopes, do PCP, para discutir O Livro Negro do Comunismo [edição Quetzal]), o Carlos P.C. apareceu para filmar os preparativos — não tinha sido «directiva» da RTP; tinha sido ele próprio a decidir que um programa sobre livros era notícia. Estou grato por isso, e falo dessa gratidão publicamente — uma pessoa sem gratidão é um bicho.
O «Acontece» termina com pouca glória. É pena. E é injusto. Não seria, não poderia ser — já o disse, até mesmo quando o «Acontece» fez a sua mega-emissão comemorativa — o meu programa, e acho que seria necessário mudar muita coisa nele, mas, tinha vantagens que o JL não tem — como escreveu o José Pacheco Pereira. A «divulgação cultural» em Portugal é um mundo perigoso e frágil. Um dia poderemos falar disso.

De qualquer modo, a esse propósito (e a propósito do fim da Livraria Francesa, por exemplo, que pôs tanta gente a chorar sem razão), relembro aqui um dos episódios mais ridículos da nossa vida televisiva, que foi «o dia em que Bernard Pivot veio a Portugal». Meio-mundo prestou-se a genuflexões caricatas diante de um cavalheiro com imenso talento, em nome «de la France». Toda a gente quis aparecer no painel, lá por trás, figurar naquela espécie de «última ceia» realizada no Palácio Fronteira, e gravada para o «Bouillon de Culture» como se fosse a derradeira salvação das letras. Todos exercitaram o seu francês, todos veneraram a França, todos gemeram em francês. Na altura escrevi uma crónica sobre o assunto para o Diário de Notícias, em 1997. Está aqui (como de costume: para que não me acusem de «revisionista» quando andavam a entoar loas à sagrada França):

«Um pivot da “televisão cultural”»:
É curioso como estas coisas acontecem. Bernard Pivot esteve entre nós. Veio, gravou – no Palácio Fronteira – um dos programas da sua série “Bouillon de Culture” (da TF2 – que pode ser visto entre nós pela TV5) com o apoio do ministro português da Cultura. A imprensa, naturalmente, dedicou várias páginas ao assunto. Não sem razão. Bernard Pivot é um fenómeno em França e em toda a Europa, e constitui uma referência para todos os que se interessam por livros e que, alguma vez, foram leitores da Lire ou, por hipótese, frequentadores do seu anterior programa, “Apostrophes”. Através da Lire, Pivot possibilitou a divulgação do livro e o seu tratamento como matéria principal de uma publicação periódica completamente diferente do que até aí se tinha visto, abrindo as portas para uma dimensão comercial na forma como o livro era tratado; através do “Apostrophes”, Pivot inaugurou uma nova época para a presença do livro na televisão. São dados indiscutíveis e, só por isso, Bernard Pivot merece atenção e respeito. Agradecemos.
Mas esta vinda de Bernard Pivot ao nosso país revestiu-se também de um tom ridículo de veneração acrítica, que seria dispensável, já para não falar da escolha dos convidados que Pivot entendeu reunir para o “Bouillon de Culture”, com a justificação da sua proximidade em relação à França, ao Francês e à cultura francesa. Já não se sabe se agradecemos tanto. Uma escolha é uma escolha, está sujeita a todas as críticas, mas é a vida. Quem escolhe e divulga a sua escolha, arrisca quase tudo. O risco de Pivot foi calculadíssimo e, ao que se sabe, apoiado pela cultura oficial portuguesa de matriz francófona. Não se esperava outra coisa e, por isso, não são justas as críticas dos que, pedindo outra escolha, se escandalizaram com o facto. Queriam o quê?
O mais curioso, de resto, tem a ver com o facto de a televisão e os poderes públicos terem dado tanto destaque à intervenção e à presença de Pivot – nomeadamente à sua afirmação de que “a cultura só pode ter lugar na televisão pública”. Aí estava um cavalo de batalha que foi aproveitado, “que nem de propósito”. É ainda mais curioso que isso tenha acontecido num país onde a televisão pública não tem um programa exclusivamente dedicado ao livro, por exemplo.
Mas convém dizer, antes de mais, que a ideia de uma “televisão da cultura”, distribuída pelas várias artes que o audiovisual pode albergar (teatro, ópera, música, etc.) é, em si mesma, um projecto que pode conduzir a uma versão irresponsável e insuportável da própria ideia de televisão. Contra a fórmula da “televisão da cultura” seria melhor propor a ideia de uma “televisão culta”. Esse seria o grande “serviço público” que a televisão deveria prestar. Separar “a televisão” da “cultura” é um dos expedientes mais comuns de que se servem os defensores da mediocridade do audiovisual: de um lado, a televisão do futebol, das telenovelas, dos concursos, dos filmes de segunda e terceira ordem aos sábados à noite; do outro, até para demonstrar a sua inutilidade em termos de audiência, “share” e outras manigâncias, a ópera, a dança moderna, a música erudita, o teatro de vanguarda, o documentarismo literário ou não. Esta divisão é, a curto prazo, assassina para o serviço público de televisão.
Sem esquecer que um dos pilares em que devia assentar toda a programação televisiva devia ser o tão discutido “bom gosto”, ou seja, a qualidade dos produtos exibidos.
Por mais que se elogiem Pivot e o seu trabalho, seria natural que, entre nós, o seu programa fosse exibido em “horário adequado” [a última entrevista televisva de José Cardoso Pires foi emitida pelo «Escrita em Dia», na SIC, às 03:45 da madrugada...]. Já se sabe o que isso quer dizer. Por isso, parte dos elogios distribuídos têm a marca da hipocrisia política. O que não chega para fazer esquecer que, para muitos dos que se apressaram a festejar a vinda de Pivot, como se fosse o arauto de toda a bibliofilia e bibliofagia, é bom haver “um Pivot”, desde que seja um Pivot lá de fora. Francês, de preferência, está claro – isso deve servir para lhe desculpar tudo ou quase tudo.»

agosto 11, 2003

FRANÇA. Concordo com quase tudo o que foi dito pelo Abrupto, pelo O Intermitente, pelo Homem a Dias ou pelo Contra a Corrente a propósito do encerramento da livraria francesa. Acontece que eu gostava de ir lá, de vez em quando — foi lá que conheci Olivier Rolin, com quem participei num mano-a-mano bem-humorado sobre literatura de viagens — e apreciava o gosto da casa, se bem que raramente encontrasse um romance realmente bom em língua francesa, ou ensaios «estimulantes» que apetecesse comprar. O coro de indignações que se seguiu à notícia atingiu, no entanto, um tom de patetice, com o seu auge no texto de Sebastião Lima Rego (no Público) sobre a ameaça anglófona e o funil americano. Evidentemente que «tem de» haver uma livraria francesa em Lisboa — basta abri-la. E uma brasileira. E uma espanhola. E uma italiana. E uma inglesa. E uma alemã. E uma marroquina. Mas o tom de lamento usado não é honesto, nem justo, nem sério. A reacção ignorante e lamecha pelo fim da «influência francesa» no mundo lisboeta é coisa que nos devia fazer rir, por um lado, e indignar, por outro. Façamo-lo em silêncio, por pudor.
Sebastião Lima Rego (eu só li o texto depois da polémica ter corrido) acusa «os franceses» de pouco ou nada fazerem para alterarem «o estado de coisas» — os franceses até têm uma rádio Paris-Lisboa. Mas, para Sebastião Lima Rego, o estado francês (perdão, o Estado Francês) devia avançar pela Península fora, atravessar a Espanha, e criar uma livraria francesa em Lisboa (o estado francês costuma fazer isso nos países africanos em matéria de rádios, por exemplo) — não só para nossa ilustração, mas para nos ensinar que é preciso ter muito respeitinho pelos sacerdotes que falam francês. O inglês, essa língua danada do imperialismo (para não falar do castelhano e do alemão), ameaça o bem estar das estantes da nossa pequena intelligentsia. Sebastião Lima Rego argumenta com peso, argumenta com ferocidade: «A globalização anglossaxonizante tem asfixiado crescentemente, violentamente, a projecção francesa no mundo, quer política, quer económica quer cultural.» Só por isso, muito obrigado aos que nos libertaram da projecção política e económica da França. Esta defesa do imperialismo cultural francês dá pena. Coitados dos que agora vão ficar sem ler.

GOSTO BASTANTE. Há por aí uma grande animação em redor do «country». Acrescento-me a ela. Johnny Cash fundamental. E, se me perdoarem, uma voz que recordo de quando eu próprio fazia um programa de rádio: Nancy Griffith. E aquele romance de Robert James Waller: um casal que foge de um bar, uma pick-up com um rádio onde cada canção sugere uma parte da vida dos dois (não me lembro do nome do livro, depois direi), canções de Hank Williams. Leio que Townes Van Zandt está por aí a cantar; gosto. E ainda aquele filme que me faz sonhar com o country de hoje — Texasville, o olhar absurdo de todos os actores, as estradas de pó, o mundo refeito com uma nota solitária soando no recinto de rodeos, os amores que regressam no meio de um lago. Obrigado por terem falado de country.

A DERROTA. Alexandre Franco de Sá escreveu um texto que devia despertar-nos inquietações de vez em quando; leva o título «A Derrota» e é sobre Ésquilo — Os Persas. Vem no seu blog Caminhos Errantes: «Ésquilo, um grego, escreve a sua tragédia na perspectiva dos persas derrotados. Porque razão? Será que se trata da antecipação imprevisível da tolerância moderna, tentando adoptar bondosamente, num “relativismo” saudável, o ponto de vista do adversário? Penso que não.» A derrota pode reinventar a vida?

ÉVORA OUTRA VEZ. Na sexta-feira dei conta da chegada do ÉvoraBlog (animado por dois «autores toponímicos», o Giraldo e o Sertório); aparece agora o ÉvoraSim, animado pelo escritor Luís Carmelo (li a informação no Contra-a-Corrente e já lá fui, naturalmente). Aí está como a blogosfera regional se agita. No Alentejo, como escrevi recentemente, é mais do que necessário. Em terra de gente calada, estas vozes são música.

O FOGO É BOM. O Paulo César Simões assina no A Aba de Heisenberg um excelente texto com esse título: «O fogo é bom.» Não só inventaria causas e razões, mas aponta pistas de reflexão muito importantes e lança várias perturbações. Recomendo o texto como uma espécie de «dispositivo para lançar um debate» sério sobre o assunto. Só não o reproduzo porque acho que vale sempre a pena passar os olhos pelo A Aba de Heisenberg.

EXCELENTE CONTRATAÇÃO. Afinal, o Glória Fácil fez mais uma «contratação», e muito boa: o Nuno Simas, jornalista do Diário de Notícias, que se junta ao João Pedro Henriques e à Maria José Oliveira, do Público. Um trio a ler com atenção.

REPARAÇÃO. Só a minha distracção me impediu de mencionar até agora o Alfacinha, do Carlos Campos. Ao reler o blog, compreendo que fui injusto mesmo; a minha culpa aumenta. Sei do que falo.

NÃO ESQUEÇAS, 4. De todos os conflitos contemporâneos, poucos terão suscitado o aparecimento de tantos lugares-comuns como o que decorre no Médio Oriente. Mais: de tantas mistificações vulgares e grosseiras. Uma geração inteira nasceu e cresceu (e, embora não se dê conta disso, feneceu gloriosamente) convencida de que há causas boas e causas más e de que as causas boas são, necessariamente, as que aprendeu a venerar porque eram da esquerda — sendo óbvio que a direita não tinha causas. Essa relação traumática de parte da esquerda contemporânea com os conflitos estratégicos que se resolvem longe do seu terreno predilecto (e das simplificações que têm a ver com os critérios habituais da tradição marxista) gerou amargos de boca que desacreditaram não só as causas mas também as possibilidades da esquerda. Aos poucos, as deserções anunciam o seu rasto de horrores, de penitências e de arrependimentos. Os outros rastos — descansem — já estavam denunciados.
O anti-semitismo, por exemplo, reergue as suas barreiras onde pode, quer sob a bandeira dos vários nacionalismos e racismos, quer sob a protecção do estandarte da simpatia para com a causa palestiniana, que devia distinguir várias coisas — o que é discussão estratégica, o que é debate ideológico, o que são questões religiosas (que, em meu entender e para sermos completamente justos, se deveriam manter afastadas deste cenário). Infelizmente, é um combate desigual, como sempre o foi: é um combate contra a memória, contra a história e pela desculpabilização de vários horrores. Nesta matéria, o «romantismo revolucionário» não olha a meios para obter o perdão do tempo.
Os lugares-comuns, nesta matéria, multiplicam-se a uma velocidade muito maior do que as próprias mistificações: na televisão, sobretudo, e em nome da simplificação, jovens jornalistas habituados a repetir a lengalenga histriónica da geração anterior (porque o Médio Oriente sempre foi matéria para «analistas de esquerda») fazem o jogo da banalidade: legendar imagens que repetem cenas de violência, rostos com lágrimas, crispação, ira, morte – mas também esperança, paixão e fé, mesmo que cega. A imagem da II Intifada foi lida nesse contexto: um punhado de pedras de um lado, e de balas cegas do outro (infelizmente, pouca gente ou nenhuma, na nossa imprensa, lê árabe). Maravilhosa simplificação da história: nesse contexto, o partido a tomar é o da paixão e o da ira, porque aí, se alguém ler a cena à distância, deve existir alguma razão, alguma verdade. Mas as lágrimas, a morte, o sofrimento e a ira não constituem uma ideia, nem uma causa, nem um motivo. São apenas lágrimas, morte, sofrimento e ira. A história é outra coisa. Mesmo quando se pensa em sentido contrário.

Esta posição não é fácil. Mas vale a pena mantê-la, até para ser justo para com as minhas próprias ideias. Sobre este assunto, serei — e fui — claro. Sabe-se «para que lado pende a minha caneta» e nunca o escondi em favor de nenhuma «equidistância». Defendo um estado palestiniano democrático onde a autoridade não fomente o terrorismo nem vise, fundamentalmente, aniquilar o estado de Israel; onde os palestinianos possam eleger os seus líderes, onde possam ir à escola, falar de economia e de vários futuros. Defendo um rigoroso respeito pelo direito à existência do estado de Israel — e o seu direito à segurança. [A televisão egípcia repete, neste momento, uma série anti-semita inspirada na célebre fraude abjecta dos Protocolos dos Sábios de Sião, o que não é propriamente um bom sinal.] Tento, nesta como em outras matérias, ser justo e espero conseguir. Tento ser correcto. Tento não banalizar. No entanto, não deixarei nenhuma injustiça nem nenhuma mentira sem resposta. Não defendo nenhum horror, nenhuma exclusão (senão a da própria exclusão), nenhuma violência inútil ou protegida pela fé, por qualquer fé, incluindo a minha. Se aqueles que me enviam mails fizerem o favor de terem isso em conta, acho que é um passo adiante na conversa. É sinal de que se pode conversar. E de que somos pessoas inteligentes.

NÃO ESQUEÇAS, 3 «James Kirby» envia, por mail, uma reacção aos textos «Não Esqueças», referindo-se ao mail de J.B.: «Acusar a esquerda de revisionismo e anti-semitismo apenas pelas críticas que faz contra o Estado de Israel é pura demagogia. Eu critico abertamente países islâmicos que violam sistematicamente os direitos humanos. Será que isso faz de mim um anti-islamita? Claro que não. Um erro que se comete repetidamente é confundir a religião Judaica com o Estado de Israel. Isso não só é ridículo, como torna impossível a discussão aberta e clara sobre questão israelo-palestiniana.»
Ninguém disse o contrário; mas a memória dos homens é curta e não gostava de a ver encurtar mais. Veja-se texto de ontem, «Muros». Às vezes é preciso prestar mesmo atenção ao que se diz e ao que se lê.

agosto 10, 2003

GLÓRIA FÁCIL. Nasceu hoje — o primeiro texto a sério é de agorinha — o Glória Fácil, um blog de dois bons jornalistas do Público, a Maria José Oliveira e o João Pedro Henriques (e, dirão os jornalistas em geral, «e que texto...»). Sejam muito bem-vindos.

MUROS. O Mata-Mouros interpela-me, indirectamente, sobre a «questão do muro» que divide os territórios da Cisjordânia e os de Israel. Tenho sobre o assunto duas opiniões claras; em 2000 (para que não me acusem de revisionismo), escrevi no JN:
«No Médio Oriente é, agora, necessário dar dois passos atrás: impedir que Anthony Zinni, enviado do presidente americano, continue a incendiar a região; e retomar os passos recomendados pelo plano Mitchell. Só dessa maneira se poderá forçar Yasser Arafat a actuar com determinação para pôr fim à escalada da violência dos «movimentos sagrados» (a designação é do ex-presidente iraniano Rafsanyani) como o Hamas, as brigadas de al-Aqsa, o Hizzbullah e a Jihad Islâmica, e obrigar Ariel Sharon a retirar efectivamente dos territórios ocupados.
De resto, uma das maiores e mais recentes ameaças a Israel acaba de surgir de onde menos se espera: a imprensa noticiou com destaque uma provável iniciativa do governo de Israel — a construção de um muro em redor de Jerusalém ocidental, isolando a cidade israelita das áreas controladas pela Autoridade Palestiniana e tentando controlar as fronteiras do território com câmaras de vídeo e outros sistemas de vigilância electrónica. A ninguém escapa que este plano, apresentado anteontem ao primeiro-ministro Ariel Sharon (e designado como “enveloping Jerusalem”) pela esquerda trabalhista, é ridículo e desajustado aos olhos da opinião pública de todo o mundo. Não se trata de cercar a Cisjordânia e a faixa de Gaza mas, sim, de cercar Jerusalém ou o território de Israel, o que acaba por ser uma metáfora demasiado triste para ser verdade.»
Uma semana depois escrevi o seguinte: «Essa “cerca” humilhante relembra os guetos onde a diáspora judaica foi obrigada a permanecer na Europa. E a sua construção é o primeiro passo para o mais fatal dos perigos que ameaçam Israel e o nosso mundo: pensar que isolando o terrorismo e diminuindo o alcance do seu braço se há-de poder exterminá-lo.»
Esse muro, que choca o Mata-Mouros, foi defendido por Benyamin Eliezer, pelo Partido Trabalhista e por parte dos movimentos pacifistas na altura. Por várias razões: a sua localização, sensivelmente nas antigas fronteiras da Cisjordânia, marcava a soberania de Israel e do futuro estado palestiniano. Era uma arma dúplice e dúbia: por um lado, assegurava a divisão do território e a partilha de recursos naturais (como foi na semana passada defendido por um dos mais importantes editorialistas do Haaretz, de esquerda); por outro, simbolizava o absurdo do mundo: dois povos onde os extremistas não coincidem em nenhum lado, em nenhum ponto. O que é triste e desumano. São essas perplexidades que tocam o Mata-Mouros e, naturalmente, tocam toda a gente. Como dizia a Crónicas Matinais, às vezes é necessário «ir lá» para se perceber a dimensão humana e absurda de um problema sem solução aparente.

Em relação ao problema efectivo ou prático que o Mata-Mouros levanta de seguida — as famílias mistas —, reconheço com veemência que essa proposta de lei, como está formulada, não é uma «lei justa» e revela uma «iniquidade radical». Outras leis semelhantes, aprovadas durante o primeiro governo Sharon pelos partidos haredim e de extrema-direita, entre os quais o Partido Nacional Religioso de Effi Eitam (um dos mais sérios adversários israelitas a qualquer plano de paz), esbarraram depois no Supremo, como aliás está a acontecer actualmente.

PAIS. Hoje, no Brasil, é o Dia dos Pais. A minha filha vagueia entre as ondas e dança no terreiro.

ÉVORA. {Para o MacGuffin, por causa de Évora}

Uma das histórias contadas por Vergílio Ferreira sobre Évora tinha a ver com o tempo. Um dia, encontrou o reitor do liceu nas arcadas, junto da Praça do Giraldo: «Como está a dar-se por cá?» Vergílio Ferreira estava há uns meses em Évora e respondeu: «Muito bem, senhor reitor.» «Sabe», voltou o reitor, «os primeiros quinze anos é que custam, depois uma pessoa habitua-se…»
Eu vivi quatro anos em Évora, entre idas e vindas a Lisboa. Gostei daquela universidade, que ainda não tinha praxes nem praxistas; tinha um claustro belíssimo, o sol de Maio, aqueles fins de tarde amenos, o céu todo caindo sobre a cidade. E lembro muito a abertura da Carta ao Futuro, de Vergílio Ferreira, justamente: «Évora é uma cidade branca como uma ermida…» Essa brancura ficava tingida de fumo ao fim da noite, com os pequenos bares onde se conversava pela noite dentro, e se bebia amêndoa amarga; muita gente que hoje anda pela política participava nessas conversas — no meio universitário, juntamente com Aveiro e talvez a Beira Interior, falava-se muito do que Évora tinha de único, irrepetível — não era só o tempo, mas também o espaço. Era o «espírito de Évora», como se dizia nos congressos universitários dessa década de oitenta. Eu gostei sempre muito das cidades de província e do tempo que sobrava para ler todos os livros que se podiam ler, de fazer pedidos nas livrarias («Não há, mas logo à tarde já vem», como se ouvia dizer na Nazareth).
De vez em quando vou a Évora. Gosto da cidade à hora de almoço, quando as arcadas se esvaziam; e gosto dos fins de tarde, dos poucos jardins que resistem, dos telhados, das ruas, do silêncio. Dizem-me que já não é bem assim e eu acredito. Acredito em tudo o que se diz das cidades. Provavelmente, já não é possível uma Évora sem hipermercados nos subúrbios, e ainda bem, mas é possível evitar que a cidade se transforme numa cidade como as outras, cheia de carros nos passeios e de armazéns de alumínios à volta. A minha filha é reconhecida nas lojas, os meus filhos olham o templo de Diana vezes sem conta. O meu mundo de Évora é o da literatura que se escreveu sobre a cidade, o da antiga rua da Selaria (1º de Dezembro) do Giraldo para a Sé a meio da noite — falava-se enquanto se andava, gesticulava-se muito. Para o bem e para o mal, o Alentejo não é possível sem Évora (agora que tudo o resto se vai esvaziando); o que Évora for, será muito do Alentejo, na sua cultura, na sua maneira de pensar, de se organizar, de desenhar as suas ruas, de defender o seu céu, de preservar os seus telhados e as suas ruas. Portugal ficaria muito mais triste, imensamente mais pobre, se Évora for desaparecendo, em agonia.