OS COMPAGNONS DE ROUTE E O DESERTO À VOLTA. Há muito tempo que a esquerda não admirava desta maneira (e durante tanto tempo) tanta gente de direita. Compreende-se, embora Freitas do Amaral deixasse de ser importante há muito tempo, para qualquer dos lados. Agora, é o ataque a Cavaco, convidado para «o jantar». Esta operação tem um inspirador e armador: Mário Soares. O «gajo», Cavaco, agora é útil. Por isso é tão irritante essa conversa mole, barata, sobre a «magistratura de influência», os «senadores da República», as «velhas glórias». Diante do vazio do deserto (apregoado e criado por Soares), até as ruínas parecem brilhar com um esplendor raro. A doutrina, basicamente, assenta sobre o ressentimento diante dos «tempos modernos» e não há que negar-lhe uma certa razão, vista a mediocridade actual, o nível baixo por que se alinha a rapaziada. Mas, lá atrás, não consegue esconder a sua tentação: conquistar um lugar na eternidade. Uma estátua vê-se mais claramente no meio do deserto.
Aviz
«We have no more beginnings.» [ George Steiner ]
novembro 30, 2004
ELEIÇÕES, TALVEZ, 2. E mais: se o presidente convocar eleições apenas nessas circunstâncias, saltará à vista a jogatana preparatória que conduziu a essa decisão. Ou seja, que se andou a perder tempo para beneficiar um dos lados do tabuleiro. Os eleitores compreendem a natureza da realpolitik, mas também percebem quando fazem deles gato-sapato e quem foi beneficiado com a batota. Isto aconteceu exactamente antes da queda de Guterres, quando Durão Barroso não se decidia a pedir eleições antecipadas ou a chumbar o orçamento, posições incompreensíveis se tivermos em conta a natureza do seu discurso de então. Sócrates, percebe-se, não quer eleições já -- mas pede o fim do governo. Não sei como se há-de conciliar uma coisa com a outra.
ELEIÇÕES, TALVEZ NÃO. Caro Paulo Gorjão: compreendo este argumento e os outros que enumera acerca da hipótese de eleições antecipadas, nomeadamente quando escreve: «Duvido que Jorge Sampaio queira dissolver de imediato o Parlamento. Do seu ponto de vista e da perspectiva do PS não há nenhuma urgência em derrubar Santana Lopes.» E também compreendo este princípio geral: «Não é apenas o PS (ou parte dele) que não deseja -- ainda -- eleições antecipadas. Há também uma parte significativa do PSD que não tem pressa e que deseja que o Governo bata bem fundo.» A questão é que é exactamente isso que me preocupa. Porque foi ponderando razões semelhantes que o presidente não convocou eleições quando as devia ter convocado. O problema é que, com toda a probabilidade, Santana teria ganho a Ferro, eu sei.
O que me preocupa é que seja necessário esperar pela realização das Novas Fronteiras, ou da reorganização do PCP, ou do congresso do BE, ou de uma candidatura contra Santana Lopes dentro do PSD, para decidir se convoca ou não eleições. Esse argumento é tão «bom» como o que diz que não deve haver eleições porque a execução orçamental ficava em águas duodecimais. Compreendo a natureza prática e estratégica desses argumentos. Que só provam (também) que Jorge Sampaio, quando decide uma coisa, decide também o seu contrário.
AL-MANAR EM FRANÇA, PARTE TRÊS. A Radio France Internationale fala sobre o mesmo assunto:
Hier, François Hollande, le premier secrétaire du parti socialiste, a écrit au CSA pour lui demander les raisons qui l’ont conduit à autoriser cette chaîne qui : «diffuse en boucle durant des heures des clips incitant les enfants à la haine et au martyre». [...] Dans certains épisodes diffusés pendant le Ramadan 2003, on pouvait voir un rabbin faire égorger un enfant chrétien afin de fabriquer du pain azyme confectionné à partir de son sang. La cassette est vite arrivée sur le bureau du Premier ministre Jean-Pierre Raffarin et le CSA a alors demandé au Conseil d’Etat de se prononcer afin d’empêcher Eutelsat, société française, de distribuer la chaîne sur l’Europe. Seulement voilà, après plusieurs mois d’instruction, le Conseil d’Etat a jugé que le seul moyen de contrôler la chaîne, c’était paradoxalement de la faire conventionner par le CSA. Cela permettra demain à Al Manar d’être distribuée sur le câble, Canalsatellite ou TPS. [...] Mohammed Haïda, président d’Al Manar, a affirmé au Figaro qu’il ne prévoyait pas de modifications substantielles de ses programmes.
AL-MANAR EM FRANÇA, PARTE DOIS. É o artigo de Sylvain Attal no Liberation: «Bienvenue sur Al-Manar, chaîne judéophobe». Uma passagem:
La chaîne de télévision libanaise du Hezbollah était déjà accessible via le satellite Arabsat. Elle sera bientôt disponible sur les opérateurs câble et satellite tels que CanalSatellite ou TPS, au même titre (par exemple) que LCI, Planète ou Pink TV. A moins qu'elle ne soit proposée gratuitement...
Le CSA l'a voulu. En effet, en échange d'un engagement de pure forme et dont la réalité de l'exécution sera de facto invérifiable, Al-Manar, qui avait tant choqué le gouvernement français pour avoir diffusé, lors du ramadan 2003, le feuilleton antisémite Al-Shatat («Diaspora»), inspiré des Protocoles des sages de Sion, se voit intronisé dans notre paysage audiovisuel national. Les leçons à tirer de ce revirement sont multiples. La première est qu'il s'agit d'une nouvelle mesure d'apaisement en direction des promoteurs du terrorisme, qu'il s'agisse d'enlèvements ou d'opérations-suicides. [...] Contentons-nous de constater le sort de nos otages depuis que la France a mis à profit ses «bonnes relations avec le monde arabe», y compris avec des mouvements comme le Hezbollah, que Paris s'obstine à ne considérer que comme un «mouvement politique et spirituel disposant de députés au Parlement libanais». Le Hezbollah est tout cela, mais c'est aujourd'hui surtout une organisation dont, notamment à travers sa chaîne de télévision, le fonds de commerce est l'apologie des opérations-suicides contre les civils israéliens, considérés comme des combattants. «Le mérite [de ces opérations] est de nous redonner espoir, disait le 8 avril 2004 sur Al-Manar, l'un des principaux dirigeants des Frères musulmans. Une nation qui n'excelle pas dans l'industrie de la mort ne mérite pas de vivre.»
Todo o texto aqui.
novembro 29, 2004
BRASIL. Há uma lógica perversa nisto tudo: Lula ganha eleições pela esquerda, com promessas de virar o país do avesso e de fazer reformas amplamente prometidas pela propaganda eleitoral do PT. Não fez nada disso. O novo governo, além de prolongar e alargar o poder do ministro Palocci, retira autoridade a Dirceu e consubstancia uma aliança com Sarney e o pior do PMDB e antigos apoiantes de Collor. Por um lado, a direita devia acusá-lo de demagogia pura e simples (e, a Palocci, processá-lo por apropriação indevida e abusiva do programa do PSDB e do governo de FHC); mas por outro lado (ou: por este caminho), é provável que Lula não seja reeleito em 2006.
ELEIÇÕES. O Paulo Gorjão constrói um cenário para a não realização de eleições. A questão, no entanto, parece-me simples: erradamente, o presidente da República não convocou eleições antecipadas quando o deveria ter feito (continuo a dizer que isso beneficiou o PS). Provou-se que o governo de Santana Lopes não é o governo dos que votaram PSD e elegeram Durão Barroso (como, aliás, algumas almas escreveram logo). Neste momento, o governo não tem -- sem desculpas adicionais -- margem de manobra para falar de estabilidade; o «caso Henrique Chaves» não se enquadra no retrato de uma demissão pura e simples; pelo contrário, é o culminar de um processo de «desmoralização» e de perdas sucessivas de autoridade por parte do próprio governo.
novembro 26, 2004
MADRUGAR. Não. Acordar às seis e meia da manhã, ver o resto da lua em cima do Douro, a Foz ali ao lado, um frio dos diabos -- é bom; o meu médico diria que era saudável, que um pequeno-almoço a sério é fundamental (ah!, estas frases...) e que só se deve fumar o primeiro cigarro lá pelas onze. Mas também não é bom. Nada bom.
novembro 25, 2004
NUNO JÚDICE. «Foi nisto que acreditei durante alguns anos em que a questão da morte me pareceu fazer parte dos problemas que apenas atormentam a burguesia, que os inventa para alienar os explorados da sua realidade, e da necessidade de romper as cadeias da opressão. Foi isto que aprendi na leitura de Politzer; e só mais tarde descobri que o conceito de alienação, afinal, era um falso instrumento que a leitura dos manuscritos de Marx, de mil oitocentos e quarenta e quatro, desmascarou por completo. Afinal, Marx também tivera a sua fase idealista, e esse idealismo não era incompatível com a Revolução que o Manifesto Comunista de quarenta e sete vinha propor. Podia, por isso, pôr de parte todos os pormenores de uma realidade que envolvia o meu tio-bisavô, o criminoso José Cravo, Marta, que se chamava Júlia, o patrão, a explicadora de francês, a noiva, enfim, todos os protagonistas de um conflito que pouco mais é do que uma gota de água no vasto pano de fundo em que proletariado, campesinato e burguesia se afrontavam no campo de batalha da luta de classes.»
Nuno Júdice, O Anjo da Tempestade. (Dom Quixote)
ESCLARECIMENTO. Meu caro Carlos: espero que no próximo dia 5 estas coisas, e estas, e estas ainda, sejam devidamente esclarecidas. E logo nas entradas.
ORGÂNICOS, 2. Continua a escrever-se sobre «a questão Pedro Mexia» e o seu artigo no DN. Ora, não faltava mais nada que se exigisse ao Pedro, ou a quem for, algum tipo de «lealdade orgânica» (os termos são adaptados do texto do José Bourbon Ribeiro no O Acidental) que se possa confundir com «defender a asneira até à inanição». O mal não é exclusivo da direita, longe disso -- e os principais exemplos até vêm da esquerda, com a histórica «lealdade orgânica» dos intelectuais ao comunismo e a outras «frentes de combate». Simplesmente, os orgânicos de que muitas vezes se rodeia nunca são grande exemplos. Era bom que, de vez em quando -- sem exageros, evidentemente, não convém dar muita trela a intelectuais -- olhasse sem «preocupações orgânicas» para os textos e os combates de gente como o Pedro Mexia. A menos que os sacerdotes só leiam os Actos dos Apóstolos, evidentemente.
O ESTADO ESCLARECIDO, 2. Escrevi outro dia: «O ministro Henrique Chaves recebeu uma delegação de um clube de futebol que foi queixar-se das arbitragens [...]» Parece que, afinal, o ministro se recusou a ver o DVD de queixas que a delegação futebolística lhe levava. Isso é bom. Só que, à saída da audiência ministerial, a delegação mencionara que tinha falado das arbitragens com o ministro. Portanto, mentiu descaradamente à frente do ministério. Há gente com quem não convém o sr. ministro meter-se.
Juan Rulfo
DO USO DAS METÁFORAS, 2. O Seta Despedida está (na sua Comunidade de Leitores) a fazer a leitura de um livro fundador, Pedro Páramo, de Juan Rulfo: «Quanto mais nos envolvemos numa obra, mais angústia sentimos. Começamos a interpretar, e isso é uma atitude defensiva que pouco tem a ver com o prazer. Seguiu-se alguma polémica mais ou menos apaixonada, com outras pessoas a defenderem entusiasticamente a possibilidade do prazer intelectual. E, lá para o fim da reunião, houve mesmo alguém, inequívoco leitor voraz, que sentiu a necessidade urgente de confessar que em toda a vida só tinha conseguido retirar prazer da leitura de dois livros.» Acontece que Pedro Páramo não pode ser lido do ponto de vista dos modelos de interpretação ocidentais. Nem se pode discutir se aqueles mortos estão mortos ou se os mortos são metáforas, estando lá em vez de outra coisa qualquer. Acontece que aqueles mortos estão mortos. Quando se diz que os anjos cantam queremos dizer que eles, de facto, estão a cantar. É um ruído assustador, o de certos livros.
DO USO DAS METÁFORAS. «Quando se diz que os anjos cantam, é isso que se quer dizer – que eles cantam.» [Alexandre Soares Silva]
ORGÂNICOS. Pedro Mexia escreveu um texto no DN, na secção «Geração de 70». José Bourbon Ribeiro discorda e, portanto, chamou aos da Geração de 70 «velhos rabugentos sem identidade nem lealdade orgânica». Ora, ser um velho rabujento ou um tipo sem lealdade orgânica só me parece ser um elogio.
DE TODA A VIDA LEVAREI. Os encontros, naturalmente. Uma pessoa passa uma parte da vida (até substancial, reconheço) a embirrar com pessoas que não conhece. Depois, um dia, passa horas a conversar. E fica-se muito próximo. Isto é desconcertante. Não merecíamos.
novembro 24, 2004
TRIGO LIMPO. O primeiro-ministro, na televisão, disse a certa altura que era um «realista-optimista». Há muito tempo que não ouvia uma contradição tão flagrante, dadas as circunstâncias.
No restante, quem estava convencido, ficou convencido. O que traduz, bem vistas as coisas, a diferença entre o mundo em que as pessoas vivem e o mundo em que as pessoas andam.
REESCREVER A HISTÓRIA. Um grupo de advogados gregos decidiu processar a Warner e Oliver Stone «for suggesting Alexander the Great was bisexual».
EUROCÉPTICO. Eu, que sou europeu convicto, também sou eurocéptico. Faço um certo esforço para compreender a natureza deste referendo e cada vez lhe vejo menos utilidade, a não ser do ponto de vista formal. Ele servirá para legitimar o que já não pode voltar atrás. Portanto, de céptico vou a pessimista – e, salvo erro, a antipatriota. Mas a verdade é que já está escrito.
O ESTADO ESCLARECIDO. O ministro Henrique Chaves recebeu uma delegação de um clube de futebol que foi queixar-se das arbitragens ou lá o que é e, portanto, esclarecer o Estado sobre tão elevado e importante assunto. O ministro Daniel Sanches recebeu a mesma delegação de um clube de futebol que foi esclarecer o Estado sobre a forma como se organizou a segurança num jogo de futebol, e creio que pedir satisfações ao ministro sobre umas declarações de há umas semanas. A isto chegámos.
novembro 23, 2004
JUCA CHAVES. Juca Chaves regressa à actividade. Menestrel, jogral, vândalo, vagabundo, judeu errante de todos os maus humores – eu sou um admirador de Juca Chaves. Desta vez, Juca está no bar do Fasano (o Baretto), um hotel chique (chiquíssimo) bem no centro de São Paulo. Já o vi actuar no ruído do Rio («Juca Chaves, o Menestrel Carioca», não era?) entre malandros e desalinhados. À sua volta, Juca semeou uma vasta «legião de desafectos», mas o seu riso malcriado e fescenino, que brincou às escondidas com a ditadura e com a pequena moral democrática, permanece e ecoa como uma ameaça. Qualquer um pode ser atingido. Ele inventou a stand-up comedy brasileira, de facto. No ano passado, em Setembro, não cheguei a ver o seu show no Teatro Anne Frank, A Hebraica, onde ia apresentar modinhas, serestas e trovas tradicionais, mas tenho uma gravação de «Que Saudade» e «A Cúmplice», que anda perdida mas hei-de encontrar no meio de LPs cheios de pó. Mas descansem: neste show do Fasano ele só vai cantar.
A GEOGRAFIA DA CIVILIZAÇÃO. Como se sabe, a geografia é uma ciência reaccionária (apud David Landes). Concordo. Só assim se explica que os dois graus que estão lá fora me obriguem a pensar nos trópicos e nos Verões eternos. As temperaturas «moderadas» fizeram-se para que se possa trabalhar à mesma hora a que outras civilizações preguiçam e se dedicam à sesta, à contemplação, ao sexo e às leituras perniciosas. Só assim se explica, igualmente, que se gaste uma noite a ver o dr. Santana Lopes na televisão, em vez de estar dependurado numa varanda a ouvir Van Morrison a cantar «Wasted Years» ou, vá lá, The Kings of Convenience.
DESAMOR. Um dos livros mais deliciosos da temporada é uma pequena preciosidade de um jovem escritor de Leiria, António Gregório (edição da Ambar). Segundo Gregório, o desamor é tão kitsch como o amor. Recomendo bastante.
VALTER HUGO MÃE. Ou me engano muito (o que acontece muitas vezes, quando se está sob a influência dos deuses da leitura sôfrega) ou o romance O Nosso Reino, de Valter Hugo Mãe (edição Temas e Debates), é uma das maravilhas deste final de ano. Se tivesse sido publicado nos anos setenta seria mais uma vítima do realismo mágico latino-americano; hoje, é uma fenda no meio do céu. Uma ventania.
novembro 22, 2004
HÁ RAZÕES SÉRIAS. O presidente Sampaio vetou a central de informações com base nas dificuldades financeiras do País. Que vergonha.
CAUSA NOSSA. Um ano de Causa Nossa deve festejar-se. Discordando de algumas das suas posições e opiniões, ou concordando com algumas delas, há no Causa um interlocutor e um índice de civilização que fazem falta ao universo dos blogs portugueses. Parabéns. Sinceros.
novembro 21, 2004
BRASIL. Limpeza. Saída de Carlos Lessa, o dinossaurus brasiliensis que estava à frente do BNDES e que dizia que as críticas à sua actuação eram como se a «turma do Fluminense» assobiasse o Flamengo; de Cássio Casseb, do Banco do Brasil, que também esteve envolvido na compra, em nome do BB, de ingressos para o concerto de angariação de fundos para o PT; do secretário de imprensa, Ricardo Kotsho, que um dia destes defenderia a expulsão de todos os correspondentes estrangeiros que enviassem notícias desfavoráveis a Lula ou ao PT, e que, de alguma forma também esteve envolvido no processo de censura do texto de Gilberto Gil no site da presidência, de modo a torná-la mais «conforme» à ortodoxia; e do assessor especial Frei Betto, o génio cujos deírios merecem antologia.
DAS QUESTÕES ESTRATÉGICAS. Li o relatório da AACS sobre o caso Marcelo. Não foi a montanha a parir um rato; foi a montanha, propriamente dita, que se transformou num rato. Uma pena. Porque o caso Marcelo configurava, de facto, um acto de censura deliberado – só que o relatório da AACS o desvalorizou quase totalmente ao tentar encontrar, a partir dele, os sinais de uma conspiração geral e planeada. Não existe esse plano: é tudo ad hoc, é tudo conforme as conveniências, tudo medíocre. Tudo a ficar pelo caminho.
CONSPIRAÇÃO. Dia 5, ao que parece, é o dia da grande conspiração. Private joke, naturalmente.
[E nunca menos do que isto.]
QUESTÕES DE SEGURANÇA. Muita gente me pergunta se é seguro viver no Brasil; ou, de outra forma, se não há problemas de segurança no Brasil, se podem ir de férias para o Brasil. Depois, pergunto-lhes se é seguro viver em Beja, por exemplo.
POIS. O Superflumina escreve sobre a autorização para que o canal de televisão do Hezbollah, Al-Manar, seja emitido em França por cabo. Os responsáveis do canal comprometeram-se a aceitar as determinações do Conseil Supérieur de l'Audiovisuel (CSA) sobre anti-semitismo, apelo à violência, etc. (ou seja, «à ne pas inciter à la haine, à la violence ou à la discrimination pour des raisons de race, de sexe, de religion ou de nationalité»). A vida tem um preço, como se sabe, nomeadamente a dos reféns franceses raptados por amigos do Hezbollah.
novembro 20, 2004
SEJA SAUDÁVEL, 3. O bom Ricardo Oliveira, por mail:
«Eu até percebo que pessoas que sempre fumaram a vida toda se sintam ofendidas com esta nova lei. (Uma das cenas mais deprimentes a que já assisti foi ver a minha mãe, num Aeroporto qualquer, a querer fumar um cigarro e ter que o fazer num cantinho escondido, juntamente com outros dois criminosos). A verdade é que a vossa indignação, para os não-fumadores (entre os quais eu me incluo), faz tanto sentido como reagirem a uma eventual “Proibição de bater nas pessoas” com um “Claro, não podemos... E qualquer dia nem cuspir podemos. Vêm polícias que nos obrigam a respeitar as pessoas, a não as incomodar. Vai haver agentes que nos impedem de insultar um gajo qualquer...” Garanto-lhe, como filho e irmão de fumadores, que não há nada mais incomodativo do que levar com o fumo de um cigarro. Nem que isso fizesse bem à saúde, quanto mais!...»Caro Ricardo: eu não costumo andar por aí, pelas ruas, pelos estádios de futebol e pelos autocarros suburbanos, a bater nas pessoas. E não me lamento por existir uma lei que me proíba de exercitar os dotes pugilísticos à solta e à vontade. Também não fumo em hospitais nem em escolas. Até me vanglorio, hoje com dúvidas sérias, de na redacção da Grande Reportagem ter sido decretado o fim do tabaco porque havia uma designer grávida (foram os jornalistas, quase todos fumadores, que o decidiram por unanimidade) -- e vínhamos todos intoxicar-nos para o corredor, junto de um cinzeiro que colocámos lá. Também não fumo onde me dizem ser proibido fumar. Nem nos aeroportos nem em casa de amigos não-fumadores (confesso que, neste último caso, me escuso a ir, porque são geralmente pessoas muito impositivas e chatas de aturar). Mas não aceito que me criminalizem e me metam numa «sala de chuto». O que está a acontecer é a crescente criminalização do acto de puxar por um cigarro ou um charuto, em nome de uma moral certamente duvidosa e com certeza hipócrita. A TAP abriu um concurso de pessoal onde dava preferência a não-fumadores; acho isso uma criminalização absurda e ilegal; tenho ouvido falar pouco disso e o sindicato indígena não se manifestou.
Proibir o tabaco em bares e restaurantes é perseguir um dos locais de convivialidade onde, até agora, não havia conflitos de maior; basta existir uma área livre de fumadores e uma área de fumadores onde, depois de jantar, as pessoas possam fumar um charuto ou um cigarro e beber um álcool com o café. Um fumador não é um ser alienígena que está sempre a fumar, mas tem direito a fumar o seu cigarro, a saborear o seu charuto, e a não ser criminalizado por isso. Eu sei que a cocaína é mais clean em matéria de drogas, mas sinusites antigas impedem-me de tentar, lamento; prefiro que me deixem acender um charuto depois de jantar com amigos que não se importam que eu fume. E prefiro chamar palermas (como já escrevi no JN desta quinta-feira) aos autores desta proposta de lei. E, se quer saber, Caro Ricardo, a «nossa» indignação (falo pela minha) para os não fumadores, é o que menos me importa. Ou somos seres civilizados, ou não. Isso começa por uma palavra tão simples como liberdade. Por que será que tantos têm tanto medo dela?
novembro 19, 2004
BLASFÉMIA,2. Sim, a verdade é que eu penso que as questões religiosas não devem impor-se ou sobrepor-se às questões civis. São do domínio pessoal, da «comunidade de crentes», do meu minyan. Somos nós que estamos no mundo; Deus não se aproxima desta atmosfera.
QUEM É IRSHAD MANJI? «Ma mère m’a dit que l’imam de sa mosquée a consacré quatre sermons consécutifs à mon livre. Les larmes aux yeux, elle l’a entendu dire que j’étais une Oussama Ben Laden, que j’étais aussi horrible que lui.» Et d’enchaîner : «On dit que je ne suis pas légitime parce que je suis lesbienne, parce que je suis jeune, parce que j’ai les cheveux hérissés, parce que je suis une femme.» Ler mais aqui.
BLASFÉMIA. A ideia de uma lei anti-blasfémia, proposta pelo ministro holandês da justiça, Piet Hein Donner, é apenas mais um começo e mais um (péssimo)sinal. Imaginemos uma lei dessa natureza e uma comissão estatal encarregada de avaliar as «blasfémias». Ou, pior, uma comissão inter-religiosa. Ou, ainda pior, uma comissão religiosa. Havia de ser bonito, havia.
SEJA SAUDÁVEL, 2. Deve desconfiar-se da ironia indignada. Nos telejornais foi pouco menos do que abjecta a indignaçãozinha espantada das jornalistas que assinaram peças sobre o últimos dos escândalos descobertos em Portugal: um entre cada cinco médicos é fumador, o que dá a bonita percentagem de 23%, creio. Uma vergonha, sugeria a voz da jornalista, uma vergonha. Abriu a caça ao médico-fumador. Daqui a uns tempos abrirá a caça ao médico em geral; aos médicos que comem fritos e têm colesterol no sangue, aos que jogam sueca e gostam de cozido à portuguesa, aos que ingerem carbo-hidratos e não são monogâmicos, aos que já fumaram um charuto ou lêem a imprensa da Suazilândia. Os médicos têm de dar o exemplo; não podem ultrapassar os 120 km/h nas auto-estradas nem preencher o boletim do totoloto. Daqui a pouco vão vigiar os professores que lêem o Código DaVinci ou a Playboy. Depois virão os bancários que jogam ao Monopólio. Cuidado. Eles vigiam de qualquer lugar, de todos os lugares. E a sua voz é imensa, poderosa, cheia de moral, de princípios, de segurança, de rigor, de saúde e de certezas. Eu, se pudesse, processava-os a todos, a esses vigilantes encartados; por cada inflexão acusatória, por cada ironia estúpida e cruel e filha da puta e sacristã -- e fazia-o em nome da sociedade, da liberdade dos cidadãos, contra o Estado, os moralistas, os cretinos e os polícias que ninguém encomendou. Cuidado. Há vigilantes por todo o lado.
SEJA SAUDÁVEL, 1. O dr. Luís Filipe Pereira, de braço dado com o presidente da câmara da Tavira, ameaçam ir passar férias ao reino do Butão (aproveitando uma informação do Blasfémias).
DE DEGRAU EM DEGRAU. O Público diz que o Dr. Soares está preocupado e que «só ainda não houve "aventuras militares" devido à integração de Portugal na União Europeia». O que o ex-presidente afirmou foi: «A integração na União Europeia defende-nos de aventuras militares, mas só uma consciência cívica nacional evitará outros perigos.» De qualquer forma, embora a citação correcta seja mais morigerada, pode dizer-se que, de degrau em degrau, o Dr. Soares atinge formas de catastrofismo cada vez mais puro.
VIDINHA. Passei metade da vida a odiar chávenas de café quentes, a «bica escaldada» ou a «bica em chávena escaldada». Finalmente, consegui hoje de manhã pedir um café «em chávena fria». Foram necessárias décadas para assumir este gesto anti-patriótico.
novembro 18, 2004
OS DEMÔNIOS INTERIORES. «Quando eu morrer, espalhem o boato que eu “lutei contra os meus demônios interiores” (é assim que vocês têm que falar, anotem) e nem sempre venci - mas que lutei com todas as forças, num espetáculo ao mesmo tempo trágico e algum outro adjetivo qualquer que vocês podem escolher. Digam que eu era alcoólatra (I wish!), que ficava de mau humor quando bebia e ficava xingando os meus amigos, mas quando eles tentavam bater em mim eu dizia que “não acreditava em violência”, levantava com uma cara arrogante e tentava cuspir na pessoa, errava e acertava na minha própria camisa, e saía cambaleando bar afora. [...] Oh escritores de boina, quando estiverem ganhando um prêmio do Pen Club ou algo assim, e por acaso notarem Katie Holmes na platéia, digam a ela que eu a amo, que eu a amo. E que eu não seria canalha com ela, nunca. Que eu lutei contra meus demônios interiores e venci, saindo mais forte e mais sábio, pero com o coração cheio de ternura. Digam a ela que tudo que falam de mim é mentira! E se ela disser que nem sabe quem sou eu, comecem a mentir, a mentir barbaramente. Digam que Ian Fleming me conheceu no Cassino do Estoril e, “coincidentemente” (façam as aspas com os dedos), criou James Bond no mês seguinte.» Alexandre Soares Silva
E ler ainda este texto, uma receita para fazer um inferno a vida dos escritores mais hirsutos e ficar com a vida estragada por causa disso -- e deles.
RI-TE, RI-TE. «Mais tarde ou mais cedo, esmagarão todos os vícios, proibir-nos-ão mesmo as mais solitárias derivas. Seremos belos e saudáveis. Obrigar-nos-ão a usar aparelhos nos dentes. [...] Serão proibidas ideias com mais de 10% de gordura. Falstaff será internado numa clínica da qual não mais sairá. O grande negócio clandestino será o do sal. Existirão normas apertadas para o conteúdo dos livros e do cinema. Os grandes escândalos do futuro dirão respeito a figuras públicas apanhadas a fumar na casa de banho. [...] Cardiologistas serão futuros ministros da Justiça, nutricionistas ocuparão a pasta das Finanças.» À Espera dos Bárbaros.
novembro 17, 2004
LITERATURA EM SÃO PAULO. De São Paulo, o bom Ilídio Soares chama a atenção para a realização dos «Encontros de Interrogação», o nome do «evento literário» que será realizado no Itaú Cultural, em São Paulo, nos dias 22 e 23 de novembro. Cerca de cem poetas, prosadores, críticos e jornalistas estarão presentes, participando dos debates em mesas temáticas. Escreve o Ilídio: «Sabe quem virá para esse encontro? Veja só: Claudia Roquette-Pinto,Wilson Bueno, Horácio Costa, Carlos Ávila, Ignácio de Loyola Brandão, Ricardo Aleixo, Sebastião Nunes, Glauco Mattoso, Rodrigo Garcia Lopes, Ademir Assunção... para citar poucos nomes... enfim, só a fina fauna e flora da nossa literatura atual ... o Itaú Cultural distribuirá uma revista dedicada especialmente ao encontro, e produzirá um livro e um DVD com depoimentos de todos os autores participantes.»
O Itaú, acrescento eu, é um banco comercial brasileiro. Já em Portugal...
PRIMEIRA REPUÚBLICA. Luís Bonifácio colocou na rede um novo blog, Cartas Portuguesas. O objectivo é «apresentar uma perspectiva da 1ª República através da correspondência recebida por duas figuras do mesmo regime, General José Augusto de Simas Machado e Coronel Raimundo Enes Meira». Uma ideia excelente. Há cartas de Afonso Costa, António José de Almeida, Alexandre Braga, João Soares, Egas Moniz ou Homem-Cristo, entre outros. Vale a pena.
UM POEMA DE LÊDO IVO POR CAUSA DO TEMPO QUE CORRE.
Não quero achar o que os outros perderam:
as moedas no chão, os guarda-chuvas
esquecidos nos ônibus, e a vida
deixada por engano sobre o asfalto.
Ao que ninguém viu, aspiro; ao que existiria
em forma de mar e árvore, se a natureza habitual não irrompesse
com suas sombras e cigarras e cascatas.
Quero, sonho e adiro o inédito
como a noite no caracol de uma escada
contudo perto das constelações se eu pudesse vê-las de outro planeta.
[...]
Lêdo Ivo
ANÚNCIO, 1. Compravas um carro em segunda mão a esta gente? Confiavas? Confiavas em alguém que engana deliberadamente, como se a única grande arte fosse «aparecer bem» no retrato?
Isto não tem a ver com sondagens, popularidade, inaugurações, «trabalho feito», levantar «o astral», discursos épicos, influência, negócios. Tem a ver com decência. E também com o seu contrário, a falta de decência. Também não tem a ver com costumes, valores, ordem nas ruas e paz no lar, essas patetices. Tem a ver com decência. E a pergunta mantém-se: compravas um carro em segunda mão a esta gente? Eu tomaria cuidado.
O PRIMADO DA LEI, QUANDO É PRECISO. A patetice a que se refere o Gabriel Silva a propósito dos horários das lojas do Porto lembra que devemos pensar no valor e no significado das leis. Parece que na Câmara do Porto há uma proposta para autorizar a abertura do «comércio» entre as 06.00 e as 24.00. Apareceram vozes a protestar; o vereador Rui Sá diz que «a estratégia deveria passar pela concepção de planos integrados», o PS acha que é preciso ouvir as «estruturas sindicais e associação de comerciantes»; a associação comercial acha que bastaria um dia por semana, e «com animação cultural»; o resto é ridículo demais para ser citado. Ora, por que razão há-de tudo ser regulado até à exaustão? Um dia por semana? Não seria melhor autorizar a abertura das lojas entre as 06:00 e as 24:00 e exigir que as leis fossem, apenas, rigorosamente cumpridas -- as laborais e as que fossem chamadas a intervir? E que quem não cumprisse a lei geral fosse punido? De cada vez que alguém fala da reabilitação do «comércio tradicional» do Porto, apetece rir.
A MISÉRIA DO PODER. Santana Castilho chamou a atenção para o problema no Público: a ministra descansou os paizinhos e os alunos, como se não fosse preciso virem a apresentar atestados médicos (como aconteceu em Guimarães) -- não, não se preocupem, os exames nacionais não vão alterar as coisas, não vão seleccionar, não vale a pena protestarem já, as Associações de Pais podem descansar. Não vão ser exames, no fundo. Então, para que servem? São, ou não são necessários? São, ou não são úteis? Sim, são necessários e úteis, mas alguém arranjará maneira de eles «não contarem tanto», de a avaliação não ser feita. O que incomoda no poder pequenino e envergonhado é exactamente isto: não ser exercido senão a medo, pelas costas, ao engano. O exercício do poder deixou de ser uma coisa nobre e séria; acossado pelas tele-sondagens, é apenas um retrato da sua miséria, da tagarelice. Governar é fazer escolhas.
JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA. Leitura de poemas de José Agostinho Baptista no Porto. Madeirenses, portuenses, açorianos de Pontevedra, lisboetas, um bar cheio de gente.
novembro 14, 2004
GONÇALO M. TAVARES. Já está em distribuição (edição Círculo de Leitores) o romance Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, que este ano ganhou o prémio LER/Millenium. Recomendo muito.
CONCUPISCÊNCIA. Não, Ricardo, não. Ainda não li nenhuma das reportagens ou artigos de fundo deste mês.
REGRESSO À PÁTRIA, OU O CANTINHO DO HOOLIGAN. Choque térmico à chegada à Pátria; mas quando passo pelos senhores do SEF já sinto a mudança no ar: um arzinho de pequena depressão futebolística. Nem me atrevo a dizer mais. A pouco e pouco, as coisas compõem-se.
novembro 12, 2004
LUIZA TOMÉ. Está bem, está bem. O link é este. Ah, concupiscência! Chamo a atenção, no entanto, para as reportagens e artigos de fundo da edição deste mês (os ensaios dedicados a Keila Siqueira e Juliana Knust não estão incluídos nesta categoria, evidentemente).
CONGRESSO DA DEMOCRACIA. A ideia de promover um congresso é inteiramente legítima. Eu já participei em vários e aproximadamente 52,4% da blogosfera já andou em muitos mais; congressos, colóquios, conferências, espectáculos, solilóquios, palestras, o que quiserem. Mas a designação de «congresso da democracia» parece-me francamente feliniana.
TER RAZÃO. O Rui Curado Silva escreve: «Espero sinceramente que o Aviz e o Nuno Guerreiro tenham razão.» [em relação a Arafat] Eu espero sinceramente que o Rui tenha razão quando espera que nós (o Nuno e eu) tenhamos razão.
PS - Ontem, pela televisão vi imagens de colonos judeus na Cisjordânia festejando a morte de Arafat. Nada me pareceu, na circunstância, mais abjecto. Lembrei-me das palavras de Rabin depois do massacre de duas dezenas de pessoas na gruta de Hebron: «Ele [o assassino, um judeu] lançou o opróbrio sobre todos nós.» O Nuno Guerreiro citava, ontem, esta passagem dos Provérbios: "Quando cair o teu inimigo, não te alegres, nem quando tropeçar se regozije o teu coração, para que o Senhor não o veja, e o desgoste" [ 24:17,18 ]
FUROR. Está a fazer furor a nova edição da Playboy brasileira com Luiza Tomé. O natural pudor bloguístico do circunspecto Aviz impõe que a reprodução da capa seja deste tamanho. No entanto, o importante é isto: se bem que o entusiasmo dos leitores da revista não se compare ao que rodeou o lançamento da «edição Juliana Paes», aliás catalogada como «edição especial» (mais cara e tudo...), acontece que Luiza Tomé, 40 anos, não dissimulou nada nestas fotos. «Na linguagem da cafajestagem que só pensa em futebol e mulher, isto é, na nossa linguagem», como escreve Arthur Dapieve, não há botox nem filtros. Se o pudor me impede de escrever sobre o assunto, cito o Dapieve: «Os efeitos da idade e da maternidade são perceptíveis entre rendas, capas e botas pretas. Os bonitos seios têm um caimento natural. Melhor do que dois balões de gás despersonalizados na mesa de operações, creio. É tudo dela, de sua vida, de sua história, bem como os pêlos fartos, aqui ó pros modismos depilatórios.» The girl next door, portanto.
CONSTITUIÇÃO EUROPEIA. OS PROBLEMAS DE UM DESCRENTE. Há um problema com o referendo, eu compreendo. A questão é que, seja qual for o resultado do referendo, as coisas não podem mudar. Imaginemos que «à populaça», insensível aos apelos dos seus esclarecidos líderes, lhe dá para votar no «não». O que acontece a seguir? Nada. Faz-se outra Constituição? Na «questão europeia» (este texto tem mais aspas do que o costume) há um regime de desconfiança absoluto. Que «a populaça» desconfie de Bruxelas e Estrasburgo, não me parece novidade por aí além. O que me parece preocupante é o nível de desconfiança que Bruxelas e Estrasburgo nutrem pelos europeus.
SEM FALSO ANTIPATROTISMO. Já escrevi várias vezes sobre a literatura brasileira contemporânea e sobre as boas surpresas que vou tendo; sobretudo comparando com o que se escreve em Portugal. Mas a mecânica dos prémios literários brasileiros revela outras surpresas, igualmente muito positivas: a agitação em redor do Jabuti e do Portugal Telecom, por exemplo, não tem nada a ver com o secretismo dos prémios portugueses. Nestes prémios há (tal como acontece em Inglaterra e em alguns casos franceses) listas de seleccionados e de finalistas, uma disputa mais séria. Alguns amigos brasileiros falam-me sempre «dos miseráveis lóbis», como em todo o lado; eu até concedo -- mas acho preferível «os miseráveis lóbis» à existência soturna e solitária «do miserável lóbi».
PRÉMIO PORTUGAL TELECOM/BRASIL. A edição de O Globo de hoje dá todo o destaque da capa do 2º Caderno à entrega do prémio Portugal Telecom (anteontem, em São Paulo; ver referência no Gávea)a Paulo Henriques Britto, com o livro Macau (edição Companhia das Letras); é a primeira vez que um prémio desta natureza e deste valor (R$100.000, ou seja, 35.000 euros) vai para um livro de poesia. Em segundo lugar ficou o livro de Sérgio Sant'Anna, O Voo da Madrugada (Companhia das Letras no Brasil, Cotovia em Portugal) e em terceiro A Margem Imóvel do Rio, de Luiz Antônio Assis Brasil (edição LP&M). Ambos excelentes (talvez o de Assis Brasil seja publicado pela Ambar em Portugal). Ora, já quanto ao Prémio Portugal Telecom/Portugal.
SOBRE A QUESTÃO VAN GOGH. Se o caso Salman Rushdie tivesse acontecido nos últimos dois anos, teríamos milhares de intelectuais e de frequentadores do Fórum TSF a dizer que era bem feito (além de John Le Carré, que manteria as mesmas razões). Se a destruição dos Budas das montanhas do Afeganistão tivesse ocorrido nos últimos dois anos, teríamos talvez os mesmos milhares a inventar uma desculpa consentânea com o «multiculturalismo longe de casa» (excepto Agustina Bessa-Luís, que manteria as mesmas razões). O caso Van Gogh não implica o Islão inteiro (e sim o fundamentalismo islâmico, seja lá o que isso for); mas implica as sociedades ocidentais. Há uns anos, Diogo Pires Aurélio publicou um livro sobre a matéria, tolerar o intolerável (Um Fio de Nada. Ensaio sobre a Tolerância, edição Cosmos -- que recomendo vivamente). A Economist fala do assunto:
«[...] how far should liberal societies tolerate the intolerant? [...] After the Van Gogh murder, calls for Europe's open societies to be more aggressive towards Islamic radicals can only get louder. “Militant Islamism is only a tiny force in Europe”, wrote the conservative Frankfurter Allgemeine Zeitung, “yet it is dangerous, because many societies on this continent have elevated their defencelessness into a virtue.” Yet the risk is that, rather than the intolerant learning tolerance, the tolerant become intolerant too.»
Citação via Diplomacia Pública.
novembro 11, 2004
O PRESIDENTE PORTUGUÊS ALVO DE CHANTAGEM. (O NOVO BEST-SELLER DE SIDNEY SHELDON) A pedido, aqui vai um extracto de Are You Afraid of the Dark? (sigo a edição brasileira da Record, Quem tem Medo de Escuro?):
«Numa tela de computador apareceu um mapa-múndi cheio de linhas e símbolos. Enquanto falava, Tanner mexeu num botão, e o foco do mapa ficou mudando até iluminar Portugal.
– Os vales agrícolas de Portugal – disse Tanner – são alimentados por rios vindos de Espanha para o Atlântico. Imagine só o que aconteceria com Portugal se continuasse a chover até que os vales fossem inundados.
Tanner apertou um botão e apareceu num enorme ecrã a imagem de um palácio cor-de-rosa com guardas cerimoniais em posição de sentido enquanto os seus belos e luxuriantes jardins brilhavam ao sol.
– Este é o palácio presidencial.
A imagem mudou para uma sala de jantar, onde uma família estava a tomar o café da manhã.
– Esse é o presidente de Portugal com a mulher e os dois filhos. Quando eles falarem, será em português, mas você ouvirá em inglês. Eu tenho dezenas de nanocâmaras e microfones no palácio. O presidente não sabe, mas seu chefe de segurança trabalha para mim.
Um auxiliar estava a falar com o presidente:
– Às onze da manhã o senhor tem uma reunião na embaixada e um discurso num sindicato. À uma da tarde almoço no museu. Esta noite teremos um jantar de Estado.
O telefone tocou na mesa do café da manhã. O presidente atendeu.
– Alô?
E a voz de Tanner, instantaneamente traduzida do inglês para o português, disse:
– Sr. Presidente?
O presidente levou um susto.
– Quem é? – perguntou, e sua voz foi imediatamente traduzida do português para o inglês, para Tanner.
– Um amigo.
– Quem… como conseguiu o meu número particular?
– Isso não é importante. Quero que ouça atentamente. Eu amo o seu país e não gostaria de vê-lo destruído. Se não quiser que tempestades terríveis o apaguem do mapa, deve me mandar dois bilhões de dólares em ouro. Se não estiver interessado agora, eu ligo dentro de três dias.
Na tela eles viram o presidente bater o telefone. Ele disse à esposa:
– Algum maluco conseguiu o número de telefone. Parece que escapou de um asilo.
Tanner se virou para Pauline.
– Isso foi gravado há três dias. Agora deixe-me mostrar a conversa que nós tivemos ontem.
Uma imagem do enorme palácio cor-de-rosa e seus lindos jardins surgiu de novo, mas dessa vez caía uma chuva forte, e o céu estava cheio de trovões e iluminado por raios.
Tanner apertou um botão e a cena da televisão mudou para o escritório do presidente. Ele estava sentado a uma mesa de reuniões, com meia dúzia de assessores, todos falando ao mesmo tempo. O rosto do presidente estava sério.
O telefone em sua escrivaninha tocou.
– Agora – riu Tanner.
O presidente atendeu apreensivo.
– Alô.
– Bom dia, senhor presidente. Como…?
– Você está destruindo o meu país! Arruinou as colheitas. Os campos estão destruídos. Os povoados estão sendo –Ele parou e respirou fundo. – Quanto tempo isso vai continuar? – Havia histeria na voz do presidente.
– Até eu receber os dois bilhões de dólares.
Eles viram o presidente trincar os dentes e fechar os olhos um momento.
– E então você vai parar com as tempestades?
– Vou.
– Como quer que o valor seja entregue?
Tanner desligou a televisão.
– Está vendo como é fácil? Nós já temos o dinheiro.»
ARAFAT. Sobre Yasser Arafat, escrevi no Jornal de Notícias de hoje. Não tenho muito mais a acrescentar. A não ser que todos esperamos que Israel e um futuro (tão breve quanto possível) estado palestiniano democrático possam coexistir, mesmo de costas voltadas um para o outro.
Não, não vou chorar lágrimas de crocodilo. Não vou deixar de reconhecer o seu papel no Médio Oriente e na chamada “causa palestiniana”. É provável que seja um herói. Mas não vou tecer um elogio fúnebre. Se os palestinianos ainda não têm um país independente devem-no também a ele, que desfez acordos e mentiu descaradamente sobre os seus próprios planos, autorizando comandos suicidas formados por adolescentes e treino militar às crianças de Gaza. Se ainda há israelitas que se opõem à constituição de um estado palestiniano (e são muito poucos) devem-no muito a ele, que autorizou e mandou executar civis com a frieza de um “grande líder”, condenando massacres em inglês e incentivando-os em árabe. Não aceito a encomenda de um Arafat transformado em anjo – desenho que, repetidamente, as televisões vão pintar durante as semanas mais próximas e que os jornais vão reter em colunas laudatórias, rendidas diante da morte do “grande estadista”.
Quem já viu destroços de autocarros israelitas e pedaços de corpos retirados de restaurantes destruídos à bomba em ruas de Jerusalém pode, sem dúvida, calar a voz e respeitar a dor dos que choram Arafat – e perguntar-se sobre os dias que vêm. Mas não fará mais do que isso.
Eu vi a pizaria Sbarro, de Jerusalém, destruída por uma bomba da Fatah. Vi os jovens que dançavam na discoteca Dolphinarium, em Telavive, dias antes de ser destruída por um suicida recrutado pela Fatah e enviado pelo Hamas. Vi o restaurante perto de Haifa (a cidade da tolerância) onde centenas de judeus celebravam a sua Páscoa, e que os militantes da Fatah não hesitaram em destruir à bomba. Lembro-me de Itzhak Rabin confiar em Arafat depois dos acordos de Camp David – e de Arafat ter voltado atrás. Vi o pequeno mercado ao lado da Jaffa Road, em Jerusalém, semeado de corpos depois de um ataque organizado por militantes do Hamas que Arafat libertara dias antes. Ouvi Ehud Barak, em Jerusalém, falar com optimismo depois dos acordos de Oslo que Arafat rasgou depois de apertar a mão ao primeiro-ministro de Israel – abrindo as portas à vitória eleitoral de Ariel Sharon e da ala direita do Likud, um festim para os extremistas do Hamas e da Jihad.
Quem viu esses destroços sabe que um estado palestiniano democrático seria impossível com Arafat. E, por isso, dificilmente chorará a sua morte. É doloroso escrever isso: não chorar a sua morte. Mas a verdade é que, tendo o dever de respeitar o vazio da morte, temos também o dever de não a usar para esconder as feridas abertas. Arafat não se transformou apenas numa peça dispensável – transformou-se num obstáculo à paz e à criação de um estado palestiniano democrático, arrastando o seu povo para uma guerra de fanáticos alimentada pelos ditadores da região. Ao mesmo tempo, criou um regime de terror nos média palestinianos, acumulou uma fortuna pessoal que ultrapassa de longe os 300 milhões de dólares (segundo a “Forbes”) – grande parte dela desviada dos cofres da Autoridade Palestiniana –, autorizou execuções sumárias e fuzilamentos regulares, apoiou-se em líderes religiosos que pregavam nas mesquitas de Gaza sobre o dever de matar judeus, transformou a Autoridade Palestiniana num aparelho corrupto e voraz.
É forçoso reconhecer que desaparece um líder e uma figura histórica. Mas o reconhecimento do facto não implica que se seja desleal para com a memória e as suas mágoas.
novembro 09, 2004
SHELDON. Sidney Sheldon diz que o seu novo livro (Are You Afraid of the Dark?) decorre em algumas cidades como «Berlin, Paris, Denver, New York, San Sebastian, Madrid, Barcelona, London, Zurich, Tokyo and Portugal». (entrevista no The Mistery Guild).
CIMEIRA (OU O CANTINHO DO HOOLIGAN). Cimeira em Salvador, Bahia – entre o Aviz e o Não Esperem Nada de Mim , num restaurante cheio de promessas gastronómicas. Estranhei a melancolia do Joel, recebendo sms portugueses com novidades do Estádio do Dragão, mas percebi porque bebeu aquele Remy Martin final: uma digestão de três pratos daqueles não era fácil, não foi nada fácil. Alguém tinha de pagar.
novembro 08, 2004
PARÁ, BRASIL. Num município do Pará (Norte do Brasil), o tribunal eleitoral regional impediu uma mulher de se candidatar à prefeitura. Motivo: ela vive com a ex-prefeita e a lei brasileira impede os cônjuges de se sucederem nas prefeituras. A candidata impedida de ser candidata é militante do PFL (direita) e o seu caso acaba por criar um precedente jurídico importante ao reconhecer como casamento a união de facto entre duas pessoas do mesmo sexo. Numa entrevista à Veja ela assume a sua relação com a outra mulher («Você quer saber se eu sou lésbica, é?», pergunta ela ao jornalista. «A senhora é lésbica?», responde, perguntando, o jornalista). Recomendo atenção a este caso, mesmo passando-se no Pará.
MAU CLIMA. Parece que o mais recente livro de Sidney Sheldon constrói uma teia na qual um chantagista ameaça o presidente da República de Portugal com uma mudança brusca e catastrófica no clima do país. Vou ler. Tenho esperança.
novembro 05, 2004
O PRECONCEITO GROSSEIRO. Luís F. Marinho, por mail, pergunta qual é o preconceito grosseiro que eu referia abaixo (post «Demónio Americano»). É muito comum; tanto, que escapa a quem os produz no meio de comentários aparentemente banais sobre a América. Arthur Dapieve, no Globo de hoje, por exemplo, fala de «a minha América» para dizer que ela não lhe foi roubada por um voto sequer. Mas a maior parte dos comentários sobre o «horror da América», por exemplo, tem endereço errado, como já hoje foi escrito no Blasfémias. A guerra sem tréguas aos fumadores, o processo Anita Hill, etc. etc., são obra dos democratas, que impediram Bill Clinton de fumar um charuto sequer. A ideia de que os americanos são todos isto ou todos aquilo é muito semelhante «à visão do português» no Brasil, por exemplo -- todos seríamos donos de padarias e choraríamos a ouvir fadinho e a beber vinho verde (ou todos votaríamos Santana Lopes). Essa visão do americano reproduz o olhar provinciano de quem só conhece (e mal) os cantos da sua casa. Pessoalmente, acho um assunto desinteressante.
MANOEL DE OLIVEIRA. «Manoel de Oliveira, 95, foi homenageado nesta quinta-feira, durante entrega dos prêmios da 28ª Mostra BR de Cinema, no teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo, com o prêmio Humanidade, criado para homenagear cineastas pelo conjunto de sua obra.» Folha de São Paulo.
Eu sei que a frase de Manoel de Oliveira vai merecer muitos comentários em Portugal: «São tantos os prêmios que recebi em São Paulo que estou a pensar vir morar para aqui.»
BASHEVIS SINGER. Joseph Epstein sobre os livros de Isaac Bashevis Singer, no The Weekly Standard. (Obrigado pelo link, ao Alexandre Soares Silva.)
O DEMÓNIO AMERICANO. Assim como os países árabes do Médio Oriente precisam da existência de Israel para prolongarem a vida dos seus regimes tal como os conhecemos (assim se explicando, também, a ideia de que tivessem falhado as negociações para a um estado palestiniano democrático) parte da esquerda festeja a eleição de Bush porque não pode viver sem o seu demónio americano. Algumas das reacções à vitória de Bush só podem ser explicadas por um preconceito grosseiro que mistura tudo no mesmo saco. O ideal seria o mundo ser muito certinho, modelado de acordo com as paredes do cérebro. Mas não é.
VALETE FRATRES. Acabou o Valete Fratres!. Trata-se de uma outra perda para a blogosfera, depois da recente saída de cena do Janela Indiscreta. O Valete era um lugar de referência para a direita.
FUTILIDADES PARA FIM-DE-SEMANA. A edição de O Globo de hoje tem sinais portugueses. Primeiro, a revista RioShow, das sextas-feiras, é dedicada ao Cadeg, no bairro de Benfica, Rio (é o bairro, hélas!, onde fica o presídio carioca que mais problemas tem gerado nos últimos tempos). Seja como for, o Cadeg (Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara), na Rua 16 é o sitio, diz O Globo, «onde rola a melhor comida portuguesa da cidade». É necessariamente um exagero (dada a existência do Antiquarius, até por isso) – mas a reportagem chama a atenção para os bolinhos de bacalhau (R$ 17, o que é muito caro), pão «caseiro», sardinhas assadas (R$ 3, adequado), bacalhoada (R$ 50, caríssimo). Parece que também há concertinas minhotas. A reportagem é de Luciana Fróes, nada mau e leva o título «Portugal é logo ali» (no sumário da revista é escolhido o título «Uma festa muito ‘gira’», e na primeira página do jornal é «Festa vespertina à moda da terrinha» – tudo portuguesinho como dantes).
Depois, nota para outra peça em que se anuncia que o Vinho do Porto é que está na moda, mesmo. Os brasileiros descobriram o Porto Branco seco. Informações adicionais: no Zuka, um bar do Leblon, Marina Hirsh e Ana Carolina Gayoso preparam-no com um twist de laranja, gelado e simples ou com gelo, com tónica e hortelã; no Clube Chocolate, no Fashion Mall, é servido em taça de martini, com jabuticaba e gengibre, ou ainda acompanhado de maracujá, limão (não o limão brasileiro, mas o europeu – que aqui se designa de siciliano) e água tónica, e ainda com maçã verde e tangerina.
Mais dicas: Há pouco falei do Antiquarius – que usa o Vinho do Porto num prato como o Bacalhau à Dona Antónia (homenagem à Ferreirinha); no Traîteurs de France (na zona da Gávea), há Vinho do Porto num mignon de carneiro; na pizaria Stavaganze (limite de Botafogo), há uma piza com queijo de cabra, azeite balsâmico, figo grelhado e Porto; no Joanne Bistrot et Boulangerie (em Ipanema) o Porto está nas sobremesas – figo grelhado com Porto e sorvete de nata e ainda petit gâteau de chocolate com calda de Porto rubi.
Desculpem o tom mais leve do post. Mas eu acho deliciosa esta descoberta. Se os brasileiros fizessem com o Porto aquilo que já fizeram com a cachaça 51, seria um sucesso.
novembro 03, 2004
TVE. A meio da madrugada, procurando emissões daqui e dali, dei com a TVE internacional. Um comentador referia-se a «el Bush» e ao «senador Kerry». Também foi por causa disso.
JANELA INDISCRETA. O fim do Janela Indiscreta é uma má notícia para a blogosfera. «Um blog pode ser um filme?», pergunta-se no seu último post. Talvez. O Janela Indiscreta permitiu-o.
PRIMEIROS DERROTADOS DAS ELEIÇÕES. Naturalmente, a imprensa – e a ideia de que tem todo o poder e toda a autoridade do seu lado. Pode continuar a reivindicar a autoridade, mas o seu poder sofreu um duro revés. A verdade é que isso não tem significado substancial; a opinião da imprensa não tem de ir a votos ou de sujeitar-se a sondagens, como se sabe – os seus editoriais não são referendáveis. O problema é quando a imprensa acredita na vantagem do seu voto sobre o voto dos eleitores. Hoje ficou também provado que não é a imprensa a fazer presidentes, embora possa fabricá-los com grande eficácia.
De resto, para já, não há grandes lições a tirar das eleições americanas, salvo a vantagem indesmentível de Bush no «voto popular».
novembro 02, 2004
CINEMA NA ANTÁRCTIDA. O mundo está ocupadíssimo com Bush & Kerry e admito que tem razão. Mas aprecio a grandeza desta gente: a Argentina acaba de anunciar que vai abrir – em 2005 – a primeira sala de cinema na Antárctida, o pólo que agora me está mais próximo:
«O Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais e a Chancelaria decidiram unir forças para construir um espaço dedicado à projecção de filmes que abrirá suas portas em Fevereiro na base argentina Jubany. A sala, que terá 50 poltronas e contará com um pequeno espaço de recepção, banheiro e vestiário, funcionará na ilha 25 de Maio, onde também há bases do Brasil, Chile, China, Coreia do Sul, Polónia, Rússia e Uruguai.»
EUA, 2. Concordo com o João Miranda. Esta ideia de que todos temos o direito de votar nos EUA parece-me estapafúrdia. Não por lhe faltarem argumentos (como o facto de a política externa americana influenciar a vida de todos nós), mas porque – em extremo – parte do princípio de que os outros não têm capacidade para se auto-governar. A quantidade de «especialistas em América» gerados nos últimos anos só se explica pela paixão que a América desperta, julgo eu. Paixão descontrolada e paixão de ódio. Admito – já o escrevi abaixo – que a eleição de Kerry é melhor para as relações entre os EUA e a Europa (e que no resto não mudará grande coisa). Mas acho despropositada a ideia de os jornais (como o The Guardian) incentivarem directamente (por mail) os eleitores americanos a votarem num dos candidatos. E também penso que os jornais que tomam partido publicamente por Kerry ou por Bush (não acho mal) deviam fazer o mesmo nas eleições portuguesas e serem tão claros nas suas opções domésticas quanto o são no momento em que dão lições de política aos americanos. Isso eu achava bem.
Vivo grande parte do tempo noutro país, noutro hemisfério, acompanho as suas experiências eleitorais, as suas escolhas, as suas paixões, os seus disparates – mas não me passa pela cabeça dar-lhes lições. Falo quando sou convidado, ouvem-me, riem, tento compreender, mas não acho que todos tenhamos autorização para votar onde eles votam, quando eles votam. Também não creio que a Europa seja o centro do mundo.
EUA. O mundo espera coisas importantes da América e tem votado em Kerry com largueza de argumentos e de ressentimento. Eu acho que a eleição de Kerry poderá ser melhor para o relacionamento entre os EUA e a Europa mas duvido que mude substancialmente as suas políticas para o Médio Oriente e para a própria América. Alterará o clima de crispação e de ressentimento. Não me parece pouco.
Não sou americano – e não sei como votaria se fosse americano. Assusta-me a «esperança» depositada em Kerry (também receio o apelo de capitulação diante do terrorismo) e espero pelo dia em que tudo o que se disse de Bush se venha a dizer, de novo, de Kerry – caso seja eleito hoje.