março 29, 2004

CIMEIRA. Nestes dias, o Aviz está reunido, à beira do Índico, para uma cimeira com o Ma-Schamba. A cidade das acácias está bonita.

março 25, 2004

O REAL MADRID. Rui Rey não concorda com o texto de Maradona (A Causa Foi Modificada), publicado no Contra a Corrente. Eis o texto: Sinceramente não acho que a posta do Sr. Maradona, como valor estético, literário ou blogosférico, seja boa. Além de não perceber nada do assunto, pois presumo que o Sr. Maradona não deve saber o que é treinar uma equipa de futebol profissional, muito menos uma equipa de outra galáxia. Além disso, não está todos os dias com a equipa e por isso não sabe das vicissitudes porque a equipa passa e quais foram as medidas tomadas, quer ao nível de treinamento que visam cíclos de forma, quer outras como por exemplo as que vieram a revelar-se prejudiciais para a presente época - início de época no exterior (em locais sem condições para um boa preparação de base) e venda de jogadores que dificilmente se substituem (Makelele, a dupla Guti/Beckham tem quebrado o galho mas não são Patrick Vieira ou um Dunga por exemplo, sem serem Gatuso ou Davids), ou outros que acabaram por não integrar o plantel (Milito).
Acresce que grandes treinadores (Erikson, Scolari, Del Bosque) os quais correriam imediatamente a um chamamento de Valdano, têm sido unânimes em realçar o bom trabalho que está a desempenhar.
O Real não deixou de jogar como sabe e como nos tem maravilhado. Gosto dessa equipa porque são aqueles que escolheram a técnica como meio para vencer os adversários. Seria uma burrice chegar ao Madrid e descaracterizá-lo. Apesar doutros insultos que o Sr. Maradona lhe dirigiu, não me parece que Carlos Queiros o seja.
A gente sabe que são os resultados e as exibições que contam. Mas deixemos que desenvolva o trabalho que o clube lhe pediu e depois avalia-se. Só não percebo é que com todas as insuficiências taxadas pelo Sr. Maradona, o Real, pela mão de um conceituado senhor da bola, Jorge Valdano, contratou-o. Deve haver ali curriculum mafiado, ou o homem apesar das asneiras que tem feito pelo mundo da bola, ainda existe alguém disposto a tentar que alguma coisa lhe caia certo. Deve ser isso.»

POESIA, POLÓNIA. A Cavalo de Ferro acaba de publicar uma antologia que não esqueço: Alguns Gostam de Poesia -- reúne alguma da melhor poesia de Czeslaw Milosz e de Wislawa Szymborska (já agora, a tradução, do polaco, é de Elzbieta Milewska e de Sérgio das Neves).

Uma ironia de Szymborska: «-- La Pologne? La Pologne? Lá faz muito frio, não é? -- perguntou/ suspirando com alívio. É que surgiram por aí tantos países, que o melhor/ é limitar a conversa ao clima./ -- Oh!, Minha senhora -- pensei responder-lhe assim: os poetas/ da minha terra escrevem de luvas.»

THE JERUSALEM POST. «Compared to Arab ruthlessness against Muslim fanatics, Israel uses kid gloves in its existential battle against those who pose more than a political threat to it... None of this is to suggest that Israel should measure itself by the standards of the Arab world. This record should give pause, however, to Western governments that shape their own statements to accommodate official Arab anger at Israel's minimalist act of self-defense. The Arab world has no standing to lecture Israel on human rights, the rule of law, or international legitimacy. Western governments that ignore this wide disparity, and which have long histories of taking similar prudent, measured, and reluctant actions against terrorism themselves, should spare us their criticism as well.» [The Jerusalem Post]

HAARETZ. «Official spokesmen confirm that in the short run the assassination will indeed make Israelis and Jews worldwide more vulnerable, but promise that in the long run everyone will see the killing was worthwhile... Last week's cabinet decision to kill off the Hamas leadership broke the rules of the game, and could move the armed conflict to areas never seen before... […] The sense of insecurity that has gripped Israel since the assassination is only one of its damaging consequences. There was also the international condemnation, the deepening doubts about the seriousness of the disengagement plan announced by the prime minister, the spontaneous anger of the residents of the territories and Israeli Arabs, and more. The cabinet decision could yet go down as a seriously negative change of direction in the history of the conflict.» [Haaretz]

YEDIOT AHARONOT. «Ainda não tivemos, até agora, uma explicação sólida e clara e não sabemos como a sua eliminação [de Ahmed Yassin] se enquadra no projecto de uma relação diplomática com os palestinianos, como pode ajudar a melhorar a nossa segurança ou que perigos comporta.» [Yediot Aharonot]

UMA LOJA ESPECIAL. A Grande Loja lança, para a blogosfera, pistas misteriosas e palavras-chave que daqui a uns tempos estarão nas páginas dos jornais.

MAIS SOBRE BELGAIS: O Tempestade Cerebral responde à minha resposta que respondia à sua. Mas o essencial são as contas em redor do orçamento do Ministério da Cultura, que comparou com as do National Endowment for the Arts e as do National Endowment for the Humanities, que eu citei, chegando à conclusão de que o Ministério da Cultura português gastava mais do que o NEA e o NEH. Ora, a questão não é essa; além do mais, o NEA e o NEH não são senão uma parte do orçamento americano para as artes e as letras – muito reduzida e parcial – e apontei-os como exemplos possíveis do que se pode fazer em Portugal (digamos que o NEH corresponde apenas ao IPLB). A tese do Tempestade Cerebral é simples, clara e compreensível: em Portugal, retirou-se poder à sociedade (aos «privados», designação que me faz estremecer) para que o Estado alargasse os seus limites e decidisse «sobre a cultura» e «sobre que cultura» [os termos são meus e parecem-me adequados]. Ora, meu caro amigo, a minha dúvida não é sobre o Estado, qualquer Estado, qualquer excessivo poder do Estado sobre a sociedade. Sou, nesse sentido, muito mais liberal do que julga. A minha dúvida é, infelizmente, sobre a sociedade – daí eu ter citado o mundo dos «ricos portugueses actuais». E insisto nessa tecla (o termo justifica-se, estamos a falar de Belgais e de uma pianista…), se quiser: há uma responsabilidade social da riqueza e uma ética do dinheiro que o mundo dos «ricos portugueses actuais» desconhece. Dito de outra maneira: eu estou-me nas tintas para o apoio do Estado a Belgais, embora ache que ele deva existir – porque o projecto de Belgais é, de facto, qualitativamente diferente de tudo quanto existe por aí fora, é uma experiência que só ilustra o País e contribui para a educação musical de uma pátria que ouve demasiado ruído e pouca música. Do que eu me queixo bastante, meu caro, é do facto de a «sociedade civil», ou os «privados», ou seja lá o que for, não ter bastante gente educada, culta, interessada. E de se ter desinteressado de Belgais. Acha esta opinião absurda, naturalmente; mas a verdade é que o País definha também por causa disso.
Quanto aos «juízos de valor» sobre a «qualidade» dos bens culturais a apoiar sobre o Estado, já se sabe: é um caminho no fio da navalha. Já escrevi que duvido muito acerca das «bolsas de criação artística», em letras ou em qualquer outro domínio. E sou contra o apoio do Estado a projectos de criação de «vanguarda» (sim, se alguém tem de ser conservador é o Estado). Mas acredito que o Estado tem responsabilidades sérias quando se trata de educação musical e artística, conservação e divulgação do património, arquivos, edições raras e históricas de fundos documentais, apoio à edição de clássicos (com um sistema de vigilância extremamente rigoroso e severo para com os oportunistas). Não cabe tudo no mesmo saco.

O REAL MADRID FOI MODIFICADO. Uma das más notícias da temporada foi o encerramento do A Causa Foi Modificada. Mas há coisas que não se devem deixar passar em claro -- uma delas, é a destruição do futebol luminoso do Real Madrid por um cavalheiro chamado Carlos Queiroz. E, isso, o Maradona do A Causa Foi Modificada não deixa passar. Por isso, escreveu uma longa carta, intitulada «O Carlos Queiroz é um Boi» (admitamos) e enviou-a para que o Carlos do Contra a Corrente a publicasse. Há muito tempo que não lia um texto tão bom sobre o Real -- e sobre futebol. Escrito à velocidade de uma indignação profunda. Quem não gosta realmente de futebol, atenção!, escusa de ler o texto. Há coisas que só assim mesmo.
Para abrir o apetite: «As pessoas não gostam de desporto. [...] Porque não percebem nem retiram do espectáculo desportivo nada mais que a mesma miserável contabilidade invejosa com que estão habituados a bolinar pela própria vida – o carro do vizinho, o gabinete do colega, a tiragem do livro do rival, o Porto, o blogue daquele gajo com as sobrancelhas coladas –, limitam-se a absorver, a julgar, a pensar e a comentar apenas – e só – a estatística; não a arte, a excelência ou o eventual génio de um praticante. Estou habituadíssimo a ver humilhado o meu amor pelo desporto, muito em particular o meu fanatismo pelo futebol. Recalco até ao máximo humanamente possível a escandalosa e brutal leviandade com que todos os dias vejo tratado pela comunicação social qualquer caralho de jogo. Mas não consigo que me parem os dedos quando a traição vem de alguém que dirige tecnicamente a actual equipa do Real Madrid. Esse auroque que dá pelo nome de Carlos Queiroz decidiu vir dizer que a política de contratações do Real Madrid “não é a mais adequada” e que, por isso, terá que ser “reajustada”. Filho de um comboio de putas! Deus me cegue se não tiro a carta de pesados e lhe passo uma roda pelos miolos.» Agora, vá .

março 24, 2004

HEISENBERG, O PRINCÍPIO DA INCERTEZA. Acabei de ler o novo livro de António Manuel Baptista [Crítica da Razão Ausente, Gradiva]. É o regresso da «pequena guerra» entre António Manuel Baptista e Boaventura de Sousa Santos – e que, como debate, tem todo o sentido fazer-se. Desde logo porque acho sensatas muitas das objecções de Sokal e Bricmont (Imposturas Intelectuais) àquilo que é, apenas, a utilização de conceitos das «ciências naturais», ou da física, no domínio das «ciências sociais». Não acho o livro um «monumento reaccionário» nem – como se disse em Portugal recentemente – um ataque «à esquerda» (Boaventura Sousa Santos tinha dito o mesmo, no Expresso, do livro que António Manuel Baptista (O Discurso Pós-Moderno Contra a Ciência. Obscurantismo e Irresponsabilidade) escreveu em resposta ao seu (Um Discurso Sobre as Ciências). E é compreensível, do meu ponto de vista, o conjunto de observações feitas por António Manuel Baptista a Boaventura Sousa Santos. E, até ver, parece-me honesto o jogo de Sokal e Bricmont.

Ora, há aqui uma questão de contágio e de incerteza (não, não estou a invocar Heisenberg). Durante muito tempo, a ciência ocupava-se de «matérias precisas» – e a poesia, a arte, do jogo com o invisível. Provavelmente, a idade moderna introduziu uma ruptura qualquer: as artes tornaram-se mais substantivas, menos preocupadas com a natureza do invisível, enquanto a ciência (nomeadamente a física, a astronomia, a matemática) passou a lidar precisamente com esses valores que transportam uma «beleza terrível» (o verso de Yeats também serve): não apenas o invisível, mas o improvável, o caos, as ondas, o tempo. Nessa passagem dos anos sessenta e setenta, as chamadas ciências sociais, soltando-se do campo das Humanidades, exigiam o estatuto de ciência (ou a sua linguagem) mas nunca deixaram de reivindicar o seu direito ao impreciso, à explicação não razoável. Quando um estudante de linguística lia as páginas de Kristeva sobre matemática (ou as de Baudrillard no limite da física e da matemática, sem falar de Virilio) – incompreensíveis, de qualquer modo –, encontrava naquela invocação uma espécie de conforto por estar a tratar «de ciência» (teoremas, argumentos, equações). Mas a verdade é que continuava totalmente ignorante sobre o assunto. A linguagem estava lá, sim, e as metalinguagens podiam conferir. Mas a ignorância era brutal. Acho que hoje continua a ser brutal.

CREDIT LYONNAIS. Foi um bom jogo. A vitória do sistema.

A PARANÓIA À SOLTA. O Nuno Guerreiro descobriu esta pérola. «A vida humana é sempre uma condição em que muito deve ser suportado», escrevia Samuel Johnson por volta de 1780. A certa altura, com o riso.

março 23, 2004

HAARETZ. «The Yassin assassination was justified, no less so than American assassinations (which have yet to succeed) of Osama bin Laden and his cohorts would be justified. But "justified" does not mean necessary and wise: To say something is 'permitted' does not always mean that it is 'worthwhile.' Yassin did not provide strong arguments in favor of sparing his life; to the contrary, he responded to Prime Minister Ariel Sharon's declaration of intent to evacuate settlements and troops from the Gaza Strip by claiming victory, and by continuing the Hamas campaign of terror attacks. His activity undermined the shared Israeli-Palestinian interest in attaining an Israeli majority for the Gaza pull-out, and transfering the region to orderly PA control. Yassin's assassination, however, was not a necessity in terms of thwarting terrorist attacks; and a very high price is likely to be paid for it.» [Haaretz]

VÉNUS. NÃO É O QUE PENSAM. «O livro que o leitor tem entre mãos conta a história de uma aventura que atravessa os séculos e tem dois momentos altos: um em 8 de Junho de 2004 e outro em 6 de Junho de 2012. Nós, que estamos vivos nos princípios do século XXI, temos a sorte de poder viver essa aventura na primeira pessoa, testemunhando a passagem de Vénus em frente ao Sol. Em 2004, isso acontecerá num raro trânsito totalmente visível em Portugal; em 2012, num outro que se registará quando for noite na Europa Ocidental. Mas há muito mais nos trânsitos do que em apenas vivê-los. Só há uma primeira vez para descobrir, com surpresa e deslumbre, a aventura fabulosa que tem sido a procura dos trânsitos de Vénus. [...] Um trânsito é a passagem de um astro em frente a outro astro maior, sem o ocultar. Nos eclipses, pelo contrário, um dos astros esconde significativamente o outro.»
Este é um extracto de Trânsitos de Vénus. À Procura da Escala Exacta do Sistema Solar, de Nuno Crato, Fernando Reis e Luís Tirapicos, a ser publicado pela Gradiva dentro de umas semanas -- e é um livro espantoso, a não perder. Mesmo não sendo astrónomo.

AINDA SOBRE BELGAIS: Escreve o Tempestade Cerebral num texto intitulado «Fraude Cultural» (que não sei se refere a Maria João Pires ou a mim): «Segundo o Aviz, os ricos portugueses são mais avarentos que os americanos. Contudo, a principal causa dos reduzidos apoios privados não é avareza mas, sim, o peso do Estado na economia. Este, ao assumir o papel de decisor dos projectos culturais a financiar, eliminou – através dos impostos – a liberdade de escolha de cada indivíduo.» Independentemente de achar que o Estado tem demasiado peso na vida dos cidadãos, não me parece justificável tirar essas conclusões. A acção do governo federal dos EUA em matéria de atribuição de bolsas e de apoios às artes não é omissa, nunca foi omissa, e convém, a esse propósito, consultar os documentos do National Endowment for the Arts e do National Endowment for the Humanities para que desapareçam algumas dúvidas sobre o papel do Estado americano na promoção da Cultura. A liberdade de escolha de cada indivíduo nunca desaparece. O que desaparece, nos casos que citei, é ausência de uma ética do dinheiro e de uma responsabilidade moral da riqueza. O Estado tem algum tipo de funções, os privados outras.
Antes, o Tempestade Cerebral indigna-se quando eu escrevo que «cada caso é um caso»: «Mas, se "cada caso é um caso", quem deve avaliar sobre qual o projecto merecedor dos subsídios do Estado? O Aviz? Eu??? O Aviz parece querer deixar essa tarefa aos pseudo-intelectuais do Ministério da Cultura! E, no entanto, no final do mesmo post, lamenta a escassez de donativos privados.» Bom, suponho que o Estado tem o dever de avaliar que projectos merecem os seus apoios e investimentos. É para isso que também existe. Aqui, no caso de Belgais, não se trata de subsidiar um projecto de criação, de vanguarda, de teatro experimental ou de poesia feita por encomenda para comemorar o 5 de Outubro. Enquanto não se compreender isso, não há debate.
Já o meu caro Epicurtas põe o problema noutro lado: por que razão devem as crianças de Belgais ser privilegiadas em relação às de outras paragens? Reconheço que é um ponto e tanto. Também não sei porque é que as crianças de Lisboa são privilegiadas em relação às de Bragança ou às de Vila do Porto em outras circunstâncias.

Veja-se, também, o aditamento colocado pelo Ideias Soltas.

BELGAIS. O Liberdade de Expressão informa (tendo em conta o meu texto anterior sobre Maria João Pires) que o NIB de Belgais é o 003 502 220 007 442 253 023. Obrigado, João Miranda. É sempre bom ver que há gente atenta.

WHAT'S A HEART ATTACK? Crítica de cinema: «A Brazilian pastor died of an apparent heart attack while watching the Mel Gibson film "The Passion of the Christ," witnesses said on Monday. Soares is at least the second person to die while watching "The Passion," which opened in Brazil on Friday. Peggy Scott, 56, died of a heart attack on Feb. 25 in Wichita, Kansas while watching film's climactic crucifixion scene.»

março 22, 2004

SOBRE A GUERRA. [Actualização com comentários.] Ahmed Yassin, que a imprensa trata como «líder espiritual», defendia explicitamente o ataque a civis, e foi citado várias vezes como tendo ordenado pessoalmente ataques suicidas (abençoando os seus autores) e não suicidas (valorizando o número de vítimas causadas pelas Izz al-Din al-Qassim ou por qualquer outro grupo armado). Defendeu várias vezes esse direito divino a atacar civis e, portanto, raramente condenou as explosões. Era também um adversário da Autoridade Palestiniana e ordenou ataques à polícia da AP, bem como fuzilamentos sumários de civis palestinianos, apedrejamentos (sobretudo de mulheres e de homossexuais) e a formação de campos militares para treinar crianças, em ligação à Jihad. Tal como outros xeiques das mesquitas de Gaza, pensava que matar judeus estava ordenado no Corão (é uma das passagens menos discutidas do texto); tal como o Grande Muftí de Jerusalém, afirmava que em nenhuma parte o Corão condenava os ataques suicidas ou o uso de crianças para transportar explosivos. Yassin fazia parte da guerra e era um soldado que nunca o escondeu -- nem nas suas alianças nem no apelo que já tinha feito (leia-se o site do Hamas sobre a jihad global). Estava na guerra e era tratado como um general dessa guerra que, para ele, era santa e religiosa. Este é um ponto.

O segundo ponto é que, independentemente de todas as razões, o ataque a Yassin não deixa de ser uma falta estratégica e, claramente, aos olhos do Ocidente, uma baixa moral importante. Internamente, significa que Ariel Sharon aceita o apoio e a base eleitoral dos partidos haredim e de extrema-direita (que tinham defendido a eliminação de Yassin), em «compensação» pela saída de Gaza e por um compromisso sobre os territórios da Judeia e da Samaria; externamente, é um golpe que não deixará de ser condenado (embora ninguém chore uma lágrima por Yassin) e que aumentará a campanha anti-Israel numa parte da opinião pública. Não há aqui juízos sobre equivalência moral; o Hamas acabou de ganhar um mártir poderoso. A guerra vai continuar a ser devastadora. Não se sabe com que efeitos.

O terceiro ponto é sobre a natureza da compaixão. Yassin é retratado como um «velho numa cadeira de rodas». Está numa cadeira de rodas desde os 12 anos e isso nunca o impediu de ter ordenado atentados, de ter declarado esses ataques uma «obrigação religiosa» e de dizer que o dia mais feliz da sua vida seria aquele em que morresse como mártir suicida (shahid). Infelizmente, fizeram-lhe a vontade. Mas prevejo que aqueles que agora aparecerão a lamentar a morte de Yassin se calaram nos minutos a seguir aos atentados que ele ordenou. Mas, como já disse, não há aqui juízos sobre equivalência moral.

COMENTÁRIOS:
# «Não sei como se atreveu a ir tão longe para justificar o injustificavel. Para além da total ausência de estratégia diplomática do governo israelita (que não confundo com o povo israelita) como distingue este tipo de terrorismo do terrorismo do Hamas ou de qualquer outro?» [Isabel Prata]

# «Só lhe faltava defender que a vida de Yassin era de menos valor do que a de outros seres humanos. Não é isso uma forma de racismo?» [Carmen S. Castanheira]

# «Ouça lá, ó seu palerma! como é que você tem a lata de dizer que "aqui não há juízos morais", quando não faz outra coisa, ao longo deste e doutros textos sobre o assunto, se não jogar com valores positivos e negativos? se não quer fazer juízos morais, esteja calado que faz melhor figura. ou então, escreva sobre a luz da lua, ou os eflúvios da primavera. e deixe-se de usar a arma da técnica da escrita - que é uma arma (uma técnica) como outra qualquer - para defender o indefensável. não fique a pensar que um mercenário ou um fascista que escrevam boa literatura têm mais direito ao espaço público que um "tosco" ou um semi-analfabeto. escreva livros para entreter saudosos do colonislismo e deixa-se de falar de assuntos sérios, que não são o seu domínio.» [Luísa Mendes, ou Maria Luísa Rodrigues]

A NOITE, O QUE É?, 45. O céu lembra vagamente a beleza da meia-noite que passou. Tudo há-de ser vago, nosso céu, boas e más estrelas, nomes de plantas, estradas abandonadas, canteiros. Quando me despeço da noite, o céu lembra vagamente a beleza da vida inteira.

MARIA JOÃO PIRES. [Maria João Pires em entrevista ao El Pais; em causa, o projecto de Belgais e a falta de apoio e de palavra de Estado e privados.] A questão básica, se me permitem -- amigos de esquerda e de direita --, é que Belgais não é uma peça de teatro no Bairro Alto nem um grupo «de vanguarda» que choraminga porque o Estado não cedeu à sua chantagem habitual para produzir mais um fait divers. Belgais é uma escola, um centro de investigação musical, um auditório para que músicos realmente importantes se encontrem, trabalhem e produzam música, que é um bem inestimável num país de merda que tem tagarelas à altura mas que é ignorante em matéria musical. Não se trata de «um espaço» inútil: ali, aprende-se música, conservam-se partituras, e ensina-se. Num país que ignora brutalmente as artes sérias e as ciências importantes, eu defendo que se deve apoiar Belgais. Porque cada caso é um caso, independentemente do que se possa pensar sobre a política geral de atribuição de subsídios à cultura, nível em que Belgais se salienta pela atenção que dá à formação. Maria João Pires, de facto, não precisa de Belgais nem da burocracia ou das promessas portuguesas, pode viver onde lhe apetece, mas achou que podia fixar-se em Castelo Branco e que poderia investir parte do que é seu numa obra daquela importância.
O protesto de Maria João Pires não é contra o Estado nem contra o governo apenas. É contra o país -- e isso compreende-se muito bem. O país do Euro 2004 e dos «desfiles de moda» subsidiados pelo Estado e pelas câmaras municipais, o das empresas que não cumprem as suas promessas, o dos ricos que ignoram a existência de uma responsabilidade social do dinheiro.
Eu, pessoalmente, estou-me nas tintas para as posições políticas de Maria João Pires e para a sua presença nas manifestações em que entendeu estar presente (e eu não estive, nem estarei), ou para essa contabilização de ressentimentos, que neste caso vêm da direita -- e que no caso de Vasco Graça Moura ou de Fernando Gil vieram da esquerda. Maria João Pires é, se acreditarmos que as pessoas têm uma nacionalidade à nascença, um nome português de que nos devemos orgulhar: pelo seu talento, pelo seu piano, e por Belgais, que pode ser visitado e vivido. Milhares (repito: milhares) de idiotas e de pseudo-talentos viveram, na cultura, à conta do Estado. Ou porque querem escrever e «ter ideias» com o chapéu protector do Estado ou defender qualquer outra urgência liminar em nome do seu génio ainda a provar. O génio de Maria João Pires não precisa de ser provado: está aí. Os fundos que pediu, que negociou, que viu serem atribuídos em contrato a Belgais, são uma «parceria» para um trabalho notável. Não existem para ela gravar Schumann, Chopin ou Mozart para um país surdo que limpou com benzina o nome de Vianna da Mota de um avião da TAP, para lá colocar o de um futebolista -- isso, ela grava onde quiser. Esse país, em versão ligeira, mas com todas as letras, é uma merda.

[Actualização: Os ricos, em Nova Iorque, contribuem mais do que generosamente para que o Central Park seja limpo, ordenado, vigiado e protegido. Nos EUA, aliás, as universidades recebem dinheiro dos ricos, que financiam as suas bibliotecas e oferecem bolsas. Em Portugal, já vão longe os tempos em que os ricos -- como no Minho, por exemplo, Cupertino de Miranda -- erguiam bibliotecas, ofereciam livros, contribuíam para centros médicos e de velhice, e, sim, construíam fontanários, que eram um bem necessário e útil nas aldeias. Quando eu era estudante de liceu, recebi um prémio «para os bons alunos» instituído por um dos ricos da minha cidade -- foi com esse dinheiro que comprei alguns dos livros de que, ainda hoje, mais gosto. Na mesma altura, colegas meus (de liceu) recebiam bolsas instituídas por ricos locais -- torna-viagem brasileiros do tempo de Camilo (que é muito bom ridicularizar, não é?), primeiros colonos de África e «industriais de província» e alguns comendadores da indústria regional. Actualmente, o mundo dos ricos é ocupado por aventesmas que mostram a sua casa nas revistas, ao lado dos políticos e das estrelas de televisão que vão à ilha da Caras, e que têm uma sensibilidade de rinoceronte. Não conhecem Belgais como não conhecem música.]

[Actualização, 2: Há uns anos, numa biblioteca pública, mostrei-me interessado numas colecções de livros sobre Camilo e sobre o Brasil. Os bibliotecários informaram-me que tinha sido o sr. fulano, um desses «comendadores da indústria regional», a oferecer os livros. E que tinha contribuído com mais dinheiro para comprar os móveis-estante para os albergar. Folheei os livros, com curiosidade: estavam anotados. O sr. fulano morreu há uns tempos, era um simpático velho reaccionário que tinha algum dinheiro, uma bronquite crónica e uma quinta cheia de livros -- e um piano. Não sabia tocar e os netos e sobrinhos achavam aquilo uma maçada. Mas ele gostava de ter ali o piano. Era uma imagem de beleza pura e volátil que ele nunca entendera verdadeiramente. Abençoado.]

SOARES, 2. O Paulo Gorjão respondeu à pergunta sobre as posições actuais do ex-presidente da República. No Bloguítica.

O CINTURÃO. Com atraso, leio a imprensa e imagino o heroísmo que sentiu a jovem manifestante que, no sábado, se «vestia à árabe» (cito o Público), levando um cinturão idêntico ao dos terroristas do Hamas. Fica tão bem, o heroísmo à distância. Fica tudo tão bem, à distância. Mas ainda assim acho que ela devia ter sido consequente.

MOÇAMBIQUE. Já tinha chamado a atenção para o blog do José Fávio Pimentel Teixeira (o Ma-Schamba, uma leitura do dia-a-dia moçambicano escrita por um português que decidiu arriscar), mas nunca é demais insistir, sobretudo agora que Nampula está na ordem do dia. O José Flávio já escreveu sobre o assunto e, frequentemente, irrita-se com a imprensa. Tem toda a razão.

IRAQUE. «I am still alive.» O último texto de Salam Pax, no Where is Raed?, começa por essa frase, mais uma vez.

CUIDADO COM OS BLOGS. No Brasil, Alessandra Félix tinha um blog: o Amarula com Sucrilhos. Há uma semana, aproximadamente, recebeu uma carta de um escritório de advogados. Eles representam uma empresa sul-africana, que produz licor de Amarula (amarula, Sclerocarrya birrea, fruta originária de África, apreciada por elefantes e que será, ó moral!, afrodisíaca): depois de mencionarem que «a existência de referido nome de domínio pode levar o público em geral a acreditar que haveria alguma relação entre este site, seu conteúdo» e o licor de Amarula, intimaram Alessandra a mudar o nome. Os advogados que assinaram a intimação, acusaram o seu blog de «concorrência parasitária» com a empresa detentora do nome Amarula. Toda a história está aqui, seu antigo endereço, e no novo, que se chama Licor de Marula com Flocos de Milho Açucarados (já é obsessão, confesso) ou, mais prosaicamente, Alê Félix. Sim senhor, aí está uma questão de propriedade intelectual.

UMA BIBLIOTECA EM NITERÓI. O presidente Lula foi ao Ceará e avisou esta semana que livro não “ensina a arte de governar”. Humaníssima crónica de Marcos Sá Corrêa. No No Mínimo, claro.

março 21, 2004

ANIVERSÁRIOS (CONTINUAÇÃO). É difícil acertar, mas acho que o Cruzes Canhoto (que me atribui o O Fim da Aventura, de Graham Greene, o que agradeço) faz um ano também.

E quem comemora igualmente um ano de existência é o Contra a Corrente, com quem acabo, aliás, de formalizar uma aliança gastronómica. Tencionamos pô-la em prática já esta semana.

O POEMA MAIS LONGO. Vejo, na RTP (na :2), uma reportagem sobre uma iniciativa começada na Coimbra Capital da Cultura: a construção do poema mais longo que se conhece. Para isso, recorda um dos responsáveis, foi preciso um programa informático especial. Depois, vêem-se os actores em palco, lendo os papéis -- que tambem mencionam «o homem global» e, percebo, outras imagens da ordem. O comissário da Coimbra Capital da Cultura também falou sobre o acontecimento. Realmente, ler Shakespeare é uma velharia. É nessas alturas que agradeço a Bashô nunca ter escrito o quarto verso da maioria dos seus poemas.

CITAÇÕES A GOSTO, 4. «Parte-se do princípio de que a principal razão de ser da imprensa sejam as notícias. Se as notícias são o que aconteceu ontem, os jornais imprimem uma quantidade medonha de notícias falsas. As notícias são o que imprensa publica. A maioria das "notícias" mundiais são fabricadas pela própria imprensa: entrevistas com homens importantes, relatórios sobre situações graves, análises políticas, "especulações informativas", etc. Uma grande parte da imprensa abandonou, na verdade, a pretensão de tratar exclusivamente de factos.» {T.S. Mathews, The Sugar Pill: An Essay on Newspapers, 1959}

GISBON, 2. Só mesmo para encerrar, e definitivamente. Em relação ao minúsculo texto anterior sobre Gibson (de que mantenho tudo; e basta ler a crónica que citei para se perceber de que miséria se tratava), e sobre a frase final, o sempre atento Filipe N. V. pergunta-me qual das três hipóteses eu subscrevo: «1) Quem tiver gostado do filme é um adicto a sangue e miséria? 2) Ou um antisemita incurável? 3) Ou apenas alguém com quem você não partilha os seus gostos cinematográficos?»
Rapidamente: o ponto 2), confesso, não tem sentido a não ser para aqueles que dependem de qualquer teologia negativa, e as ideias de Gibson nesse aspecto não são propriamente credíveis ou, sequer, ideias; o filme está cheio de insinuações que não passam de erros históricos (a utilização do aramaico, a destruição do segundo Templo, etc.) e de trapalhadas afins -- não é problema meu; o antisemitismo popularucho, que é geralmente invocado entre nós, é tão banal que só se confunde com a doença, a deformação mental e a má-fé; o filme continua uma lógica conhecida da tradição cultural ultra-conservadora católica de que já tivemos o suficiente no século XVI; não alinho em «cruzadas» de qualquer natureza, nem contra Godard, nem contra Scorcese, nem contra Gibson -- limito-me, em relação ao filme, a mudar de lugar e a não insultar as opiniões dos outros, embora a má-fé e a ignorância andem sempre de mãos dadas; finalmente, não acho bom esgotar a palavra «antisemitismo» desvalorizando aquilo que nela se mantém essencial. Sobre o ponto 1), não se trata de sangue, mas da exaltação através do sangue e da invocação do sofrimento; acho que existe, aí, uma questão fundamental, que nem sequer é «teológica», mas que -- talvez exagerando -- coloca Santo Agostinho de um lado e Montaigne do outro (não é por acaso que se fala na conversão de Gibson como um momento traumático): Agostinho invoca o sofrimento e as suas etapas antes de entrar «no domínio da verdade», Montaigne fala do que é (sim, de facto talvez devêssemos ler mais Montaigne). Sobre o ponto 3), de facto, não vejo grande diferença entre o filme de Gibson e as versões zefirellianas ou anteriores; tem mais efeitos especiais, mas aí eu prefiro o Terminator 2, sim, e definitivamente. E de Gibson as sequências do Arma Mortífera. Enfim, não é filme que me interesse.

GIBSON. Eu tinha prometido que não falava do assunto mas, para quem quiser mais argumentos, está aqui um: uma senhora Vera Roquette que escreve para o Diário de Notícias, gostou do filme. Bem me parecia. Sangue e miséria.

RUY CASTRO, E BILAC. Para quem não leu ainda, está por aí Bilac vê Estrelas, o policial que Ruy Castro publicou na colecção Literatura ou Morte (Companhia das Letras no Brasil, Asa em Portugal). Olavo Bilac é um dos poetas que gosto de redescobrir por vício. E a espiã portuguesa que aparece no livro de Castro, atacando um Bilac romântico e enxovalhado por muita frequência da Confeitaria Colombo e insónias por tudo e por nada, é uma personagem e tanto.

RUY CASTRO STRIKES AGAIN. Ruy Castro é uma dessas boas figuras de bonomia e, simultaneamente, um dos brasileiros que melhor conhece o Brasil, ou melhor, o Rio de Janeiro (aliás, está próxima a publicação de uma biografia do Rio de Janeiro e já publicou Carnaval no Fogo ou Ela é Carioca. Uma enciclopédia de Ipanema). E Nelson Rodrigues, evidentemente, sobre quem escreveu a biografia definitiva, O Anjo Pornográfico (Companhia das Letras), e de quem organizou a publicação das suas obras completas (uma das mais citadas, felizmente, da blogosfera portuguesa). E a bossa nova – dedicou-lhe A Onda que se Ergueu no Mar e Chega de Saudade. E, claro, o Flamengo (escreveu O Vermelho e o Negro). Etc.

Bom, o Duarte, do Golpes de Vista, atento, anunciou a saída do seu novo livro – e o Estrada do Coco já tem uma boa citação de Amestrando Orgasmos: Bípedes, Quadrúpedes e Outras Fixações Animais (edição da Objetiva). Leia a passagem deliciosa sobre o peptídeo.

SOARES. A velocidade, em política, é inimiga de quase tudo, embora seja uma das suas condições. Mas, neste caso, atropela a lucidez. Mesmo desculpando (e é preciso dar um desconto, tratando-se de quem se trata) a sua vontade de ser notado e de exercer as suas pequenas e até explicáveis atribuições (nomeadamente o paternalismo que lhe foi autorizado), é bom que se faça a pergunta: como é que Mário Soares chegou a esta condição, a de um populista de esquerda, banal e previsível? Aqui está uma pergunta para o Bloguítica responder. Não na condição de soarista ou de soarólogo, evidentemente – mas porque pode ajudar a compor o quadro dos próximos tempos da política caseirinha, além de poder ser o pretexto para uma boa página de política. Pura, naturalmente.

março 20, 2004

CITAÇÕES AO GOSTO, 3. «A civilização democrática é a primeira na história que se culpa a si mesma quando outro poder a tenta destruir.» {Jean-François Revel}

março 19, 2004

O ABJECTO. Ao fim da tarde, emissão da TSF. Entrevista no «Pessoal e Transmissível». Um cavalheiro, vagamente inimputável, recorda o 11 de Setembro: estava na Figueira da Foz e um amigo telefona-lhe. Eh pá... a malta mudou a mesa para a frente da televisão, estava a comer uma caldeirada, e foi uma refeição aí de umas quatro horas, cheia de alegria. O inimputável fervilha de alegria, ao relembrar o momento. Carlos Vaz Marques lembra-lhe que são 3 000 americanos. Eh pá, isso não é nada... Então e o valor da vida humana? Vida humana? Aquilo são americanos, uma raça desgraçada... Depois, o inimputável continua: que era perfeitamente capaz de matar Bush, aliás, ele queria matar Bush, que não matava a mulher de Bush, mas que a entregava a um bando de tarados sexuais. Que isto só vai à bomba. Ele é um anarquista, aliás, e isto só vai à bomba, veja-se a França onde não se pagam os medicamentos e os reformados andam de graça nos transportes públicos, porque houve a guilhotina, isto só vai à bomba, veja-se em Cuba, onde houve sangue, e onde o povo vive muito bem. Depois, o inimputável continua, vai dizendo que é um bocado sacana mas muito amigo da família, os americanos é que são arraçados de maus, nós não, nós somos uma raça aceitável, agora no 11 de Setembro isso foi uma alegria. Uma alegria. Quando o Carlos Vaz Marques lhe pergunta se acha que alguém o leva a sério, o inimputável concede: «Os gajos inteligentes, sim.»

Ouvi isto no carro. Ele esteve ali quarenta minutos a falar. Estava muito trânsito na Ponte do Infante, mas ouvi. Havia uma ligeira ventania sobre o Douro, uma espécie de poeira. Como dizia Clarice Lispector, impossivel explicar.

março 18, 2004

CITAÇÕES AO GOSTO, 2. «Do que as mulheres precisam é do direito ao serviço militar. Dêem-me um regimento bem montado de mulheres com sabres, em oposição a um regimento de homens com votos. Veremos quem se vai abaixo primeiro.» {Fala de Mrs. Banger; Bernard Shaw, Press Cuttings}

CITAÇÕES AO GOSTO, 1. «Os teus amigos não são religiosos: são apenas arrendatários de bancos de igreja. Não são morais: são apenas convencionais. Não são virtuosos: são apenas cobardes. Nem sequer são depravados: são apenas 'frágeis'. Não são artistas: são apenas lascivos. Não são prósperos: são apenas ricos; nem corajosos: apenas brigões; nem poderosos: apenas dominadores.» {Fala de D. Juan ao Diabo; Bernard Shaw, Man and Superman}

THE WASTE LAND. Que Carvalhas e Jardim o digam («se acontecer alguma coisa», a culpa é de Barroso e do regime, alternadamente) com os respectivos sotaques, é um problema menor: que isso seja transformado em tique nacional, é, além de vergonhoso, intimidatório, sim. E durante os próximos anos vamos ter de aturar estas abéculas.

A NOTÍCIA DAQUI A ALGUM TEMPO. Se o Paulo Gorjão não se importar de dividir as receitas das apostas, eu junto-me já ao seu texto: «APOSTA DO DIA. Querem apostar que os soldados espanhóis não vão retirar do Iraque? Depois logo falamos.»

O SOM DE UMA NOTÍCIA. Há, aqui, qualquer coisa que não soa bem.

ESCREVER. Em nenhum momento me passa pela cabeça criticar a agenda dos blogs. O excesso é evidente, sobretudo em situações de crise; a vigilância é mais cerrada; o grau de lugares-comuns repetidos, divulgados e multiplicados, é mais elevado; a má-fé cresce em proporção, tal como a emotividade; do sangue derramado passa-se com facilidade ao maniqueísmo que lamenta os maniqueísmos alheios, mas sempre se vislumbram as causas cerradas que estão à espreita. Nessa matéria, as palavras usadas não são importantes nem definitivas, basta que aumentem o número. E a quantidade de texto com adjectivos. Da necessidade de falar claro passa-se facilmente à euforia. Digamos que é intimidatório.

P.S. - Para quem se deixa intimidar, naturalmente. Porque o outro dever do homem sensato é rir. Em silêncio, muitas vezes.

março 17, 2004

CASARAM MESMO. O fim do Desejo Casar deixa-me a pensar que eles têm razão; sobretudo aqueles que eu conheço ou conheci de um dos blogs que sempre valeu a pena ler: chegaram, escreveram, hoje sentem que há outras coisas, levantam os seus haveres, partem, não publicam manifestos sobre o assunto. Limitam-se a partir com uma breve justificação depois de terem lançado boas ideias. O Nuno Costa Santos, o Bernardo Rodrigues, o Alexandre Borges, o Luís Filipe Borges, a Clara Macedo Cabral, o Luís Camilo Alves, etc., etc., etc., escreveram sempre muito bem. Num mundo cheio de pontapés na gramática, de evangelizadores, de ressentidos, isso («escreveram sempre bem») é um elogio único. Sacanas, que se divertiram bem.

março 16, 2004

AGRADECIMENTOS. Ao Rui Almeida, ao Seta Despedida e ao Tempo Dual. Pela lembrança.

ROCK IN RIO. Naturalmente, não vou ao Rock in Rio de Lisboa, até porque não percebo se aquilo é um festival de rock, um «espectáculo de variedades» ou um exercício para testar a segurança do Euro 2004. Mas uma das ideias originais da temporada é, sem dúvida, o Boicote ao Rock in Rio Lisboa, um blog de causas.

março 14, 2004

MADRID, 2. Eu não sou eleitor em Espanha. Se fosse, provavelmente votaria num partido de rapazes boémios da Galiza que em tempos organizaram o Partido Fisterrense e se entretinham a fazer concursos para saber quem dançava os melhores boleros no bar que ficava por baixo do restaurante O Centolo, em Finisterra. Mas, depois de ver os telejornais portugueses desta noite, fico mais aliviado: há jornalistas portugueses que, felizmente, também não votam em Espanha.

MADRID. E sobre a «novidade» da chegada do terrorismo islâmico à Europa, leia-se a lembrança de Rui Curado Silva no Klepsidra. Não vejam só a CNN, de facto.

BOM DIA A TODO O AUDITÓRIO. Sobre a parafernália de fóruns, debates, sessões de «participação telefónica dos ouvintes», «obrigado por dar a sua opinião», «queremos saber a sua opinião», «o assunto em discussão», o melhor já foi dito esta semana por Joel Neto, em dois textos intitulados «Bom Dia a todo o Auditório» e «Bom Dia a todo o Auditório (nova rubrica)». O último deles é (foi) premonitório.

ESPANHA, 5. A VIDA É A VIDA.

«A vida é a vida,
e não os seus resultados.
Não a casa grande
no alto da montanha,
nem as coroas e medalhas
(áureas ou de imitação)
que ocupam as estantes.
Não é só isso a vida.
A vida é a vida,
e isso é o mais importante;
aquele que a tira,
tira tudo.
Não as grandes viagens
a terras e cidades longínquas,
nem as estranhas gentes
(melhor ou pior fotografadas)
que ali encontramos.
Não é só isso a vida.
A vida é a vida.
E isso é o mais importante;
aquele que a tira,
tira tudo.
Não a chuva sobre o telhado,
nem o granizo na janela,
nem a neve, nem a lua,
nem sequer mesmo a luz
(tão maravilhosa).
Não é só isso a vida.
A vida é a vida.
E isso é o mais importante;
aquele que a tira,
tira tudo.
Não essa mulher ou esse homem
que nos sussurra ao ouvido,
tampouco os pais ou os filhos,
os irmãos ou os amigos
(de agora e de sempre).
Não é só isso a vida.
A vida é a vida.
E isso é o mais importante;
aquele que a tira,
tira tudo.»

Bernardo Atxaga
[Poema publicado no El Mundo, 12 de Março de 2004. Tradução, para o Aviz, de Eduardo Jorge Madureira.
Bernardo Atxaga, pseudónimo de Joseba Irazu, é poeta e romancista bilingue (de vasco e castelhano), nascido en Asteasu (Guipúzcoa). É autor, entre outros livros, de Obabakoak.]

março 12, 2004

DOIS ANIVERSÁRIOS ESQUECIDOS. O da Voz do Deserto e do Memória Inventada. São, cada um à sua maneira, dos melhores blogs portugueses, muito bem escritos.

ESPANHA, 4.

«Nada é tão necessário ao homem como um pouco de mar
e uma orla de esperança para além da morte,
é tudo o que preciso e talvez um par de asas
abertas no capítulo primeiro da carne.

Não sei como dizê-lo, com que cara
trocar-me por um anjo dos anteriores à terra,
quebraram-se-me os braços de tanto lhes dar corda,
dizei-me o que farei agora, que horas são, se ainda há tempo,
é preciso que suba a mudar-me, que me arrependa sem perder uma lágrima,
uma apenas, uma lágrima orfã,
por favor, dizei-me qual a hora das lágrimas,
sobretudo a das lágrimas sem nada mais que pranto
e pranto ainda e para sempre.

Nada é tão necessário ao homem como um par de lágrimas
prontas a cair no desespero.»

Blas de Otero [Blas de Otero nasceu em Bilbau. Morreu em Madrid, em 1979. Tradução de José Bento]

ESPANHA, 3. Nos últimos dias tenho lido ao acaso alguns dos ensaios de Daniel J. Boorstin e ontem foi a vez de O Nariz de Cleópatra, um dos seus livros (injustamente) menos lidos. A ideia central resume-se numa frase: «Se Cleópatra não tivesse aquele nariz, certamente que a história da Humanidade seria diferente.» Há consequências naturais a tirar deste princípio, que Boorstin enquadra na tipologia dos «descobrimentos negativos»; o primeiro exemplo que dá é o de Thomas Cook, que se distinguiu sobretudo por provar que não existia nenhum continente espantoso (e rico, e imenso) entre a Antárctida e o Sueste Asiático. Há uma série de descobertas negativas que salvaram a nossa ideia do mundo; e que assassinaram velharias assentes sobretudo na fé e na autoridade eclesiástica (de Copérnico em diante, há uma série delas).
Depois de ver os blogs de hoje e de acrescentar as leituras das opiniões dos políticos cheios de fé, de ontem, vejo que há uma tentação de fazer moral negativa: não foi a ETA, não foi a al-Qaeda, não foi o que tu dizes que foi. A moral negativa, como todo o tipo de juízos assentes na fé política (que é menos perversa do que a fé religiosa, mas muito mais ridícula), produz dislates evidentes, sobretudo se hoje lermos o que se disse ontem, no calor da não-reivindicação do crime (ver, a propósito um dos posts do Klepsydra que, com a sua ponderação, acerta como é habitual). A tentação moral, aliás, produz coisas destas: analistas portugueses tentando acreditar que a autoria foi da al-Qaeda para que isso atinja mais o governo espanhol. Só assim se compreende que certas luminárias tenham avançado desde logo para a tese da culpa americana, que hoje está em saldo e com grande aceitação no eleitorado. No dia 12 de Setembro, um dia depois do ataque ao WTC, o fórum TSF deu voz a esse sentimento (não foi preciso esperar pelo Afeganistão e pelo Iraque) de má-fé: eles tiveram o que mereciam. Esse tom é aceitável em guerrilha, mas ofusca o raciocínio, evidentemente; essa lógica leva a que atentados como os de ontem sejam desculpabilizados e justificados (ou lidos como justificáveis), sobretudo se tiverem alguma coisa a ver com a al-Qaeda. Entramos, assim, no universo da tal elocubração adversativa: sim, o atentado é criminoso, mas não é senão uma resposta; sim, devemos condenar o atentado, mas temos de compreendê-lo «no contexto do confronto». Ora, essa lógica não tem contradição possível hoje em dia, de tal modo é aceite, divulgada, autorizada. O relativismo entrou no discurso das multidões; é como uma espécie de marca de credibilidade para o common-sense.

Três notas mais: 1) a simpatia pelo «nacionalismo basco» provoca sempre delírios que transformam os operacionais da ETA em «heróis do povo»; ontem, ouvi falar de Garmendía e Otaegui (os últimos fuzilados de Franco) para justificar o combate da ETA. 2) sobre a «hipótese al-Qaeda», o correspondente da SIC nos EUA chamou a atenção para um dos argumentos desse common-sense: que tinha a Europa de se meter onde não era chamada?

[Há, evidentemente, dois momentos nestas reacções: o horror, humano e compreensível; a comoção diante do crime, a compaixão diante das vítimas inocentes, a indignação diante dos ferros retorcidos, da poeira, das manchas de sangue. Quem já visitou cenários desses, logo a seguir a um atentado, compreende melhor o que significa a a ausência de razão e a falha absoluta do conceito de verdade (William James dizia que o «verdadeiro» é só um «expediente na nossa maneira de pensar»). E, depois, o segundo momento: continuar tudo independentemente da verdade absoluta transfigurada naqueles ferros retorcidos.]

março 11, 2004

ESPANHA, 2. Um texto de Josep Ramoneda no El Pais relembra uma frase de Amos Oz: «O terrorismo é como a heroína: as doses devem ser cada vez mais fortes, para que o efeito se mantenha.»

ESPANHA, 11 DE MARÇO.

«A cidade é de borracha lisa e negra
mas tem vielas com odor a estábulo,
armazéns de cereais, a madeira molhada,
a selaria, a chicória, a esparto.

Há chilreios que mordem, ruídos inumanos,
há bruscas buzinadas que desincham
meu absurdo coração hipertrofiado.

Alugo-me por horas; rio e choro com todos;
mas escreveria um poema perfeito
se não fosse indecente fazê-lo nestes tempos.»

Gabriel Celaya [Gabriel Celaya nasceu em Hernani, no país Basco. Viveu em Madrid grande parte da sua vida. Tradução de José Bento.]

março 10, 2004

AMOS OZ. [Actualizado, quarta-feira, 15:50 h] Para quem leu In the Land of Israel, de Amos Oz, não são precisas muitas explicações. O seu novo livro acaba de sair em Portugal (na Asa, que tem vindo a publicar a sua obra, e, antes, a Dom Quixote). Recentemente, Amos Oz deu uma conferência em França na École Normale Superieure, para apresentação do romance Une histoire d’amour et de tenèbres e, naturalmente, falou de Israel. Para quem leu o Aviz, sabe que essas são as minhas opiniões (e do Nuno) sobre o assunto. A transcrição da conferência foi de Élise Gillon, e o bom amigo Eduardo Jorge Madureira fez-me chegar o texto. Publico alguns extractos (o texto completo, para quem quiser ler, com os comentários e apresentações de Amos Oz, nomeadamente por Francis Wolf, Gregory Haik e Emmanuel Szurek, está na versão brasileira deste blog). [O texto não tem acentos.]

«Amos Oz se refuse en effet a un dialogue 100% politique et donne la priorite a la culture: Israel en effet n’est pas seulement une armee et un gouvernement, comme les medias occidentaux le donnent trop souvent a penser; Israel est aussi une societe civile divisee interieurement, profondement, et les medias occidentaux ne laissent quasiment rien percevoir de ces divisions. Ce qu’on voit dans les journaux, ce sont “80% de fanatiques, 19% de soldats et 1% d’intellectuels d’elite en faveur la paix” (comme lui-meme, a fait remarquer avec humour le conferencier). Or les Israeliens ne ressemblent pas du tout a cela: il vivent pour l’immense majorite dans la plaine cotiere et non dans les colonies; les ultra-orthodoxes ne forment qu’une petite minorite tandis que la majeure partie de la population est «laique et bruyante»: pour donner une image de la societe israelienne, Amos Oz prefere evoquer Fellini plutot que Bergman! Les divergences ethiques et theologiques au sein de cette societe font que le debat entre faucons et colombes se nourrit d’arguments, mais aussi de sentiments tres puissants.
Amos Oz deplore qu’en Europe nous ne suivions que des manchettes des journaux, pas la realite dans son intensite dramatique. Il decrit Israel comme “l’une des societes les plus passionnantes au monde”: “J’aime Israel, meme dans les moments ou je ne l’apprecie pas; j’aime Israel, meme dans les moments ou je ne peux plus le supporter”, a-t-il affirme. Il remarque que personne ne s’interroge jamais sur la legitimite de l’existence de la France apres les crimes de la decolonisation, ou meme de la Russie ou de l’Allemagne apres Staline et Hitler: le probleme d’Israel est qu’il est “souvent conçu comme un phenomène 100% politique”.»
[...]
«Israel, a-t-il rappele, est constitué pour moitié de Juifs chassés des pays arabes au moment même ou les Palestiniens, chassés des terres israeliennes, apprenaient a vivre en refugies et entraient en diaspora. Amos Oz parle donc d’Israel meme comme d’un “monde de reves brises, de reves mutuellement exclusifs”: certains voulaient y batir “une republique biblique», d’autres “une incarnation parfaite du shtetl juif”, d’autres “un paradis marxiste”, au point que certains kibboutzniks, jusqu’en 1952, revaient qu’un jour Staline en personne viendrait visiter leur kibboutz et mourrait de bonheur en voyant le marxisme devenu realite. D’aucuns encore en voulaient faire une replique de l’Autriche-Hongrie. Mais la seule maniere de garder un reve intact est de ne jamais chercher a le realiser, avertit Amos Oz. Or Israel est un reve realise, d’ou ses imperfections. Israel n’est pas un roman critique par Le Monde: Amos Oz n’a que faire des critiques adressees a Israel par les journaux europeens, meme s’il a honte parfois des actions de son gouvernement. Mais c’est son affaire: il ne mendie pas comme ses parents l’amour de l’Europe.»
[...]
«Dans ces circonstances, Amos Oz reproche aux intellectuels europeens, meprisants envers les productions hollywoodiennes, d’appliquer au conflit du Proche-Orient le scenario d’un mauvais film hollywoodien: les bons contre les mechants. Ils n’ont pas compris qu’une tragedie est le choc d’un droit contre un autre droit et souvent aussi d’un tort contre un autre tort. Au Proche-Orient, les schemas anticolonialistes si simples et confortables, qui permettent de distinguer facilement les bons des mechants, ne collent pas: ils sont inadaptés au tragique de la situation. Heureusement, ce tragique n’est pas sans issue puisque aujourd’hui la majorite des Israeliens et des Palestiniens sait ce que sera la solution: la partition du territoire selon une frontiere correspondant en gros au trace de 1967 afin de donner un Etat a chaque peuple. Amos Oz en parle comme d’un “compromis douloureux”, car «un compromis heureux est un oxymore”. Mais le choix n’est pas entre un compromis douloureux et une absence de compromis: le choix qui s’impose aux Palestiniens et aux Israeliens est le compromis ou le desastre, le compromis ou la mort. Amos Oz definit le compromis non comme une compromission mais comme le synonyme de la “vie”: “ou il y a vie, il y a compromis.” Il s’agit d’essayer de rencontrer l’autre a mi-chemin: renoncer a la justice totale, qui conduit a la mort pour les deux parties, et accepter une justice partielle qui permet de vivre. C’est une decision qui sera “prise les dents serrees” et sera source de malheur mais c’est la seule compatible avec la survie des deux peuples. Amos Oz evoque a ce propos la difference entre les tragedies de type shakespearien et les tragedies de type tcheckhovien: a la fin d’une tragedie de Shakespeare, la scene est jonchee de cadavres et «peut-etre la justice l’emporte-t-elle”; a la fin d’une tragedie de Tchekhov, tout le monde est amer, decu, mais vivant. Le compromis est donc la seule approche possible selon Amos Oz, “car chacun des deux sait que l’autre ne partira pas et qu’il faudra partager l’appartement.” L’alternative de l’Etat binational est en effet totalement irrealiste. La meilleure preuve en est cet idealiste suedois, partisan d’un Etat binational israelien et palestinien, a qui Amos Oz proposait de supprimer la frontiere avec la Norvege, frontiere symbolique en theorie puisque les deux pays sont en paix l’un avec l’autre depuis des siecles, parlent une langue similaire, possedent des cultures tres proches et n’ont jamais ete separes par un mur: pourquoi donc garder deux Etats? Le Suedois s’est aussitot recrie: “Ah, mais c’est que vous ne connaissez pas les Norvegiens, Monsieur!”»
[...]
«Un mur n’est pas forcement une mauvaise chose entre des ennemis violents quand il est au bon endroit, c’est a dire entre mon jardin et celui de mon voisin, et pas au milieu du jardin du voisin. Amos Oz n’approuve pas l’emplacement du mur actuel mais il n’est pas contre le principe d’un mur et se plait a citer Robert Frays: “Une bonne barriere fait de bons voisins” (“A good fence makes a good neighbour”). Le docteur Tchekhov (car Tchekhov n’etait pas seulement ecrivain, c’etait aussi un tres bon medecin) aurait peut-etre prescrit 10 ans de barriere entre deux voisins ennemis.»

MONSANTO. Esta ideia que anda no ar, vinda da Câmara de Lisboa, sobre a «implantação» de uma «indústria de lazer» em Monsanto, causa arrepios. Monsanto é um dos últimos lugares saudáveis de Lisboa e, infelizmente, já com coisas a mais lá dentro. Portugal não gosta muito de jardins, de parques ou de bosques (falámos do assunto na altura dos incêndios, não foi?): quando os vê, ao longe, pensa em transformá-los em «espaço humano» ou «humanizado». Tudo estaria bem se se tratasse de melhorar os parques existentes, de «optimizar» o «espaço humano» já existente, de criar observatórios do parque (lugares para que se apreciassem as árvores, se ouvisse o vento, se pudessem ver as espécies botânicas), de impedir a circulação desnecessária por dentro do parque.
Mas a ideia portuguesa (que os rumores da Câmara de Lisboa confirmam) é a de que um parque, um bosque, uma floresta, é um lugar para ocupar com «equipamento de lazer» (restaurantes, feira popular, seja lá o que for). Essa ideia estapafúrdia não fez nenhum dos parques mais belos do mundo (de Bergen a Bali): só os destruiu paulatinamente, devagar ou depresa, mas decisivamente.
Um parque como o de Monsanto devia ser intocável numa cidade em ruínas, poluída e desagradável. Intocável significa, também, que devia ser entregue a quem percebe de parques e de florestas; e, se preciso, o parque deve ser defendido das pessoas. Dos utentes, como agora querem dizer, e que já têm muito que usar pela cidade fora, cheia de «equipamentos»; até acho aceitável que parte do parque seja fechado de noite à circulação. Um parque como o de Monsanto deve ser preservado para passeantes, observadores de pássaros, velhos, leitores deitados na relva, bicicletas, fotógrafos, excursões de miúdos das escolas. E até podia ter uma biblioteca, sim; e um observatório para astrónomos amadores. Mas não uma feira popular, barracas de hambúrgueres e farturas, um pavilhão de «desportos radicais», área de concertos ou parques de estacionamento. E devia ter cancelas para proteger (dos automobilistas) determinadas áreas. A velha ideia de que Monsanto é o pulmão de Lisboa não alegra ninguém; mas é verdadeira. Num pulmão não se toca; mantém-se vivo. Protege-se de tudo. Mesmo das pessoas. Sobretudo de pessoas que acham que um bosque, uma floresta, um parque, precisa de «equipamentos». Um parque precisa de árvores, guardas-florestais e silêncio. Isso é um parque.

março 09, 2004

CAVACO E PORTUGAL. O principal contributo que Cavaco Silva deu à democracia portuguesa, nas últimas semanas, foi o facto de ter escrito mais um livro. Há muito tempo que um livro não andava tanto nos estúdios de televisão, nos telejornais, nos debates da SIC-Notícias, nos jornais, até na boca de políticos que geralmente não lêem. Provavelmente não muita gente o lerá, mas isso é de somenos importância nesta altura (quando, daqui a semanas, Fernando Lima publicar o seu livro, falar-se-á mais do assunto). Mais: não é um livro de recolha de entrevistas, de crónicas avulsas ou de discursos. Não vejo, ali, muitos sinais de que será candidato; mas é curioso que tenha arrumado parte do seu passado.

SUBSCRIÇÃO PÚBLICA. O texto de Nuno Guerreiro sobre a questão do antisemitismo e Israel é muito bom. Subscrevo-o; publicamente. Inteiramente.

BOA NOTÍCIA. O blog do Público sobre as presidenciais americanas, com os textos do Pedro Ribeiro.

E PRONTO. [Actualizado, terça-feira, 23:34 h] E é assim. Depois do banho de bola no Porto, um duche bem frio para a rapaziada de Manchester. O sistema usado foi o habitual.

E, portanto, agradecem-se as felicitações da ordem.

março 08, 2004

A NOITE, O QUE É?, 44. O olhar de mármore. Lembro-me do verso quando vejo a luz da noite, quando oiço a voz, quando tento adormecer, quando reparo nas horas. Olhar assim. Aceita toda a felicidade de mim, coisas que não posso tocar e me prendem, a primeira luz da noite em vez da primeira luz do dia, o espírito das árvores, o vento respirando junto da terra, a poeira (os colibris), o silêncio, os livros espalhados sem literatura. Depois de esperar, adormeço? Depois de adormecer, perderei esse olhar, essa voz?

NAIDE GOMES. Na vitória de Naide Gomes, no pentatlo, há mais qualquer coisa de que me orgulho, sim, e que não consigo explicar: aquele desafio à palidez portuguesa.

EXAMES, NÃO-EXAMES, 3. Leio nos jornais uns discursos ininteligíveis sobre pedagogia: reconheço o tom, durante anos (quando ensinei) tive alunos que me mostraram a gramática dessa novilingua, mas reconheço pouco mais a não ser uma tentação de fuga. Admito que existam razões para recusar os exames, mas uma delas não é a de que existem «projectos educativos em curso», como sustenta o presidente de uma «confederação de pais» (tirar um bocadinho os pais da escola era prestar um grande favor ao ensino), que os exames vêm interromper. E outra não será, certamente, o facto de «a escolaridade obrigatória ser de 12 anos». Neste último caso, o argumento é absolutamente ininteligível: se a escolaridade obrigatória é de 12 anos, se um aluno chumba no 9.º ano, «o que se lhe faz»? Bom, talvez admitir que ele não estava preparado para o «novo ciclo» e que terá de se esforçar mais. A ideia de se «esforçar mais» há-de parecer paradoxal, porque o discurso da novilingua pedagógica tem desculpas para tudo; e o «chumbo» há-de parecer «traumatizante». A mim parece-me traumatizante ler de vez em quando os estudos sobre iliteracia.

março 07, 2004

EXAMES, NÃO-EXAMES, 2. Escreve Miguel Pinto, por mail: «A notícia que anuncia a intenção do ministro Justino em reeditar os exames para o 6º ano, restaura o ditado que diz qualquer coisa parecida com esta: “a galinha não fica mais pesada por continuarmos a colocá-la na balança.” A crença que comanda o ME é que a qualidade do sistema melhora com o aumento exponencial dos exames. Esta doença que alguém chamou um dia de “avaliatite” entrou no ministério da educação. A cura passa pelo afastamento compulsivo do ministro e dos seus assessores.»

LUNA, VOXX. Uma das grandes canções da minha história pessoal do rock é «Bad Day», dos R.E.M., e lembra-me o dia do desaparecimento da Luna (106.2 FM em Lisboa), que ouvia bastante, e da Voxx (91.6 FM), e a sua consequente passagem para a órbita de um grupo de playlists radiofónicas; é uma má notícia. Bad day nesta matéria.

EXAMES, NÃO-EXAMES. Acompanho à distância a discussão sobre os exames nacionais. Um dos argumentos dos que são contra a actual proposta de alargar o número de exames parece-me destituída de qualquer propósito: que eles não servem para melhorar a qualificação ou a qualidade dos estudantes. Claro que não. Mas são capazes de servir para todos (incluindo alunos) sabermos como anda essa qualidade. Fugir dos exames com argumentos destes obriga-nos a revisitar a parafernália de banalidades em que se transformaram as arengas dos políticos da educação desde que o Dr. Roberto Carneiro passou a chamar «aprendentes» aos alunos, festejando e autorizando, assim, pelo menos várias décadas de empobrecimento da escola.

SAMUEL JOHNSON. O Carlos/McGuffin deu-nos a ler algumas frases deliciosas do Dr. Johnson. Uma delas, não resisto a citá-la: «All intellectual improvement arises from leisure.» (O Carlos nem imagina a catástrofe que a sua citação causou...)

Não resisto a acrescentar duas, pelo menos:

[Em resposta à pergunta «o que é a poesia?»] «Why Sir, it is much easier to say what it is not. We all know what light is; but it is not easy to tell what it is.»

[No prefácio ao Dictionary of English Language, de 1775, e que bem poderia ser citada durante as discussões actuais sobre o ensino do Português] «The chief glory of every people arises from its authors.»

Não resisto a dar um argumento aos anglófonos para discussões de algibeira:

«A Frenchman must be always talking, whether he knows anything of the matter or not; an Englishman is content to say nothing, when he has nothing to say.»

março 06, 2004

ESCRIBA ACOCORADO. «Sentado na pedra de ti próprio,/ não tens rosto, senão o que,/ de anónimo, a ela afeiçoou/ a mão que assim te quis. Do resto,/ do que de individualidade, porventura,// em ti existiria, se encarregou/ a persistente erosão dos dias. [...] / Nesse olhar/ de não ver tudo se inscreve,/ repensa e adivinha: teus limites/ e, ainda, o que excederia tua humana// estatura. Sem contornos, em sombra/ e sono te diluis no que, de ti,/ nunca saberemos.» {Rui Knopfli}

AN ANCIENT SADNESS FALLING. «How to recall such music, when the street/ Darkens? Among the rain and stone places/ I find only an ancient sadness falling,/ Only hurrying and troubled faces,/ The walking of girls' vulnerable feet,/ The heart in its own endless silence kneeling.» {Philip Larkin}

UN VERSO PARA LA HORA TRISTE. «Dejar un verso para la hora triste/ que en el confín del día nos acecha,/ ligar tu nombre a su doliente fecha/ de oro y de vaga sombra.» {Jorge Luis Borges}

AND YOU'RE IN THE DARK AGAIN. «When you have nothing more to say, just drive/ For a day all around the peninsula./ The sky is tall as over a runway,/ The land without marks so you will not arrive// But pass through, though always skirting landfall./ At dusk, horizons drink down sea and hill,/ The ploughed field swallows the whitewashed gable/ And you're in the dark again. [...]» {Seamus Heaney}

março 04, 2004

JOEL DE REGRESSO. Meus amigos, aqui está uma data a festejar. Não só regressou ao blog como, ainda por cima, faz anos. O Joel regressou.

GEORG TRAKL. «À noite, no terraço, embriagámo-nos com vinho castanho./ Vermelho arde o pêssego na folhagem;/ Doce sonata, alegre riso./ Belo é o silêncio da noite.» {«[...] Schön ist die Stille der Nacht.», Georg Trakl, Outono Transfigurado, Tradução de João Barrento, edição Assírio & Alvim}

A NOITE, O QUE É, 43. De noite, a esta hora, qualquer música me afasta do medo, qualquer coisa me lembra a sombra da tarde, qualquer coisa, nem que fosse uma voz.

PORMENORES, 2. Vital Moreira lembra, a propósito desta questão, dois outros pormenores. Vamos a eles. Em primeiro lugar, cita a «visão negacionista da identidade palestiniana» como exclusiva da «extrema-direita israelita», e que estaria contida nas frases citadas pelo Alberto Gonçalves, para que eu chamei a atenção. Meu Caro Vital Moreira: não me parece. Essas frases estão correctamente citadas e as suas fontes correctamente identificadas; cada uma delas tem, digamos, um autor. Esse é um ponto a que dificilmente fugiremos ambos. Não vejo ali nenhum autor cuja origem seja a extrema-direita israelita. Pelo contrário, alguns deles ocuparam depois cargos importantes quer na estrutura dos movimentos palestinianos, quer na Liga Árabe, quer em estados vizinhos de Israel (não menciono Bernard Lewis nessa lista). Essa visão negacionista da autoridade palestiniana não é exclusiva da «extrema-direita israelita»; foi nela que se fundou outro maior negacionismo, o do próprio estado palestiniano, que os estados árabes vizinhos se recusaram a autorizar em 1948. Curiosamente, essas posições mantêm-se até pouco depois da fundação da própria OLP. Onde se prova que a lógica dos partidos haredim, da direita ultra-ortodoxa israelita (e que já aqui comentei, critiquei e por aí fora), do Shaas ao PNR/NRP, é muito semelhante à dos autores dessas frases. Mas onde se prova exactamente o contrário, numa lógica perversa, que é aquela que tem comandado os debates sobre o caos do Médio Oriente: os autores dessas frases deram ideias aos partidos haredim, ao Shaas e ao PNR/NRP.
Em segundo lugar, meu Caro Vital Moreira, há como que uma não-referência, no seu comentário, e que pode parecer coisa ligeira e anedótica; mas não é: ao referir a tentação do Grande Israel, que os finais da década de sessenta reabilitaram (escuso de citar textos anteriores deste blog), depois da Guerra dos Seis Dias, esquece que é esse mapa, precisamente, o símbolo do estado palestiniano em documentos oficiais, na farda de Arafat, em sites da internet, nos textos da OLP e de muitos documentos da AP: um território que vai do Jordão ao Mediterrâneo.
Nisto, cairíamos na chamada elocubração adversativa, ou seja: nunca citaríamos um argumento sem que o outro dissesse, logo a seguir, «sim, mas o contrário também existe», e assim por uma larga eternidade, que é o tempo em que já deveríamos ter concluído essa «discussão despreconceituosa do conflito israelo-palestiniano», como escreve. Não se pode é, creio eu, invocar o mal de um só lado quando se fala deste assunto. Isto, podemos dizê-lo em qualquer lugar de Israel.

março 03, 2004

O MAR NA CABEÇA. O Possidónio Cachapa comemora um ano do seu blog. E justifica todas as nuvens de Inverno, todo o cinzento do céu: «No Inverno os pássaros têm dificuldades em saber o que está no alto.»

A NOITE, O QUE É?, 42. Tudo o que esqueço, lembro depois à medida que espero, no meio da noite, a meio da noite. Não as coisas uma a uma, mas uma poeira arrastada pelo vento, fotografias a sépia, movimentos, aromas (café, flores, mangas, ou aquele que vem dos armários, o que fica na varanda), pequenas explosões, letras desenhadas em papéis soltos. Encontramo-nos nos sonhos enquanto não nos encontramos.

PORTUGAL! PORTUGAL! Vi, pelas televisões, há uns tempos, que a TAP baptizara um avião com o nome Eusébio, em honra do Euro2004. Coincidência: o avião teve problemas logo a seguir. Soube entretanto, pelo Abrupto, que a TAP tinha, afinal, mudado o nome ao avião Vianna da Mota para lhe vestir a nova pele de Eusébio. Ora, há neste pormenor de marketing futebolístico um problema mais sério. A rasura do nome do autor da sinfonia À Pátria e da Balada op. 16 significa uma doença mais grave.

TORRES, TORRES! Tenho andado arredado. Vi as imagens do presidente da Câmara de Marco de Canaveses só na segunda-feira e, à hora dos telejornais, estava ocupado. Mas há questões interessantes: 1) porque é que o cavalheiro não foi detido e guardado até ser presente em tribunal?; 2) porque é que aquela demonstração de hooliganismo teria de ser entregue «à justiça desportiva» (à quê?); 3) porque é que o pessoal dos «partidos da maioria» não disse o que era bom que fosse dito logo na altura?; 4) porque é que está tudo tão pesaroso quando comenta aquela alarvidade e não desata tudo a rir?; 5) porque é que o dr. Sampaio diz que o futebol etc., etc., etc., e o dr. Barroso diz que o fair-play, etc., etc., etc.?

Há outras perguntas simpáticas: porque é que o homem se fartou de mencionar que «o copo estava cheio» e ninguém o mandou fazer o teste do balão?

PORMENORES. O Alberto Gonçalves decidiu chamar a atenção para alguns pormenores acerca da designação «Palestina».

POLÍTCIA & BUSINESS AS USUAL. Maira Parula, do brasileiro Prosa Caótica relembra uma crónica de Paulo Francis em que ele conta um episódio muito edificante: «Os industriais queriam artigos diários que pressionassem o governo. Hesse explicou-lhes, paciente, que semanalmente era melhor: "Os motivos são psicológicos e técnicos. Sai um numa semana. É comentado, discutido. A ausência, nos dias seguintes, saliva o apetite dos que nos apóiam, aumenta o debate e a platéia do próximo. O governo ganha tempo, porém fica inquieto, à espera de novos argumentos. Prefere não responder antes que tudo venha à luz, o que é, falando nisso, a única tática certa, do lado dele. Se soltarmos a bola de uma vez, acabaremos nos repetindo, cansando nosso público e diluindo o incentivo à divulgação de boca, e avançando demais terminaremos expondo algum flanco a um contra-ataque de Brasília, que, afinal, dispõe de um grupo culto de economistas. O negócio é mantê-los na ansiedade, na defensiva, tontos. (...) se o jornal ficasse todo dia no assunto (...) perderíamos acesso a nossos amigos nos ministérios (...) o que não nos interessa ou às classes produtoras, pois nosso objetivo é persuadir e não irritar. (...) A nossa estratégia, acreditem, é a correta."» O texto de Paulo Francis vem em Cabeça de Papel.

REGRESSO. E regressou, felizmente, A Formiga de Langton.

BLASFÉMIAS. Interromperam a sua existência o Mata-Mouros, o Cataláxia e o Cidadão Livre, que se reuniram (com mais dois contributos adicionais) no Blasfémias. Aí está um título e tanto.

A CHINA, PECADOS MEUS. O Paulo Gorjão, que acaba de publicar um interessante texto no Asia Times («Why Indonesia should influence Iran», matéria em que é, decididamente, um analista sério), assinala a ida de Teresa Gouveia à China. E logo à China, como se vê. Depois de termos entrado em picardias há uns tempos (textos «China» e «China, 2») sobre as declarações de Guterres, que foi a Pequim em nome da Internacional Socialista, irónico, e com toda a razão, o Paulo escreve que «certamente para tristeza de FJV, a expressão "direitos humanos" parece que não irá fazer parte da agenda». É verdade que não faz. Mas, provavelmente, não anunciará «uma convergência muito relevante», ou «larga convergência» em relação «aos desafios da globalização» e à reforma das Nações Unidas.

BLOGOALMA. Eu não sofro com estados de alma. E, já que se trata de falar disso, nunca na blogosfera; o «intimismo» não significa «demasiada intimidade». Escrevo, simplesmente, sobre o que me apetece – e até onde me parece que vão os meus limites; é sempre matéria pessoal. Disse-o sempre, desde o princípio. Não estou para fazer audiências nem para evangelizar. Nada de especial, de resto; esta posição é comum à maioria dos blogs e é essa uma das qualidades da blogosfera. Alguns blogs comentaram a minha citação sobre o «patrulhamento ideológico» (utilizo a expressão brasileira, que nasceu durante a ditadura, quando a linguagem era mais do que vigiada e as frases mereciam punição; se quiserem voltaremos a ela); dos comentários mais «negativos» escolho apenas responder ao Cruzes Canhoto, em atenção ao seu próprio blog, uma das minhas leituras permanentes. Diz o J: «É certo que a alguns, que antes louvavam a massa crítica e o debate, convém agora falar de "acidez" e "patrulhamento ideológico" porque, simplesmente, esse mesmo debate e massa crítica já não lhes convêm.» Evidentemente que a evocação da «acidez» se refere ao J. Pacheco Pereira; a ideia do «patrulhamento ideológico», sim, tem a ver comigo. Ora bem. Se eu me lembro, desde os primeiros debates sobre «a condição da blogosfera», no Verão passado, se algum blog (não isoladamente, claro, mas em boa companhia) esteve tão marcadamente nas tintas, e o escreveu, para a «agenda», o «estatuto editorial», o «alinhamento», o «meter na ordem», o «controle», foi o Aviz. Ponto um. Meu caro: qualquer debate e qualquer «massa crítica» me convêm, agora e em qualquer estação do ano. Nessa, como em outras matérias, qualquer regra é um estorvo escusado; acredito muito mais na tolerância do que em qualquer outra coisa. Portanto, não me convém agora falar de «patrulhamento ideológico»; sempre falei; e sempre houve – depende dos interesses, das inclinações e dos combates que cada um quer travar. Eu não estou para travar nenhum combate; lamento. Escrevo. Só estou a escrever com inteira liberdade, defendendo liberdade absoluta para que toda a gente escreva. Não tenho jeito para mandarim. Há espaço para eles, sim, tanto quanto para os blogs que se limitam a existir, escrevendo sobre o que lhes apetece ou para aqueles que acham que está a nascer uma coisa absolutamente nova e se mostram mais empenhados a reivindicá-lo. Nessa medida, sim, acho que eles são um contrapoder, como escreve o Cruzes Canhoto. Mas a sua verdadeira legitimidade (para citar um dos termos usados no texto do J) é essa: existirem, serem visitados, serem uma espécie de «leitura subterrânea» que os média muitas vezes fazem de conta que não existe. A sua legitimidade ou o seu ar de contrapoder não lhes chega pelo facto de tratarem ou de seguirem a agenda das notícias, embora esse também seja um aspecto importante. Sinceramente, pela parte que me toca (é essa a minha opinião, absolutamente discutível), aprecio nos blogs é o facto de terem mudado a agenda banal das nossas leituras diárias, ou de, pelo menos, lhe terem sonegado o seu ar de totalidade, de absoluto, como se fora dessa agenda não existisse mais nada. Principalmente quando foram os blogs que revelaram que, ao lado do mundo dos bonzos, dos empertigados e dos mandarins (da imprensa e da política, o mais visível), havia portugueses inteligentes, cultos, que sabiam escrever bem, que discutiam com elegância e com liberdade. E que a política – a política propriamente dita – não era apenas coisa de quem quer ser deputado, director-geral, «jota» em promoção, vereador ou candidato a presidente. Sinceramente, se houve algum universo onde a política também se fez de ideias (generosas ou não, sérias ou não), foi nos blogs. E sem repetir piadas estafadas e rápidas (ou alarves) sobre as gaffes da cavalheirada dos conselhos nacionais dos partidos.
De resto, acredito nesse mercado invisível, que é a sobrevivência dentro da blogosfera. Não tenho, sobre isso, estados de alma, sobre se o blog acaba ou continua, se acelera ou desacelera. E também não me incomoda que outros a manifestem. Anarquia total nessa matéria, sim; é barato e produtivo. E se algum dia decidir terminar a vida do Aviz – por achar que não estou para isto, ou porque não tenho tempo, ou porque decidi ser treinador do Fluminense ou do Vitória Bahia – acabo mesmo, e sem dramas, tragédias ou estados de alma. Porque acabou. Porque não estou a travar nenhum combate. A minha vida, hoje em dia, também depende do blog, sim (faz parte dela; e uma parte dela faz parte do blog, talvez), mas depende também de outras coisas, mais importantes ou menos importantes; é uma coisa entre mim e a minha vida. Por isso, cada um escolhe os seus caminhos, caro J. Sabe porque é que eu falava de «surdez», outro dia (e lamento se não foi explícito)? Porque, fundamentalmente, ninguém aprende a falar sem aprender a ouvir. Quem tem todas as certezas e o mundo muito arrumadinho, dividido entre «o que é bom (ou permitido, ou festejável)» e «o que é mau (ou interdito, ou a punir)», não costuma ouvir o outro lado. E, nesse caso, faz patrulha, sim: põe-se a vigiar os deslizes dos outros (e a reconstituir cada contradição, a criar «eixos do mal» e «eixos do bem»). Sobretudo os seus deslizes ideológicos. Admito que se fica muito mais satisfeito nesse quadro, claro; mas perdem-se vozes que dizem coisas, sobretudo vozes desconhecidas, que são geralmente as mais importantes.

março 02, 2004

CAIO FERNANDO ABREU E TAXITRAMAS. Por recomendação amiga, que agradeço, cheguei a um mais um blog brasileiro (e gaúcho, pelo que se vê) muito legível, o Taxitramas. É de lá que retiro este texto sobre Caio Fernando Abreu, um escritor a visitar:
Caio Fernando Abreu: «Recentemente, abriu uma pastelaria aqui ao lado do meu ponto. O proprietário, para saudar a vizinhança, colocou uma faixa na frente do estabelecimento que diz o seguinte: Moro no Menino Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há em volta. A frase é do escritor Caio Fernando Abreu, antigo morador do bairro, que morreu de AIDS em meados da década de noventa. Ele pegava táxi aqui no meu ponto quase que diariamente. Como li alguns de seus livros, aproveitava as corridas para uma tietagem amiga. Ele gostava. Era uma pessoa amável e alegre, apesar da doença que o consumia. Usava uma bandana na cabeça, ao estilo Cazuza, para disfarçar a perda de cabelo. Era uma época difícil para os portadores do vírus HIV. Debilitados, tinham pouco tempo de vida, em geral às voltas com tratamentos penosos. O coquetel veio muito depois. Lembro que um dia ele pegou meu táxi para uma de tantas corridas para o Hospital da PUC. Informei-o, que havia visto um outdoor com o anúncio de seu último livro. Curioso, ele me pediu que o levasse até lá para dar uma olhada. Lembro que parei na Av. Silva Só em frente ao enorme painel. Ele ficou observando por algum tempo sem sair do carro. Acho que não gostou do que viu. Depois, sem comentários, pediu que o levasse para o hospital. Foi a última vez que o ví. Dias mais tarde soube pela imprensa que havia morrido. Acho que, se estivesse vivo, Caio Fernando Abreu gostaria de ver sua frase na fachada da pastelaria. Era um cara do bem. Talvez, até sentasse em uma de suas mesas em um fim de tarde qualquer e, entre um chope e outro, elaborasse mais um de seus contos fantásticos. Contos que um dia fizeram um taxista sonhar em ser escritor como ele.»