ORTOGRAFIA, UM REGRESSO. O
Pedro Ornelas continua, no seu blog, a tratar do problema da ortografia; a dado passo, num dos comentários ao seu texto, achou que eu pertenço também ao grupo de pessoas que assumem «posições histéricas e impensadas». «Parece», escreve o Pedro, «que quando se chega às questões da língua viramos todos fascistas.» Eu não comento esse pedacinho, mas ficou-me uma ligeira amargura. Quanto ao resto, vejamos: eu não defendo, como o Pedro sabe – e leu os meus textos durante alguns anos, no
O Independente, com um cuidado que lhe agradeço, corrigindo algumas vezes certos disparates –, que exista uma «norma absoluta» da língua. Estaríamos a escrever como el-rei D. Afonso II, o Gordo, que, por acaso, não escrevia. Também não defendo que em cada português deva existir um especialista em questões ortográficas ou sintácticas, citando Rodrigues Lapa (a sua
Estilística foi profundamente moderna para o tempo, questionando a norma e defendendo a evolução pelo uso, conceito que não era apenas filológico; a citação de Cândido de Figueiredo que o Pedro faz no seu blog já vinha no mesmo sentido) ou, digamos, Lindley Cintra. Mas defendo que deve existir, nessa matéria,
um certo grau de exigência, na escola como na vida pública. E penso que, de facto, o défice de contacto com os clássicos da nossa língua (na escola, na biblioteca de família – sobretudo entre os 14 e os 18 anos) diminui as possibilidades de se
escrever melhor. Escrever melhor não é escrever de acordo com a norma; daí que eu concorde perfeitamente, e sem objecções, com a apreciação do Pedro em relação a
autores inesperados, como Leonardo Ferraz de Carvalho (outro autor que me surpreendeu, também na área da economia, foi Rogério Martins, que no
Público assinou algumas crónicas «literárias»).
Penso que é um dislate meter
Os Lusíadas à força nos programas escolares antes do 11º ano (mas não é mal nenhum falar da sua existência antes); tal como é dislate semelhante escolher
Os Maias, de Eça, em vez de
A Cidade e as Serras, por exemplo (a propósito, escolher o
Memorial do Convento não é a mesma coisa?). Não é por acaso que no Brasil
Os Maias foram objecto de adaptação televisiva – enquanto que em Portugal, onde o livro foi de leitura obrigatória, não se fez nada disso. Em 1989, num estudo encomendado pela
Ler sobre os hábitos de leitura, com preocupações um pouco mais vastas do que as habituais linhas sobre «quantos livros se lêem por ano» (e realizado pela Marktest), chegámos à conclusão de que 82% dos alunos que tinham
Os Maias como «leitura obrigatória», pura e simplesmente não o tinham lido. Enviámos (na altura eu dirigia a
Ler) o estudo ao Ministério da Educação e manifestámos a nossa preocupação: não era a altura de mudar a agulha? Ou seja: se 82% dos estudantes que deviam ler
Os Maias não o liam, porque achavam o livro «chato», «pesado», «comprido», «difícil», não estaríamos a tempo de evitar que crescesse a rejeição a Eça, e se tentasse
A Cidade e as Serras (ou
A Relíquia, essa obra-prima do humor e da tentação) ou a leitura de alguns contos de Eça? O Ministério da Educação, na secção do ensino do Português, estava ocupado com outras questões.
A minha questão com «o ensino da literatura», ou a prática da leitura de clássicos na escola, não está ligada unicamente ao «ensino da língua»; a leitura desses clássicos não é apenas importante para o contacto com a Língua – é fundamental para o contacto com a História. A questão, caro Pedro, é mais vasta: é a de defender que o Português seja uma disciplina central para as «humanidades», tal como a Matemática o é para as «ciências».
De resto, sobre a reforma do ensino do Português no ensino básico e secundário, não me parece que um aluno do 9º ano esteja em condições de compreender a complexidade formal (estética) e «histórico-cultural» de
Os Lusíadas se as aulas de História não acompanharem esse esforço. Mas já me parece que a obra seja mencionada apenas aos alunos do 12º da área de «humanidades». Na altura do «escândalo camoniano» (creio que em 2000) escrevi que o assunto dava matéria para várias hipocrisias: o nacionalismo literário, aliás, respondia cheio de feridas e de amarguras – estão a abandonar o Camões. Mas o nosso Camões estava já abandonado há muito tempo. Na universidade tive a surpresa de perceber, quando frequentei uma cadeira intitulada «Estudos Camonianos» (1981, creio), que metade dos meus colegas não identificava textos marcantes da lírica e que nunca tinha ouvido mais do que uma frase sobre «a malandrice» do Canto Nono.
O Pedro acha que, «para não variar», também lamento o que eu designei como a «euforia da linguística teórica nas universidades e escolas secundárias». Mas não foi isso que aconteceu em França, na Espanha ou na Alemanha e nos EUA? Eu fui professor de «linguística teórica» na universidade; podia dar-me ao luxo de passar um mês a comentar a frase «John hit the ball» retirada das
Estruturas Sintácticas, mas sempre achei que nas escolas secundárias não era esse trabalho que facilitava a aprendizagem da Língua ou o conhecimento e o contacto com o melhor de que a nossa Língua foi capaz. Aliás, acho que, nessa matéria, a redução à «linguística da frase» não foi um grande contributo. Tema para outra conversa. Mas continuo sem perceber – problema meu – como pode a leitura de maus textos contribuir para a melhoria da nossa «competência linguística».
O Pedro acha que invoquei «os argumentos do costume» para falar «da decadência da escrita em português». Sinceramente, não acho isso mal. Escrevi isto: «Um ensino do Português com tons mais permissivos, preguiçosos e envergonhados não há-de produzir bons falantes da nossa língua, nem bons leitores dos textos da nossa língua, nem sequer gente capaz de escrever – com clareza e rapidez – uma frase decente.» Está à vista. Escrevi que «a “classe educada” portuguesa abdicou […] de pensar e de ser exigente» e que isso tem reflexos na maneira como se lida com o Português. Está à vista. Temos um secretário de Estado da Educação que justifica os seus erros ortográficos com a falta de corrector apropriado no computador. Como se dissesse: «Isso não tem importância. Que é um erro ortográfico?»
Há aqui um mal-entendido. Eu não me importo que Mia Couto escreva em Português daquela maneira; posso não gostar. Mas nem me escandaliza, nem acho que – nas actuais circunstâncias – nós possamos reivindicar a propriedade da Língua. Até acho que é uma pena não se ler nas nossas escolas mais literatura brasileira, de Machado a Rubem Fonseca. Teríamos muito a desenferrujar. Muito.
Sim, talvez não fosse correcta a minha referência ao Dicionário da Academia – aí, o Pedro chamou-me à pedra e fez bem. Aliás, sobre os dicionários, o Pedro tem a posição que julgo correcta (ele dá o exemplo do trabalho da Longman, que é exemplar). No resto, longe de qualquer frase minha ironizar sobre a leitura de
Os Cinco (aquela gastronomia adolescente de
Os Cinco e o Circo sempre me fascinou) ou de qualquer outro género. Acho, justamente, que a nossa literatura tem um défice nesse capítulo; o «sistema literário português» continua muito reticente em relação ao «romance de aventuras», à «novela policial», etc. – porque gosta de uma «literatura muito literária», muito voltada para si mesma, muito debruçada sobre a própria escrita. Uma das razões é esta: falta-lhe muita leitura dos clássicos. Se o «sistema literário» tivesse aprendido a lição dos clássicos, não eram tão aborrecidos os romances portugueses contemporâneos, nem alguma poesia tão convencidinha da vida. Machado, Camilo, Sterne (o
Tristram Shandy, sim), Swift, Cesário, Sá de Miranda, a fantástica poesia do barroco, por exemplo.
Em suma, caro Pedro, eu não defendo que os
mestres andem de luneta apontada, à cata de discordâncias. Mas suponho que tenho o direito de exigir que no Telejornal não me apareçam erros ortográficos nos rodapés e de pedir o favor de controlar de alguma maneira a aberração das mensagens SMS em todos os programas de televisão popular. Se eu pedir que qualquer estudante do 12º ano possa fazer os exercícios recomendados por Mendes Silva no seu
Português Contemporâneo (o livro está publicado pela Teorema e pelo Círculo de Leitores), também acho que não é pedir muito.