maio 28, 2004

PORTUGAL POSITIVO. Parece que umas boas almas engendraram um novo slogan que dá pelo nome de Portugal Positivo. O que a ideia que o Portugal Positivo transporta é que os portugueses andam “descontentes com a situação”. Ora, estar “descontente com a situação” é um dado que se mantém há larguíssimos anos – com alguns intervalos regulares – e que constitui, mesmo, uma das características da sensibilidade nacional, salvo durante os momentos em que a economia “vai bem”, ou seja, em que há dinheiro para gastar, e abundantemente.
A ideia, segundo percebi, teria a ver com a necessidade de melhorar a auto-estima dos portugueses e mostrar-lhes que, afinal, há coisas boas a acontecerem em Portugal: “Há excelentes empresas, óptimas organizações, brilhantes técnicos, grandes investigadores e cientistas”, dizia um dos textos da iniciativa. Este discurso é conhecido e recorrente. O presidente da República usa-o bastantes vezes para mostrar, durante as suas “presidências abertas”, que os portugueses devem levantar a moral e deixar a “cepa torta” (é outra das suas expressões, e errada, porque a cepa é quase sempre torta). Geralmente invocam-se os nomes de cientistas, artistas e até empresários e desportistas, para provar que temos boas razões para estarmos confiantes. A verdade é que, em quase todos os casos, tiveram de ultrapassar as barreiras e fronteiras nacionais para conseguirem trabalhar e levar adiante os seus projectos. Não é caso único nem exclusivamente português. Mais: para produzir um obra de génio, para mostrar talento e para criar novidade, não é preciso melhorar a auto-estima dos portugueses – é sobretudo necessário trabalhar, quase sempre contra factores como o próprio País (o que acontece em muito lado), a sociedade, a mediocridade das burocracias, o desengano dos pobres de espírito, a fatalidade da história. Não há outra maneira.
O que a ideia do Portugal Positivo traduz é a sensação de que devemos acreditar mais em nós. Trata-se de uma trapalhada. Os portugueses acreditam muito em si mesmos e têm uma auto-estima elevadíssima, como disse Vasco Pulido Valente e já tinha dito Eduardo Lourenço; basta ouvir um dos muitos fóruns da rádio para perceber que os portugueses acreditam muito nas asneiras que dizem e na ignorância que transmitem. Sobre a guerra do Iraque, o défice do orçamento, a literatura, o Euro 2004, a pedofilia, os portugueses acreditam mesmo no que pensam. Mesmo que o que pensam não seja especialmente importante ou inteligente e não passe de repetição de lugares-comuns.
Ao contrário do que supõe essa ideia de “melhorar a auto-estima dos portugueses”, o que é necessário é, de facto, melhorar as condições da sua bolsa. Vão ver como os problemas de auto-estima desaparecem. Isso tem acontecido ciclicamente: em momentos de festa, de euforia (com a representação de D. Manuel ao Papa, com a exposição do Mundo Português, com a Expo’98, com as vitórias do FC Porto e com o Euro 2004), as questões de auto-estima não se colocam a não ser às elites.
Esse é o problema das elites portuguesas: elas gostariam de ter outro país. Um país mais culto e mais educado, mais “moderno” e sem bolsas de pobreza dramáticas. Por isso, em vez de aborrecerem os portugueses, deviam primeiro olhar para si próprias. Para a televisão que criaram, para a escola que permitiram, para a arrogância da vida política, para os maus exemplos empresariais. [Jornal de Notícias]

LIVRO DE HORAS. A partir de agora, o Aviz passa a ter registado o seu verdadeiro fuso horário, no Brasil. Adeus, GMT.

FORA DO MUNDO. O Pedro Mexia lança amanhã, ao fim da tarde, o seu livro Fora do Mundo, textos da blogosfera retirados de A Coluna Infame e do Dicionário do Diabo (edição Cotovia). A milhares de quilómetros, desejo-lhe um bom lançamento. Além de ser um dos nossos melhores críticos de literatura, um magnífico poeta (acho que Eliot e Outras Observações é um livro notável), um cronista de eleição que me orgulho muito de ter convidado para a Grande Reportagem, o Pedro é uma das pessoas a quem desejo sempre coisas boas.

ANDAR DE MOTO, 3. Continuam os mails sobre Guevara. O Mário F. Pires (do excelente Retorta) escreve por grande parte da blogosfera:
«Posso perfeitamente confessar que a imagem que me passaram na altura foi a de um grande idealista, altruísta e revolucionário, que morreu "no cumprimento dos seus deveres revolucionários". Não me foi difícil acreditar nisso dada a época, e lembro-me de ter um poster no quarto e de cantar a música dedicada a ele que passava amiúde na rádio. Mas para colocar as coisas em perspectiva, os posters de músicos sempre tiveram a parte de leão na minha parede e nunca os tratados de marxismo-leninismo pousaram sobre a minha secretária, ao contrário da revista Tintin. Para quem não teve um contacto directo com ele ou conhecimento dos actos, a mitologia era simples e fácil de aceitar. Hoje falam na crueldade e nas sentenças de morte que passou sem julgamento. Provavelmente será verdade, mas já nada disso me choca, há demasiado tempo que aprendi que não há nenhum humano impoluto, que todos nós estamos sujeitos ao erro, a ter vontade de prejudicar outros ocasionalmente, a desejar o mal ao próximo com maior ou menos intensidade. Mas desejar e efectivamente consumar esses desejos não é a mesma coisa, assim como há uma diferença entre eventuais pequenas maldades que fazemos aos outros e crimes graves. A capacidade de resistir a cruzar determinados limites é uma qualidade humana que devemos prezar, ou então sou eu que sou demasiado idealista. Mas o mito é muito forte e é sempre complicado para as pessoas confessarem que foram enganadas, por isso ainda perdurará por muito tempo, provavelmente.»

maio 26, 2004



FC PORTO, CAMPEÃO EUROPEU DE FUTEBOL. Mais nada a dizer, portanto. Uma grande vitória.

BOCA JUNIORS. Para o Carlos Q., através da Carla: meu caro, bem me parecia que um verdadeiro portista não podia gostar do Boca. Já agora, fica a informação: na próxima segunda, verei um jogo do River Plate. Mandarei relato.

VAIDADE, VAIDADE... Obrigado, amigos blasfemos. Ainda por cima, em boa companhia.

EU APOIO. Naturalmente que apoio. Alberto João Jardim «defende que é necessário afrontar o regime, em busca de um novo regime». Apoio sem reservas: mais ou menos carbo-hidratos, mais ou menos proteínas, mais ou menos vegetais, contra o consumo excessivo de carne vermelha, mas tratar do regime. Eu apoio. Portugal ganhava alguma graça com a candidatura de Alberto João Jardim à presidência da República, ou lá o que é. Sendo assustadora a perspectiva de ter um confronto entre dois bonzos ou três, esta ideia é para avançar mesmo, espero; confirmam-se as melhores ideias sobre o «Portugal Positivo» e era uma grande ajuda para a «auto-estima» nacional.

ANDAR DE MOTO, 2. O meu amigo I.M lança o repto, por mail, a propósito das perguntas sobre Guevara (post mais abaixo): «Não havia necessidade. Quem não andou de moto que levante o dedo.» Ora, a questão não está em andar de moto – eu percebo, eu percebo... Percebe-se até que ponto Guevara é uma figura intocável.

SENHOR, SR. Tornou-se moda, em Portugal, para insultar os adversários à distância, tratá-los por «Senhor»: o «Senhor Bush», o «Senhor Aznar», o «Senhor Blair». Esse arrivismo de pacotilha é irritante mas demonstra a parvoíce em que anda a gramática: quando se ouve alguém ser tratado por «Senhor», pumba, já se sabe – é insulto.

BOCA JUNIORS. Presente para o Carlos Q. (através da Carla): o Boca Juniors ganhou em Buenos Aires ao São Caetano (só nos penaltis) o jogo para a eliminatória da Copa Libertadores. Jogaram ambos muito mal.

CARTAS, 3. Vasco Pulido Valente aceitou participar numa coisa chamada «Portugal Positivo» e fez bem. As suas teses são claras como água. Desta vez, 100% de acordo; não é só a auto-estima dos portugueses que é exageradamente alta – também o seu excesso de identidade (Eduardo Lourenço já escreveu isso, sim). Essa auto-estima elevada traduz-se numa arrogância desproporcionada. Há muito tempo que não oiço os fóruns da rádios, mas são um exemplo de arrogância e de banalização da estupidez, apresentados como «testemunho da nossa clarividência».

CARTAS, 2. Excelente ideia, a do McGuffin, que publicou um extracto de Philip Roth. Roth é um dos grandes escritores de hoje, provavelmente o mais importante escritor americano dos nossos dias. Não é a primeira vez que eu e o Carlos trocamos posts a felicitar Roth por isto ou por aquilo, nem creio que será a última.

CARTAS DO BRASIL. Uma gripe nos trópicos é o pior que pode acontecer. Mas seja. Sempre se sobrevive. À distância, sei da invasão dos estúdios da SIC por um cavalheiro que assegura ser presidente do Benfica. Pela RTPi vejo a paranóia do costume em redor da final da Liga dos Campeões -- tudo azul, tudo provinciano, tudo triste, uma pré-festa em cenários de cervejaria, com debates com «especialistas» que antecipam, pela quadragésima vez, como será o «eixo do ataque» do Mónaco e como funcionarão «as alas» dos monegascos. Eu sou portista mas acho que é preciso um bocadinho de bom-senso.

maio 24, 2004

ANDAR DE MOTO. O que teria acontecido a Guevara se não tivesse sido assassinado? Teria regressado a Cuba e montado mais prisões políticas e campos de trabalhos forçados? Teria regressado a Cuba e teria assinado mais ordens de execução de opositores políticos -- como o fez ele próprio?
O filme de Salles não o diz, mas também não é isso que quer dizer; apenas mostrar como a revolução se impôs, como uma necessidade, ao homem que viria a ter aquele olhar de Alberto Korda. Mas as perguntas mantêm-se.

OLIVEIRA DE AZEMÉIS. Depois de ler o que se publicou sobre o congresso do PSD, parece-me que foi um bocadinho o derradeiro congresso do PS com Guterres, mas sem a presença de Carrilho.

VICENTE DEL BOSQUE. Volto a dar 100 vezes razão ao maradona (com minúscula) a propósito do Real Madrid. Depois de ver o jogo em directo (com o Real Sociedad) e de ver uma parte em repetição, há uma imagem que não sai do ecrã: o Prof. Pardal, sentado no banco. Ainda me hão-de explicar como é que ele foi lá parar. O homem desfaz uma equipa daquelas.
[Para fazer inveja ao Carlos e à Carla, vi a seguir um resumo do River Plate com o Chacarita (terminou a 0-0) e preparo-me para o S. Caetano-Boca Juniors amanhã (para a Libertadores).]

maio 23, 2004

O CANTINHO DO HOOLIGAN. Sim, eu sei que devia ter falado do assunto. Passados estes dias, ainda dou os parabéns aos meus benfiquistas de estimação e cedo à insistência do bom Marujo, que notou a ausência do «cantinho». É pena que o Nietzsche & Schopenhauer esteja de férias definitivas, lá isso é. Conclusão: não há bonança que não dê em tempestade.

BEBER, NÃO BEBER. A história de Lula e do NY Times continua a fazer chegar mails de vez em quando. Um deles (Nuno M.) pergunta: «E por que é que acha que Lula faz bem em beber?» Não faço a mínima ideia; mas incomodam-me os ascetas da política, os moralistas da vida pública. A explicação não é razoável, eu sei, mas a verdade é que todos os ditadores de todas as tendências eram muito moralistas e ascetas, Hitler proibiu o tabaco, o «puritanismo» (a designação não é a mais correcta, eu sei) encheu-nos de pecados sociais. Se Lula bebe, é com ele. Desde que não caia redondo a meio de um dos discursos cheios de vento, eu acho que ele tem direito aos seus três whiskies diários e aos dois charutos digestivos.

Outro mail (António) é mais claro: «No mesmo "post" em que se irrita com a falta de precisão do jornalista do Público, desculpa um outro, este do NYT, que insinuou que o presidente é alcoólico -- no mínimo, é deselegante, a não ser que seja um facto provado e relevante para a notícia que se quer dar. Sinto que para si é muito mais cara a notícia de um Lula da Silva reconhecidamente bêbado que a do pedido de desculpas por parte do jornalista que insinuou isso.» Acho que estamos a falar de coisas diferentes: Larry Rhoter não inventou nada, a atracção de Lula pela bebida é conhecida e normal (Luis Fernando Verissimo escreveu esta semana sobre o assunto; nenhuma coluna bem informada da imprensa desmentiu a existência desse facto -- apenas não o elegeu como problema); há, é claro, a ideia de que essa atracção «é coisa do terceiro mundo, vejam lá, gente que bebe», mas isso é do domínio da minha interpretação. De resto, insisto: ao contrário do que diz a imprensa portuguesa, não houve nenhum pedido de desculpas do NYT. Tudo isso tem servido para brincadeiras, apenas isso (o Estrada do Coco publica alguns dos melhores cartoons sobre a história).
Conforme se tem discutido na imprensa e na blogosfera, houve -- sim -- uma intervenção editorial estranha ao próprio jornalista: o título («a mania de beber do presidente transformou-se em preocupação nacional») é obra dos editores e não de Rhoter.

UMA HISTÓRIA DO PUDOR. A exibição de cadáveres na televisão está a transformar-se numa paranóia. Eles existem, não há nada a fazer; mesmo que só se mostrem aqueles que têm a «História» do seu lado.

CESÁRIO VERDE. Na Civilização Brasileira de Salvador, um dia destes, havia três edições de Cesário Verde. A mais bonita foi a que trouxe: boa fixação do texto, 5 reais. E ainda Shakespeare traduzido por Millôr (estou a ler o Rei Lear com liberdades de versificação) a 12 reais (não chega a 4 euros).

maio 19, 2004

PAULO GORJÃO. Excelente artigo do Paulo Gorjão, como de costume, no The Jakarta Post, «UN needs coherent strategy to exit from East Timor». O Paulo toca em alguns aspectos essenciais, dos quais o menor não é o facto de «East Timor still lacks a national police service law»; A Onu em Timor
«also needs to supervise and promote the need for progress clarifying East Timor's security policy and structure. East Timorese armed forces are confronted with several serious institutional problems, including a poorly understood definition of its role, low morale, uncertain respect for discipline and authority, insufficient training of personnel, and unresolved relations with former combatants.»
Para quem visitou Timor, existem claramente outros pormenores importantes -- como a importância que o pessoal acaba por adquirir na pequena economia do território, mas acrescentar esse dado seria certamente falseador. A questão é, depois de 2005, exclusivamente timorense.

maio 18, 2004

PARABÉNS. Estamos a entrar na época em que quase todos cumprimos um ano de existência. Faltou, aqui, mencionar o Almocreve das Petas e as suas pegadas de livros no chão da blogosfera.

maio 15, 2004

JARDIM. Por defeito meu, longe da Pátria, reparo, com atraso, que Alberto João Jardim dá lições de ética (segundo José Luís Arnaut) e que na Madeira está «o melhor da democracia» (segundo Dias Loureiro). As coisas que uma pessoa perde.

UMA QUESTÃO DE PRECISÃO. Irrita um pouco a facilidade com que se escrevem títulos assim, mas a verdade é que, ao contrário do que escreve o Público, o jornalista do New York Times não pediu desculpas a Lula; escreveu-lhe pedindo que reconsiderasse a decisão de o expulsar, dizendo que «jamais teve a intenção de ofender a honra do Presidente da República». Não é que tenha muita importância, dada a forma «cordata» como terminou o dia, mas o NYT afirma, em comentário, que a reportagem de Larry Rohter é «accurate and fair», e que a petição dirigida pelo jornalista ao governo é «neither an apology nor a retraction». Pessoalmente, estou-me literalmente nas tintas para o facto de um jornal achar que o presidente brasileiro bebe ou não, e penso que isso é um fait-divers (ainda mais pessoalmente, acho que Lula faz muito bem em beber), mas um título é um título. O que o Público devia ter escrito seria qualquer coisa como: «De acordo com o gabinete de Lula da Silva, o jornalista Larry Rohter apresentou um pedido de desculpas.» Ou: «Governo reconsidera expulsão de jornalista.»

maio 14, 2004

OBRIGADO A TODOS E DEIXEM DE ENVIAR ESSA MERDA DE MAILS. Anteontem e ontem, recebi mais uma série de propostas para investimentos financeiros em off-shores (alguns lugares paradisíacos, sim), comprar Xanax, Viagra, Valium, métodos de aumentar o pénis, viajar pela Índia e pela Nova Zelândia, comprar domínios da net com o meu nome, comprar barcos a motor ou carros de último modelo. Havia também propostas para consultas de tarot, astrologia online, sexo por telefone, investimentos no Quénia e no Zimbabwe (onde?), comprar casas no Egipto e em Miami, e outras ideias sublimes que agora não recordo. Agradeço a estes senhores e senhoras que ultrapassam os filtros de spam:
Emery Bolton, Ramona Yazzie, Margery Bridges, Bret Simmons, Pablo Matos, Henry O., Rosalind Berry, Ulysses Rodrigues, Deon Strickland, Nannie Russell, Thelma Henry, Cody Garcia, Helene McNeal, Joan Myrick, Cornelia Church, Socorro McBride, Bertie Champion, Carmine Babcock, Joanne Combs, Erin Macias, Beverly Bruner, Alice Courtney, Carol Montano, Kevin Cowan, Patrick Herrington, um tal Dr. Kassler, uma certa Sinara Gatinha, Celina J., Laverne Garza, Lay Ze, Cyndie Corral, Marilyn Caldwell, Frederick Reaves, Sam Dudu, Ivy Romero, Charlotte Larson, Marcia Winston, Leanna Avery, Angelina Francis, Damion Fulton, Carter Richard, Lora Collins, Maxine Mckenna, Gwendolyn Sorensen, Aline Case, Grover Barlow, Ernestine Paul, Susan Michael, Jess Keene, Corina Golden, Denny Shannon, Elma Dudley, Darin Feliciano, Eddie Barron, Amber Longoria, Albert Cash, Edwin Calderon, Ward Kent, Pauline Foster, Erin Magee, Tameka Gallegos, Eula Otero, Erwin Cash, Tammi Eps, Sylvia Tolbert, Minnie Leach, Aldo Mitchell, Chelsea Howell, Estella Rogers, Emile Gagne, Donna Duke, George Cassiel, Charlotte Carmichael, Norman Morton, Jerry Katz, Patty Snell, Cherry Rivas, Bret Wagner.

Da próxima vez, os seus mails serão directamente reencaminhados para a Anacom ou para as organizações de livre-comércio.

CARTAS DO BRASIL, 3. De qualquer modo, um juiz do Superior Tribunal de Justiça concedeu um salvo-conduto ao jornalista, para que ele permaneça no Brasil. O ministro da Justiça (interino), entretanto, diz que a decisão do STJ «não suspende a eficácia da decisão do Ministério da Justiça no que diz respeito à suspensão do visto».

CARTAS DO BRASIL, 2. As citações que mais correm na imprensa brasileira são as de textos do site do PT elogiando o The New York Times durante as campanhas do Rio para a eleição de Benedita da Silva para o governo do Rio, e do próprio Lula para a presidência. Na época, o texto do NYT sobre Lula, e que tantos elogios mereceu do PT, era assinado por Larry Rohter, o jornalista que viu agora o seu visto cancelado. Curiosamente, como é casado com uma brasileira, pode não vir a ser expulso.

PARABÉNS. O No Quinto dos Impérios, outro dos blogs fundadores, fez anos ontem.

maio 13, 2004

FUTEBOL. Grande debate nacional sobre a ida dos deputados à Alemanha para ver a final da Liga dos Campeões, com o FC Porto. Os senhores deputados que pretendam sentar-se nas bancadas do estádio deverão, como qualquer outro cidadão, requerer um dia de férias. Não se trata de «trabalho político» e está quase tudo dito. Quase: há geralmente lugar a uma representação institucional, a definir conforme as circunstâncias. Em Portugal, de resto, temos uma vastíssima mania de ferir todas as leis do bom-senso.

UMA CACHACINHA PARA LULA. Toda a gente conhece o imbróglio: o The New York Times (Larry Rohter) publicou uma peça sobre Lula: o presidente exagerava no consumo de bebidas alcoólicas. A reacção foi praticamente unânime, no Brasil, condenando o tom especulativo do texto e a insinuação de que Lula estaria passando para lá do nível de alcoolemia permitido. Na terça-feira, o ministro da Justiça expulsa o jornalista, ou seja, «considera inconveniente a presença em território nacional do autor do referido texto». Assim, «determinou o canccelamento do visto temporário» de Larry Rohter, com base no Estatuto do Estrangeiro, uma lei da ditadura militar. Todos os jornais, da Folha ao Globo e ao Estado, mantêm que a ordem veio do próprio Lula, com apoio do «sector de marketing» do governo, ou seja, de Gushiken sobretudo. Escusado será dizer que, durante o dia de ontem, mais de 80% da Câmara de Deputados se manifestou contra a decisão, e alguns senadores do PT tentam abrir uma porta para que Lula volte atrás. Mas não parece voltar. A última vez que um jornalista foi expulso do Brasil com tal aparato data de 1970, quando um correspondente da France Presse divulgou a lista de prisioneiros políticos que a guerrilha exigia que fossem libertados em troca do embaixador suíço então feito refém. Estes são os factos, que não precisam de comentários. À porta do Senado, a decisão foi considerada um gesto de «ditador de republiqueta de terceira categoria».

[Bom, que Lula goste de beber, é uma coisa que se lhe agradece, e toda a gente o sabia (Brizola, o velho dinossauro gaúcho, vem repetindo para a imprensa, desde há um ano, que a «bebida branca» vai dar cabo dos neurónios do presidente, mas isso deve ser ressentimento puro). Mas que apareça no programa do Ratinho bebendo cachaça com o verme, já é pisar esse fio da navalha, sem falar da cerveja que se vê ser bebida durante os churrasquinhos-PT na Granja do Torto. Não era isso que preocupava o País, ao contrário do que dizia o NYT. Mas, a partir de agora, qualquer limonada que Lula beba já vai ser analisada em laboratório.]

CARTAS DO BRASIL, 1. A banca de revistas informa-me que a edição deste mês da Playboy está mais cara. Subiu aos 11,95 reais. «Deve ser por causa da Juliana Paes...» De certeza que é. Cuidadosamente, a revista imprimiu, por cima do cabeçalho, a frase dos grandes momentos: «Edição de coleccionador.» Tutty Vazquez, no No Mínimo, esclarece: «A moça tem tronco curto.»

maio 11, 2004

MUDANÇAS. Finalmente, o Blogger mudou o seu design pré-histórico e isso teve reflexos imediatos em alguns dos nossos amigos, como o Homem-a-Dias (que continua a não ter «comentários»), o Grande Loja (cada vez mais bem informada -- não esqueçam que foi a Grande Loja que publicou, pela primeira vez, informações sobre as manigâncias no programa Oil for Food).

BERNARD LEWIS. Ver a entrevista de Bernard Lewis à Atlantic Monthly:
«I'm cautiously optimistic about what's happening in Iraq. What bothers me is what's happening here in the United States.»
O pretexto é, também, a edição do seu novo livro, From Babel to Dragomans: Interpreting the Middle East.

maio 10, 2004

IRAQUE/ COMENTÁRIOS. O Helder Ferreira, por mail, comenta o texto abaixo sobre o Iraque -- e, sobretudo, a citação de Philip Kennicot, vinda do The Washington Post.
«Se alguma coisa faz da Democracia um sistema melhor do que os outros, é a responsabilidade individual. A Democracia por si mesma não impede a existência de actos abjectos ou intoleráveis. Limita-se a não aceitá-los, desculpar ou condecorar. Quem vive numa Democracia como nós, espera que qualquer acto da natureza dos que aconteceram no Iraque seja punido e que sejam tomadas medidas para que não se repitam, sabendo que é de todo impossível garanti-lo. Na Democracia, não há Pais dos Povos ou Grandes Irmãos, para receberem a responsabilidade individual e no-la devolverem colectivamente, pelo que seja o acto que for (bom ou mau), o indivíduo é o responsável ou -- no limite --, o grupo que comete esse acto. Mais ninguém. Por isso, o senhor Philip Kennicot está enganado ou padece de desonestidade intelectual. Há agora um marido a espancar uma mulher, uma pai ou uma mãe a maltratarem um filho, um filho ou uma filha a maltratarem um pai ou mãe idosos, alguém esta a roubar ou a assassinar alguém e qual é a nossa responsabilidade? Não estarmos lá para acudir? O Francisco, eu e as pessoas que conheço, fazemos o melhor que podemos todos os dias e ninguém nos pode pedir mais que isso. Não aceito responsabilidades colectivas.»

maio 09, 2004




MACHADO DE ASSIS. De cada vez que tenho de falar de Machado de Assis, penso na ideia de um romance moderno. Memórias Póstumas de Brás Cubas abriu em português o caminho para a idade moderna da literatura de ficção. Ninguém leu, como Machado, as consequências de Tristram Shandy. Garrett pode ter lido Sterne, sim; mas A Brasileira de Prazins, de Camilo, é o mais «shandyano» dos nossos romances: ora faz relatos de tiroteio, ora chora com Marta, ora se mete pela História, ora dá conta de si como narrador e desata a rir.
O Estrada do Coco começou a publicar extractos das Memórias Póstumas, dando razão a Paulo Francis que recomendava: «Leia alguns dos romances de Machado de Assis. O mais brilhante é Memórias Póstumas de Brás Cubas. Para estilo, é o que se deve emular. O coloquialismo melodioso e fluente de Machado. É um grande divertimento esse livro.» Harold Bloom chama-lhe «génio da ironia»: «Machado é uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do génio literário em relação a factores como tempo e lugar, política e religião, e todo o tipo de contexto que, supostamente, produz a determinação dos talentos humanos.»

CLONES. Um amigo da blogosfera avisa-me sobre outro clone do Aviz, semelhante ao de outro dia. Fui lá. Não estava o Aviz, mas era um clone do Abrupto. Isto será mesmo um ataque?

OBRIGADO. Jorge Almeida Fernandes assina hoje no Público um bom texto, com três adjectivos a mais (é a vida), sobre a herança e os antecendentes do Yesha, o directório dos colonos. Jorge Almeida Fernandes cita o papel do rabi Kook e é uma das poucas vezes que o vi citado na imprensa. Algum do «mal que anda à solta» no Médio Oriente se deve ao seu messianismo (fundamentalista, naturalmente) assente em «verdades reveladas» que nem a soberania israelita sobre o Muro, em 1967, apaziguou. Há cerca de um ano (ver os arquivos do Aviz), escrevi sobre o assunto a propósito da formação dos partidos haredim e do papel essencial que foi desempenhado pelo regresso das comunidades askenazim da ex-URSS, arrebanhadas por esses partidos (ou reunidos nos partidos fundados por eles próprios); justamente por isso, também gostaria de ver algum texto na nossa imprensa sobre o messianismo islâmico na região e os apelos e incitamentos dos imãs nas mesquitas de Gaza. De qualquer modo, obrigado ao Jorge Almeida Fernandes.

IRAQUE. [Actualizado às 15:56, de 09.05.2004] É evidente que a «descoberta» da tortura de prisioneiros iraquianos é um dado estarrecedor e não pode ser considerada «mais um erro» americano no Iraque. Erro civilizacional seria justificar os factos (as fotos, os relatos) e estabelecer comparações vergonhosas com as chacinas de Saddam ou as atrocidades do regime. Isso é o que o relativismo faz com abundância em nome do «respeito pelas culturas» e pelo «contexto histórico» e nunca deixou de ser grotesco. Há valores que separam as civilizações, não para que sejam um argumento em defesa da «superioridade moral» do Ocidente, mas para que valha a pena viver nelas -- e o tratamento a dar aos prisioneiros de guerra é um dos valores (trabalhei com um alemão que tinha sido prisioneiro de guerra nos EUA em 1945, sei do que falo). Por isso, não vale a pena estar com rodeios nem mencionar a adversativa («mas...»). O que essas imagens relatam é abjecto. E é, preto no branco, um golpe sério na credibilidade americana nesta matéria. Porque é evidente que essas imagens serão apresentadas como uma «das marcas» americanas no Iraque.
Sobre a «superioridade moral» poder-se-ia falar bastante, mas é um conceito tão intolerável e abjecto como qualquer outro: esconde sempre uma desgraça arrumada em algum lugar e dá lugar às comparações a que ninguém resiste e que abrem logo uma brecha de «inferioridade moral» igualmente grotesca. É evidente que há aqui um problema de memória mas, nessa como em outras discussões, o marketing político da guerra não conhece favores especiais. Portanto, a questão é que não há desculpas. Nem uma das valas comuns deixada por Saddam pode justificar a baixaria.

De qualquer maneira, há uma razão para protestar -- não para corarmos de indignação, porque já se conhece bastante deste mundo -- acerca deste comportamento que está registado em fotografias: porque nós não o aceitamos. Se há uma questão moral envolvida, esse é o único imperativo moral. Não se protesta para se ter a consciência limpa, ou para entrar nessa contabilidade miserável dos crimes que se denunciam para equilibrar ou desequilibrar os pratos de uma balança onde só entra o número das indignidades. Muitos dos que agora protestam, em nome da paz ou da decência (e bastava a decência), passaram quase meio século, se a idade lhes desse para isso, a esconder perseguições, execuções sumárias, prisões, massacres e cadáveres debaixo do tapete (na URSS, em Cuba ou em qualquer das prisões construídas em nome do paraíso na terra). Não é por isso que o protesto tem menos valor -- o deles é que não tem significado. Nem por terem aprendido a lição.

Essa é a vantagem da democracia. Para isso nos serve, para não pedermos a dignidade: «Armies are made of individuals. Nations are made up of individuals. Great national crimes begin with the acts of misguided individuals; and no matter how many people are held directly accountable for these crimes, we are, collectively, responsible for what these individuals have done. We live in a democracy. Every errant smart bomb, every dead civilian, every sodomized prisoner, is ours.» {Philip Kennicott, «A Wretched New Picture Of America, Photos From Iraq Prison Show We Are Our Own Worst Enemy», Washington Post, via Causa Nossa}

{P.S. 1 - Quando há atentados em Israel, tanto o pessoal da Magen David Adom como o de outras organizações encarregues de actuar nessas circunstâncias impedem que se fotografem os mortos. É uma lei a que o Nuno Guerreiro já se referiu e ele pode dar explicações mais profundas sobre isso noutra circunstância. Muitas vezes se discutiu em Israel, por isso, sobre o «marketing da morte». Eu acho admirável que essa recusa (em exibir os mortos) se sobreponha aos apelos, muitas vezes compreensíveis, para «mostrar a dor» como marketing político. Sei que não é útil, que não comove as páginas dos jornais. Mas há coisas mais importantes do que as páginas dos jornais e os seus idiotas chapados. Por isso, o combate em redor de «a minha dor é maior do que a tua» é só uma coisa para ignorar. A dor pertence a todo o lado.}




MAR SALGADO. Lamentável, este atraso. O Mar Salgado, um dos blogs históricos portugueses comemora um ano de excelente vida. A todos os «lobos do mar» que escrevem no Mar Salgado, sem excepção, os parabéns ficam dados com estes dois versos de João Cabral de Melo Neto: «Como se tudo fosse o mar/ em mais ondas a desdobrar...»

SANT'ANNA. Livro novo de Sérgio Sant'anna, O Voo da Madrugada (aliás, O Vôo da Madrugada), edição Cotovia.

TELEVISÃO. O uruguaio Eduardo Galeano (em Mujeres) conta uma história deliciosa e verdadeira, que lhe foi contada por Rosa Mateo, «uma das figuras mais populares da televisão espanhola». Uma mulher escrevera à apresentadora a perguntar-lhe esta coisa elementar: «Quando eu olho para a senhora, a senhora está a olhar para mim?»

TOLERÂNCIA. A releitura do livro de Diogo Pires Aurélio levanta uma questão importante para os nossos dias (um passeio pelas notícias do dia basta para o justificar). Depois de inventariar os conceitos de tolerância, a questão mais actual continua, no fundo, a ser a do intolerável.

DIOGO. Há cerca de dez anos, Diogo Pires Aurélio publicava um pequeno ensaio com um título que escapava às montras das livrarias: Um Fio de Nada. Ensaio Sobre a Tolerância (edição Cosmos -- a precisar de reedição, portanto). É um livro actual e urgente; há dez anos, mesmo sabendo que a velocidade do mundo se acelerava, Diogo Pires Aurélio antecipou muitas das discussões de hoje, desde a que discute a invasão da mesquita de Ansbury Park até à crítica à actual administração americana. E toca num ponto invulgar, que raramente esclarecemos quando falamos dele: a tolerância, até onde vai, onde termina, onde fica esse fio de nada. Eu recomendo o livro como se fosse uma novidade.

FOLHETO MARIANO. Compreendo os protestos mas não entendo a indignação diante dos pequenos folhetos que estão a ser distribuídos aos peregrinos de Fátima por uma organização desconhecida, apelando ao voto nas listas da coligação «Força, Portugal». A coisa é cristã, parece-me, e até identifica os deputados e candidatos que foram ou são favoráveis à menção de «civilização cristã» na constituição europeia. Eu sou contra essa menção, mas acho que toda a gente tem o direito de apelar ao voto em quem entender: parece-me um lobby que trabalha às claras, embora imprimindo folhetos esteticamente desagradáveis e com um marketing muito à maneira do próprio Santuário de Fátima.

maio 06, 2004

COINCIDÊNCIAS? Eu sei que não há coincidências. Mas, desde que o Paulo Gorjão foi oficialmente entronizado como membro da ala esquerda da blogosfera lusitana pelo Paulo P. Mascarenhas (discutível, a meu ver), que lançou -- para felicidade geral -- uma interessante campanha contra a pedofilia. Depois de Charlize Theron, Natalie Portman e companhia figurarem como cabeças de cartaz das suas «medidas de combate», eu agradecia ao Paulo uma rapariga mais morena. Se não se importasse.

FRESSCHIIISSCC. Os taxistas de Lisboa e do Porto tiveram aulas de inglês para receber o pessoal do Euro 2004. Parece-me bem e muito útil. Mas há uma coisa que me intriga: por que razão as senhoras da TAP e da Portugália, ao anunciar em inglês o nome dos aeroportos portugueses, julgam que são compreendidas? Hoje, por exemplo, ao chegar ao Porto, a senhora disse qualquer coisa como «the Fresschiissccc Se Carner airport, gmmmbhhe...» Se fossem da Iberia, da Spanair ou da Air Europa eu seria mais compreensivo.

OUTRO ANIVERSÁRIO. O José Pacheco Pereira merece a homenagem: comemora um ano de Abrupto. Parabéns.

Deixo-lhe uns versos conhecidos de Sá de Miranda, respondendo aos muitos textos do Abrupto sobre J.P.P. enquanto «judeu errante»: «Com dor, da gente fugia,/ antes que esta assi crecesse;/ agora já fugiria/ de mim, se de mim pudesse./ Que meio espero ou que fim/ do vão trabalho que sigo,/ pois que trago a mim comigo,/ tamanho imigo de mim?»


olavo.jpg


UM ANIVERSÁRIO DE FREUD, 3 «Um forte egoísmo é uma protecção contra a enfermidade mas, no limite, precisamos de começar a amar a fim de evitar a doença, e podemos adoecer se, em consequência de uma frustração, não conseguimos amar.» Sigmund Freud, 6/5/1856 - 23/9/1939

UM ANIVERSÁRIO DE FREUD, 2. Sigmund Freud, outro judeu vienense, nasceu a 6 de Maio de 1856, em Freiberg.
«Freud, no início do terceiro milénio, continua a ser o último verdadeiro crítico da nossa cultura e, como tal, tem uma utilidade sublime. Pouco importa que desejasse ser Darwin e acabasse por se tornar Goethe.» [Harold Bloom, Genius]

UMA QUESTÃO COM A HISTÓRIA. UM ANIVERSÁRIO DE FREUD. «Freud é tão metafórico quanto Goethe ou Montaigne, e, como eles, é antes de tudo um escritor. [...] Freud junta-se a Johnson, Boswell e Goethe, na qualidade de autobiógrafo original e vital, bem como de dramaturgo do eu. O que é mais importante, forma um trio, com Johnson e Goethe, de sábios autênticos, moralistas validados por dotes intelectuais extremamente raros. [...] A ciência era a defesa de Freud contra o anti-semitismo: a psicanálise não era para ter sido classificada como "a ciência judaica", conforme se tornou para o desequilibrado Jung. Actualmente, um grupo de ressentidos e frustrados estigmatizam Freud, mostrando-o como um charlatão, o que constitui um aviltamento, sendo ele uma personalidade tão majestosa. [...] Exilou-se em Londres, não em Jerusalém, por acreditar que a Palestina seria sempre o berço de novas superstições. Muito me agrada a obra O Futuro de uma Ilusão, ainda que talvez seja o livro mais fraco de Freud, somente porque gosto de imaginar T.S. Eliot, anti-semita respeitável, exasperando-se ao lê-lo. Freud também se alegraria com isso. Moisés e o Monoteísmo, romance escrito por Freud, deixa bastante explícita a identificação entre as histórias da religiao judaica e da vida do novo Moisés, Solomon Freud (esse seria o seu nome hebraico, que com ele muito mais combina do que o wagneriano Sigmund). O lema de Freud, tanto em relação a católicos como a judeus ortodoxos, bem poderia ter sido «Ultrajai-os, ultrajai-os sempre!» T.S. Eliot, com efeito, sentiu-se ultrajado, mas qualquer judeu, mesmo que fosse muito menos talentoso do que Freud, bastava para provocar o desdém de Eliot. O único génio judeu apreciado por Eliot era o personagem de Christopher Marlowe -- Barrabás, O Judeu de Malta --, que morre derretido em óleo a ferver, embora, para fazer justiça ao abominável Eliot, seja necessário registar a sua admiração por Groucho Marx.»
Harold Bloom, Genius.

maio 05, 2004

QUESTÕES COM A LITERATURA.

Temos muitas, demasiadas, frases dentro da cabeça, é preciso
um grande pudor para não usá-las. Séculos de literatura
fizeram de nós apenas isso, passageiros obedientes, leitores
compulsivos, geógrafos errantes que desconhecem os lagos
entre as montanhas, o nome das árvores, a luz dos caminhos.

Não vale de muito. A vida interrompe as páginas dos livros
como entende, transporta nuvens espessas, ignora os pardais
na abertura dos bosques. Às vezes acontece qualquer coisa,
dizem que a sorte bateu à porta: um grande amor que regressa,
os filhos que repetem uma palavra nossa, uma que seja,
um avião que atravessa o céu, iluminado pela manhã.

Temos muitas frases dentro da cabeça, ideias arrumadas, catálogos.
A literatura perdeu-nos para as grandes profissões, as pequenas
esperanças, as bibliotecas de argila, a poeira da tarde, os livros.

PAPEL QUÍMICO NA INTERNET. Através do bom do M. Marujo, do Cibertúlia, descobri um assalto ao Aviz. Quem é o cavalheiro?

LÍNGUA PORTUGUESA, 3. Nunca resisto a este poema de Olavo Bilac (1865-1919), a flor do parnaso brasileiro:



olavo.jpg




Última flor do Lácio, inculta e bela,
És a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que, na ganga impura,
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: «Meu filho!»
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio da ventura e o amor sem brilho!

LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL, 2. O Estrada do Coco faz alguns apontamentos sobre o tema; cita uma divertida crónica de Rubem Braga, a propósito, e fala dos «rotacismos».












OBRIGADO, MUITO OBRIGADO (O REGRESSO DO HOOLIGAN). Os campeões portaram-se muito bem. O sistema funcionou em pleno. Há muito tempo que uma vitória não sabia tão bem.

LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL. Recebo um poema de Paulinho Assunção (obrigado!): «todos os dias/ tomo de assalto o idioma,/ eis a minha guerrilha,/ dele tudo quero, o novo/ e o velho, o sabor/ e o aroma,/ em Portugal ou Macau,/ Madeira ou Angola,/ em Moçambique ou Guiné-Bissau,/ do idioma tudo quero e/ a ele tudo dou,/ palavras antigas/ que recolho a anzol,/ novas palavras ainda/ larvas, ainda lêmures,/ limbo de vocábulos, trevas/ de libélulas,/ sóis e luas de palavras,/ todas eu quero, a/ todas eu me dou, todas/ eu ponho qual/ poria a fruta entre o céu/ da minha boca e/ a língua da sua língua, / qual poria a boca em/ outra boca, escrevo-as/ como quem beijasse/ e beijaria, escrevo-as/ como quem beija,/ fricativos beijos, labiais enguias,/ escrevo-as/ como quem procria,/ minha língua portuguesa,/ minha língua brasileira,/ minha angolana língua,/ minha dama,/ namorada e menina,/ festim e banquete/ da folha em branco/ do papel que é barco/ e é barcarola, que é/ caravela, que é pássaro e é pólen/ ao vento e à ventania,/ minha língua na sua/ língua, sua língua/ na minha língua, tupi/ nas águas do Tejo, banto/ na foz do Amazonas, adagas/ árabes nas consoantes,/ concertino de dizeres sefarditas/ nos quintais de Minas, dizeres/ maxacalis nas ruas de Maputo,/ língua, sua língua,/ minha doce fera, onça,/ onça latina,/ todos os dias / tomo de assalto a minha língua/ assim como quem sonhasse,/ como quem sonha e sonharia.»

maio 04, 2004

LUAR GRANDE. Enquanto espero, vejo o céu. Luar grande, não tão próximo da terra quanto me lembro. Em breve Vénus passará junto de nós. O livro de Nuno Crato, Luís Tirapicos e Fernando Reis sobre os Trânsitos de Vénus (edição Gradiva) é uma das grandes surpresas da época, juntando informações rigorosas sobre os movimentos de Vénus, sobre o céu -- este, mesmo --, e sobre observações anteriores dessas passagens de Vénus diante da Terra. As histórias sobre os astrónomos portugueses (do Porto e de Coimbra) são comoventes. E a ideia de um livro assim ainda o é mais: como íamos adivinhar que, medindo «o trânsito de Vénus»», nos aproximávamos das medidas da própria Terra?

A REBELIÃO DAS MASSAS, 2. Eu sei que isto é aparentemente «pouco democrático», mas não resisto a citar Ortega outra vez, como uma marca «do que é característico da nossa época»: «Não que o vulgar julgue que é excelente e não vulgar, mas que o vulgar proclame e imponha o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como direito. O império que a vulgaridade intelectual exerce hoje sobre a vida pública é, porventura, o factor mais novo da presente situação, menos assinalável a nada do passado. Pelo menos na história europeia até à data, nunca o vulgo julgara ter "ideias" sobre as coisas. Tinha crenças, tradições, experiências, provérbios, hábitos mentais, mas não se imaginava na posse de opiniões teóricas sobre o que as coisas são ou deviam ser -- por exemplo, sobre política ou sobre literatura. [...] Hoje, pelo contrário, o homem médio tem as "ideias" mais taxativas sobre quanto acontece e tem de acontecer no universo. Por isso perdeu o uso da audição. Para quê ouvir, se já tem dentro tudo o que faz falta? Já não é a altura de ouvir, mas, ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir. Não há questão de vida pública onde não intervenha, cego e surdo como é, impondo as suas "opiniões". Mas não é isto uma vantagem? Não representa um progresso enorme que as massas tenham "ideias", isto é, que sejam cultas? De maneira nenhuma. As "ideias" deste homem médio não são autenticamente ideais, nem a sua posse é cultura. A ideia é um xeque à verdade. Quem quiser ter ideias tem de dispor-se antes a querer a verdade e aceitar as regras do jogo que ela impuser. Não vale falar de ideias ou opiniões onde não se admite uma instância que as regula, uma série de normas a que cabe apelar na discussão. Estas normas são os princípios da cultura. Não me importa quais.» (Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 1930)

A REBELIÃO DAS MASSAS. Quem ouvisse rádio durante o dia -- a mim aconteceu-me, de carro -- poderia começar por não perceber o que aconteceu ontem, realmente, no Estádio de Alvalade. As opiniões foram tão desencontradas e tão desajustadas que o chamado Fórum da TSF terminou com dois estimados ouvintes a defender que os culpados foram Zahovic e Miguel. Isto não tem a ver com hooliganismo (a designação é errada, tem a ver com o complexo de alarvidades que todos dizemos a propósito de futebol), mas com uma maneira portuguesa de ver as coisas. Depois da onda de vitimização, aparece o seu reverso: a da culpabilização. Essa pergunta é cada vez mais fatal: quem tem a culpa? Não se trata de «apurar responsabilidades», um eufemismo usado por editorialistas para dizer a mesma coisa, no fundo; mas de atribuir culpas, revertendo completamente a situação. A mim pareceu-me evidente: uma série de energúmenos invadiu o relvado de um estádio de futebol. Portanto: são eles os culpados desse crime -- creio, aliás, que punido por lei.
O processo é vulgar e está transformado, por si só, em verdade maioritária. Por exemplo: no dia a seguir ao 11 de Setembro de 2001, a rádio transmitiu várias opiniões que afirmavam que a culpa era dos americanos. A imprensa, propriamente dita, tratou de institucionalizar esse discurso nos dias seguintes. Mas esse é um exemplo limite; há outros mais banais. Todos eles servem para dar uma ideia da infelicidade da opinião, ou seja, da opinião como ressentimento. Em cada um dos culpabilizadores (os que atribuem culpas, como os papas atribuíam bulas ou os moralistas designam pecados) há um sociólogo escondido. Ortega, justamente, falava do «diagrama psicológico do homem-massa», e de uma das suas características centrais: «a ingratidão radical por tudo quanto tornou possível a facilidade da sua existência». Esta tendência para conspirar permanentemente em opiniões vulgares está a tornar-se cómica. (Ia a escrever «assustadora», mas parece-me mais cómico.)

maio 03, 2004

http://aviz.blogger.com.br Este endereço é uma versão do Aviz optimizada para utilizadores de plataformas Macintosh (que usam Internet Explorer -- os leitores que preferem outros browsers, como o Safari, Mozilla, iCab, Opera ou Netscape, não têm problemas de leitura do endereço português) e para leitores do Brasil. É, por vezes, actualizado com algum atraso. Os textos arquivados, mais antigos, só podem obter-se no endereço tradicional do Aviz.

POETAS. O João Luís Barreto Guimarães, o de Rés-do-Chão, de Rua 31 de Fevereiro, de Lugares Comuns ou Assinar a Pele, entrou na blogosfera pelas páginas do Quartzo, Feldspato & Mica. É bom.

maio 02, 2004

DICIONÁRIO DE PAULO FRANCIS, 5. [Patrulha ideológica.] «A discussão das "patrulhas ideológicas", que não existem, naturalmente, como as bruxas, exclui outra mais interessante, a da maior patrulha que existe: a da mediocridade, a do conformismo. É evidente que há uma conexão entre a ideológica e esta. Afinal, um tipo que reage com manual político em face de qualquer manifestação criadora, sem reexaminar o manual ou a criação, é pessoa de poucas luzes. Ainda assim, em números, em influência (temporária), a legião da mediocridade deixa a comunalha stalinista na rabeira.»

CAYMMI. O Letteri Caffé e o Estrada do Coco, por exemplo, lembraram o aniversário de Caymmi, de anteontem. Ao contrário de outros, Caymmi disse sempre ao que vinha: cantar como sabia, com o violão na mão. Lembram-se de «O Que é Que a Baiana Tem?», de «O Mar», «Saudade da Bahia» (gravada por João Gilberto), «Oração da Mãe Menininha», «É Doce Morrer no Mar»?

DICIONÁRIO DE PAULO FRANCIS, 4. [Rir de Roosevelt.] «O que todo o mundo quer é imitar a democracia americana, ter a riqueza americana, o consumo americano, e diria até a vulgaridade americana. Os EUA de que falo foram de facto criados por Franklin Delano Roosevelt, entre 1932 e 1945. Roosevelt pôs democracia na moda. Onde é que havia democracia no mundo antes de ele assumir o poder? Ele acreditava que o bom povo dos EUA tinha a sua sabedoria. Mal consigo conter o riso escrevendo isso.»

DICIONÁRIO DE PAULO FRANCIS, 3. [Nelson Rodrigues.] «Nelson escreveu três peças [...] que são pura poesia teatral. Escrevesse numa língua mais divulgada e teria morrido rico e famoso e faria parte dos repertórios das grandes companhias.»

PAULO FRANCIS, 2. Há um momento admirável no conjunto de intervenções televisivas de Paulo Francis no «Manhattan Connection»: quando, diante do ruído da televisão, da poluição vergonhosa da televisão, do abjecto televisivo, se declara «tecnicamente morto». Com uma clareza e uma crueldade fatais.

DICIONÁRIO DE PAULO FRANCIS, 2. [Shakespeare vs. Racine.] «Racine, o mais próximo e possível rival de Shakespeare, é homem de interiores. A natureza transborda em Shakespeare. Em Racine, às vezes nos sentimos sufocados pela falta de ar, pela perfeição dos versos. Por isso, Shakespeare era o preferido dos açougueiros e dos reis. Enquanto Racine é o favorito de professores universitários e da classe média...»

DICIONÁRIO DE PAULO FRANCIS, 1. [Literatura contemporânea.] «Há qualquer coisa insuportavelmente mecânica e de segundo time nesse desespero dos modernos.»

PAULO FRANCIS. Ao reler alguns dos textos de imprensa de Paulo Francis (na generalidade, publicados na Folha de São Paulo ou no O Estado de São Paulo) confundem-me o brilho (que é provável pertencer ao Francis mais misantropo) e a «erudição» de coisas modernas. Poucas coisas lhe escapam, de Wagner a Lacan passando por toda a poesia contemporânea. E coisas como esta: «Uma das poucas razões por que morrer me incomoda é não ouvir mais Cole Porter.»

O CANTINHO DO HOOLIGAN. Hoje não havia Chaimites para deter os vândalos.

FRANCESES NO AMAZONAS. François Auguste Biard, pintor francês, visitou Manaus em 1856, no ano em que a cidade perdeu o seu primitivo nome de Barra do Rio Negro para adoptar o nome da tribo dos Manáos. Verdadeiramente irritado (e amedrontado pelos urubus no meio das ruas -- os pássaros negros eram protegidos por lei desde há anos, porque devoravam o lixo), escreveu: «Em Manaus aprecia-se o tempo. Cada habitante dessa cidade pensa que o dia dispõe de 48 horas ou mais.» Aí está.

LINGUAGEM. Depois de o Alberto e a Bomba Inteligente (além do Opiniondesmaker, claro, que se tem ocupado do assunto há muito tempo) terem discutido e proposto o fim de certas palavras, interjeições, designações e enchumaços, o Flamarion Daia Júnior (do Contra a Ilusão) manifesta-se contra a designação de «blogueiro» e de «bloguista»: «Blogger, em inglês, é muito melhor que “blogueiro” [Brasil]. Essa palavra parece obscena. Tão ruím quanto (ou até pior) é o espanhol “bitacorero”. Em Portugal é “bloguista”. Menos mal. Parece o nome de quem tem a profissão de alimentar uma caldeira, mas pelo menos não soa obsceno. Deviam ter deixado Blogger mesmo, não acham? Em pouco tempo isso se incorporaria ao português, passaria a fazer parte do dia-a-dia, ninguém teria dificuldade em pronunciar (em escrever, talvez, mas quem escreve “blogger” errado também escreveria errado “blogueiro”...).» Acho bem.

A TERCEIRA MARGEM. Acho que o Vinicius Villas-Boas acabou, no Brasil, com o Terceira Margem. Com dois textos: um, aconselhava que se ouvisse Hank Williams. Outro sobre literatura: «Não sei se por culpa de nossa 'crítica literária', ou se por culpa de nossos autores tidos como 'canônicos', criou-se por aqui um mito de que para se escrever alguma coisa precisa ter algum tipo de sentimento. Pois eu afirmo que não.»

maio 01, 2004

RELÓGIOS. Já escrevi sobre a «operação Apito Dourado» (a propósito, nos últimos cinco anos têm vindo a multiplicar-se as designações mais absurdas neste género de operações -- sem mencionar as militares --, e a mais recente, da PSP do Porto, foi a «Maio Desperto»; não peço que consultem a Academia, mas ao menos que tenham em atenção o ridículo). Hoje quase toda a gente riu com a notícia do Expresso sobre o envolvimento de Pinto da Costa (retomada em todo o lado, claro): o presidente do FC Porto tentou corromper Valentim Loureiro oferecendo-lhe um relógio (que milhares de pessoas têm) no valor de 150 euros. Mais um bocadinho e a Swatch está arruinada.

DIPLOMACIA A SÉRIO. Já tínhamos o Notas Verbais (a propósito, caro Anaximandro, não achas que a intervenção eslava do Dr. Sampaio foi lamentável ainda por muito mais razões?). Mas gostaria de chamar a atenção para o Ultimatos, com textos curtos (e alguns hilariantes) do inestimável Ministro Plenipotenciário. Há vários exemplos de bom «conhecimento do terreno» (e não me refiro apenas ao «terreno» da pista do aeroporto de São Tomé e Príncipe...).

DINIS, DENNIS. O PreDatado acentua que Dinis Machado não foi um «autor de um livro só» e tem toda a razão. Escrevi no texto aí abaixo: «Um autor de um livro só? Provavelmente.» Esse provavelmente refere-se ao fôlego de Dinis Machado para escrever o livro, que provavelmente diluiu os textos seguintes, o Discurso de Alfredo Marceneiro... e o Reduto Quase Final, por exemplo. Quanto aos policiais, sim, é outro texto: o da vida de Peter Maynard (tão próximo do Pierre Ménard -- de Jorge Luis Borges), assassino profissional com uma úlcera no estômago e um estranho gosto por Bach. Era o tempo de A Mão Direita do Diabo, Requiem para Dom Quixote e Mulher e Arma com Guitarra Espanhola (mas não foram publicados na Vampiro e sim na Rififi, que o próprio Dinis Machado então dirigia -- e foram depois reeditados pelo Círculo de Leitores, em 1985/1986)