A NOITE, O QUE É?, 47. Não é quase nada, a noite, quando se espera. As coisas mais imediatas da noite são o vento nas árvores, a escuridão e o dia seguinte: tudo isso se vê da janela neste momento. O resto está mais presente, apesar de tudo: o jogo de dominó, café, cinza de cigarro, livros a meio, a água da chuva, mosquitos, nada que impeça de dormir.
Aviz
«We have no more beginnings.» [ George Steiner ]
abril 29, 2004
abril 28, 2004
LIVROS. Em 1977, Dinis Machado publicou O Que Diz Molero, por esta altura do ano. Um autor de um livro só? Provavelmente. Seja como for, retoma uma coisa que ainda não se tinha visto na ficção portuguesa de depois de 1974: um toque alucinante e teatral. Mesmo que o tempo passe, depressa ou devagar, O Que Diz Molero é o primeiro grande livro dessa década prodigiosa, e é pena ser tão esquecido.
RUY CASTRO. Ontem foi dia de Ruy Castro, no Porto. Já não o via há um ano, quando estivemos em conversa nocturna sobre Nelson Rodrigues (ah, que originalidade), o Flamengo, Garrincha e o céu da Gávea; a meio da conversa, ontem, um de nós diz qualquer coisa como «bem, mas você dizia...» Tinha sido há um ano.
Tenho uma admiração enorme por Ruy Castro; ele gosta profundamente da sua profissão: biógrafo. Escreve os seus livros como se não fossem obras-primas da biografia. Mas são (leiam-se as de Garrincha e Nelson Rodrigues -- ou a próxima, sobre Carmen Miranda). E quando sai da biografia para o mundo da ficção (em Olavo Bilac Vê Estrelas, edição Companhia das Letras), é um biógrafo ainda mais notável: aquele Olavo Bilac é extraordinário, imaginamo-lo engomado e perfumado à porta da Confeitaria Colombo, no Rio, antes de se entregar aos braços da musa num daqueles sonetos muito conformes à lei.
E, depois, uma surpresa: conheci o Ivan Nunes. Portanto, houve ainda mais Brasil, mais Nelson, mais Garrincha (e João Saldanha) e um pouco (um nadinha, quase nada) de blogosfera. O Ivan é muito recomendável, culto e tem uma generosidade que se manifesta abertamente. Saiu muito melhor do que a encomenda, o que é muito bom. Marcámos encontro.
CONTINUAÇÃO DA ALEGORIA, 2. «Corria o ano da graça de 1939. Numa noite argentina, num quarto em Buenos Aires, três escritores conspiravam no sentido de compilar o manual perfeito sobre o que NÃO escrever em literatura. Silvina Ocampo, Jorge Luis Borges e Adolfo Casares queriam, simplesmente, agradar aos leitores que vêem num livro, não um objecto de prazer, mas sim um objecto de crítica e censura. A lista produzida sistematiza tudo aquilo que qualquer obra que se pretenda literária terá de evitar.» Assim começa o texto de Alexandre Monteiro (no blog No Arame, a 19 de Abril, com o título «Para acabar de vez com a literatura»). Vale a pena lê-lo. Transcrevo os dez primeiros pontos: «1. As curiosidades psicológicas e paradoxos. Exemplo: assassínios causados por bondade ou suicídios devidos a contentamento; 2. As interpretações demasiado inconformistas de obras ou de personagens famosas. Exemplo: descrição da misoginia de Don Juan, etc; 3. Emparelhar personagens grosseiramente dissimilares ou contraditórias, como, por exemplo as duplas Don Quixote/Sancho Pança, Sherlock Holmes/Dr. Watson, etc; 4. Romances com personagens gémeas, idênticas, como em Bouvard e Pécuchet. Se o autor inventa um traço particular para uma, é forçado a inventar outro para a outra; 5. O costume de caracterizar a personagens através das suas peculariedades, como fez, por exemplo, Charles Dickens; 6. Qualquer coisa nova ou espantosa. Os leitores civilizados não se divertem com a descortesia de uma surpresa; 7. No decorrer da narrativa, recorrer a jogos extravagantes com o tempo ou com o espaço, como o fazem, por exemplo, Bioy Casares, Borges e Faulkner; 8. A descoberta de que, num romance, o verdadeiro herói é o mar, a pradaria, a selva, a chuva ou o mercado de capitais; 9. Poemas, situações ou personagens com as quais – Deus não o permita! - o leitor se possa identificar; 10. Frases que se possam tornar provérbios ou citações, já que são incompatíveis com uma obra coerente; [...]»
GIL VICENTE E OS CLÁSSICOS. Por mail, Vasco Graça Moura lembra, e bem, a propósito do que aqui se tem escrito sobre a falta de edições populares de clássicos portugueses, que existe uma bela edição monumental de Gil Vicente (na Imprensa Nacional): em cinco volumes e dirigida por José Camões. Completamente de acordo: «É com base nela, creio, que poderão fazer-se edições decentes para as escolas e o grande público.»
abril 27, 2004
CONTINUAÇÃO DA ALEGORIA. De qualquer modo, Barnes acha que o exercício das proibições vale a pena. E escreve: «Mesmo assim, vamos jogar. Eu jogo primeiro.»
Eis a lista de proibições a decretar por Barnes: «1. Não deverá haver mais romances em que um grupo de pessoas, isoladas pelas circunstâncias, voltem à “condição natural” do homem, se tornem criaturas essenciais, pobres, nuas. Tudo isso pode ser escrito num conto, o último do género, a rolha na garrafa. […] 2. Não deverá haver mais romances sobre o incesto. Não, nem mesmo deses de muito mau gosto. 3. Nenhum romance situado em matadouros. Aceito que é um género pouco importante hoje em dia; mas notei recentemente um aumento no uso do matadouro em contos. Tem de se cortar o mal pela raiz. 4. Determina-se uma proibição de vinte anos para romances localizados em Oxford e Cambridge, e de dez anos para a ficção sobre outras universidades. Não há proibição para a ficção localizada em institutos politécnicos (embora não deva haver subsídios para a encorajar). Nenhuma proibição de romances situados em escolas primárias; uma proibição de dez anos para a ficção em escolas secundárias. Uma proibição parcial para romances de crescimento (permitido um por autor). Uma proibição parcial para romances escritos no presente histórico (por um autor, novamente). Uma proibição total para os romances em que a personagem principal é um jornalista ou um apresentador de televisão. 5. Deve ser introduzido um sistema de quotas na ficção localizada na América do Sul. A intenção é moderar a propagação a preços módicos do barroco e da ironia pesada. Ah, a afinidade da vida barata com os princípios caros, da religião com o banditismo, da honra com a crueldade gratuita. Ah, o pássaro daiquiri que choca os ovos na asa; ah, a árvore cujas raízes crescem nas pontas dos ramos e cujas fibras ajudam o corcunda a fecundar por telepatia a arrogante mulher do fazendeiro; ah, o teatro de ópera agora rodado na selva. Deixem-me dar um murro na mesa e dizer "Basta!" Os romances localizados no Árctico e no Antárctico receberão um subsídio. 6. a) Nenhuma cena em que haja contacto físico entre um ser humano e um animal. A mulher e o golfinho, por exemplo, cuja terna cópula simboliza um restabelecimento mais lato daqueles ténues fios que antigamente uniam o mundo numa convivência pacífica. Não, nada deste género. b) Nenhuma cena em que o contacto físico tenha lugar entre o homem e a mulher (à maneira dos golfinhos, é caso para dizer) num chuveiro. As minhas razões são primordialmente estéticas, mas também médicas. 7) Nenhum romance sobre as pequenas guerras até agora esquecidas em partes longínquas do Império Britânico, no doloroso decurso dos quais ficamos a saber, primeiro, que os Britânicos são em geral perversos, segundo, que a guerra é realmente uma coisa muito má. 8) Nenhum romance em que o narrador ou alguma das personagens é identificada simplesmente por uma letra. Ainda há quem continue a fazê-lo! 9) Não deve haver mais romances acerca dos outros romances. Não às "versões modernas", reescritas, seguimentos ou antecedentes. Nem um complemento imaginativo de trabalhos deixados inacabados pela morte dos seus autores. Em vez disso, deve ser dado a cada escritor um pano bordado para pendurar sobre a lareira. Com as palavras: “Faça o Seu Próprio Trabalho.” 10) Deus devia ser proibido durante vinte anos; ou melhor, o uso alegórico, metafórico, alusivo, secreto, impreciso e ambíguo de Deus. O jardineiro-chefe barbudo que está sempre a tratar da macieira; o velho lobo do mar sensato que nunca se precipita a julgar; a personagem a quem nunca somos apresentados mas que, aí pelo capítulo quatro, nos provoca um sentimento de apreensão… ponham-nos a todos num armazém, todos. Deus só é permitido como uma divindade confirmável que se zanga imenso com as transgressões do homem.»
O ROMANCE SEGUNDO JULIAN BARNES, OU UMA ALEGORIA SOBRE O TEMPO PRESENTE. Reencontro um dos capítulos mais hilariantes de O Papagaio de Flaubert, de Julian Barnes (edição Quetzal/Círculo de Leitores) – sobre o romance propriamente dito. «Muitos gostariam de ser ditadores da literatura, ordenar o passado e estabelecer com calma autoridade a futura direcção da arte. Este mês toda a gente deve escrever sobre isto; para o mês que vem é proibido escrever sobre aquilo. Este e aquele não voltam a ser impressos enquanto não o dissermos. Todos os exemplares deste romance sedutoramente mau têm de ser destruídos imediatamente. Pensam que estou a brincar? Em Março de 1983, o jornal Libération incitou o ministro francês da Condição Feminina a pôr no seu Índex por “provocação pública por ódio sexista” as seguintes obras: Pantagruel; Judas, o Obscuro; os poemas de Baudelaire; o Kafka completo; As Neves de Kilimanjaro e Madame Bovary.» Sacrilégio! Como é que alguém se atreve a queixar-se do Libération? A seguir, o quê? O Le Monde Diplomatique?
A NOITE, O QUE É?, 46. Borboletas à volta da luz. Mosquitos entram pela janela. Céu ainda frio. Nenhuma palavra, nenhuma voz. Um vento que vem do começo do mundo. Dava tudo por esse vento.
OS MORTOS SEM IMPORTÂNCIA. O genocídio real e prático que tem vindo a praticar-se no Sudão, não alarma a ONU, evidentemente. Nenhuma forma de condenação dos assassínios é possível porque ainda não se conseguiu o voto dos países africanos ou dos países árabes na ONU. Tal como o nazi de Harare, Mugabe, é visto como um herói pelos restos de países da «linha da frente», cometa ele os crimes que resolva praticar. Citando a BBC: «Segundo a ONU, mais de 10 mil pessoas foram mortas e mais de um milhão desapareceram no último ano, como resultado dos confrontos em Darfur [Sudão].» Citando Bernard Lewis: «A vantagem da questão palestiniana é que os agravos podem contar com uma resposta imediata na Europa. Quando lutam contra os cristãos, aí é mais delicado. Não podem esperar que os cristãos se juntem a eles. Houve recentemente um ataque terrível no oeste do Sudão, mas ninguém lhe deu a mínima atenção.»
VPV. Este é o link para o artigo de Vasco Pulido Valente no Diário de Notícias sobre o 25 de Abril.
abril 25, 2004
GREGÓRIO DE MATOS. Continuo a receber mails sobre Gregório de Matos, «o Boca do Inferno», o mais insigne dos baianos do século XVII. O excelente Paulinho Assunção, o nosso mineiro de eleição, relembra, justamente, a edição Janaína (Salvador), a cargo de James Amado, que leva, aliás, esta saborosa inscrição no frontispício: «Fielmente copiada de manuscritos anônimos daquele tempo, e disposta como melhor pareceu a um curioso de nome James Amado.» Obrigado, Paulinho.
Esta edição em sete volumes, a que se refere o Paulinho Assunção corresponde à actual, em dois apenas, da Record. Outra das edições é a de Afrânio Peixoto, em seis volumes. À multiplicação de edições de Gregório de Matos não tem correspondido, felizmente, a proliferação de comentários; eu também acho que a sua leitura é de tal modo tremenda, em certas circunstâncias e passagens, que é bem capaz de dispensar mais comentários académicos. Para quem se interessa, vejam-se sobretudo dois livros: Gregório de Mattos, uma Revisão Biográfica (Macunaíma), de F. Rocha Peres, e A Sátira e o Engenho, sobre «o Boca do Inferno» enquanto setecentista baiano, de João Adolfo Hansen (edição Companhia das Letras).
Também o Rui Oliveira, que no seu Superflumina se tem dedicado a divulgar alguns versos do barroco (e aguardo as suas observações sobre Diogo Brandão ou Vasco Mouzinho Quevedo Castelbranco) menciona D. Francisco Manuel de Melo, Jerónimo Baía, Frei António das Chagas, Soror Violante do Céu ou Domingos Reis Quita. Pessoalmente, Domingos Reis Quita é um dos que mais me interessa (a sua obra foi publicada em edição Campo das Letras). Uma das lembranças que o Rui sugeriu é, evidentemente, o nome de Francisco Topa, da Faculdade de Letras do Porto. Nem de propósito, claro. A tese de doutoramento de Francisco Topa é constituída pela edição crítica da obra de Gregório de Matos, tendo-se ocupado, também, da poesia inédita de Luís António Verney; é um dos nossos bons investigadores e leitores do barroco brasileiro, sem dúvida.
BOA-NOITE A TODO O AUDITÓRIO. Se os fóruns das rádios são o futuro do País, acho que esta evolução não valeu a pena. Mal acabou o jogo de hoje, entre o FC Porto e o Alverca, a TSF «abriu os seus microfones aos ouvintes». «Então, este foi mais um campeonato da vigarice, o FC Porto ganhou porque se tratou de mais um campeonato da mentira, como aliás se está a ver pelo apito dourado, ou lá o que é, foi o campeonato dos favores, etc, etc...» Eu achava graça enquanto foi apenas no futebol – mas esta «bancada central» passou há muito para a política, que se transformou, nos fóruns, um campo fértil para o hooliganismo. [O Joel Neto manteve no seu blog uma secção com esse título, «Bom-dia a todo o auditório», mas, infelizmente, interrompeu-a.]
EVOLUÇÃO. [Actualização em 26.04.2004, 00:29h] Por mail, o A. comenta a questão das comemorações: «O que me incomoda na "Evolução" é sentir que não foi adoptada de boa fé. As datas comemorativas são o que são, memórias de feitos empalhados ou não; são sobretudo o que se fizer delas e cada um as associará às suas próprias memórias da altura, do percurso de então até agora, da maneira que quiser. Ou então não valerão nada. Mas mudar o nome das datas por provocação, acho mal – elas não pertencem a ninguém em particular, são de todos. Em 25 de Abril de 1974, fizeram uma Revolução. Discuta-se a revolução, mas não se lhe mude o nome ao sabor das conclusões individuais. A república evoluiu muito desde que foi implantada. O que vamos então comemorar a 5 de Outubro? Sinceramente, não acho insignificante a "guerra" evolução versus revolução: é que esta mudança de designação é inédita.» [António]
O Mário F. P. (há quanto tempo!), do Retorta, escreve: «Concordo consigo quando diz que mais do que comemorar memórias de papel amarelecido, seria bem mais importante criarmos condições para melhorar a nossa democracia. Eu faço o que posso de uma forma regular e coerente com o que acredito, educo as minhas filhas o melhor que sei. É o que eu posso fazer de mais útil.»
LIBERDADE, 2. No dia 25 de Abril de 1974 ajudei a derrubar o portão que separava os recintos dos rapazes e das raparigas no meu liceu. Durante o resto do tempo que andei no liceu (em Chaves) fiz o costume: assisti à revolução, li ao correr do tempo, participei em RGA’s onde se pedia o saneamento de professores e se aprovavam moções de apoio e de protesto, estudei a geografia da China e da URSS, comprei imprensa radical (do Voz do Povo ao A Rua), dirigi um jornal, fui membro de uma associação de estudantes, discuti Deus e a Pátria, fiz o Inter-rail, tive dúvidas. Também me comovi bastante ao longo desses anos e aderi a um partido no dia seguinte a ele ter perdido as eleições. Quase todos os meus professores da altura eram de esquerda mas tive três ou quatro de direita, para contrabalançar – um deles, o Dr. Antero Lopes, de História, condenou-me a ler os clássicos em vez de coleccionar vulgatas, e ainda hoje me sinto devedor desse entusiasmo. Ouvi do meu avô, operário e hortelão (daria um magnífico arquitecto paisagista), histórias da oposição ao regime – ele fora um leitor clandestino do Avante! (cujas edições eram guardadas no interior de uma revista da Diocese da Guarda) e eleitor de Humberto Delgado. Os meus pais deixaram-me à solta em livrarias e foram um modelo de tolerância para lá do aceitável. Tive também um tio-avô que era um clérigo superiormente culto e que, para moderar a arrogância da minha juventude, me ofereceu vários livros em latim e grego; emudeci e disse que não sabia latim nem grego suficientes para me divertir com clássicos no original, ao que ele respondeu acrescentando um livro em hebraico. Foi remédio santo. Nunca mais protestei.
Sabendo o que sabemos hoje, seria estúpido passar sobre o 25 de Abril sem mencionar as nossas histórias pessoais; cada uma delas deve quase tudo a essas transformações possíveis depois de 1974. A História interroga-as permanentemente, mas trinta anos depois devemos relacioná-las e, até, relativizá-las. Por isso, eu não teria comprado a guerra entre a «evolução» e a «revolução». Evidentemente que, sem a evolução que ocorreu na prodigiosa década seguinte, faria menos sentido comemorar a revolução, porque o 25 de Abril, assinalado como uma data (e reduzido à sua natureza de revolução, sem mais), se aproxima das romagens do 5 de Outubro, com as visitas às estátuas e as alvoradas de foguetes nos feriados municipais. A esquerda construiu, sobre estas designações, um edifício ideológico, naturalmente. Trinta anos depois, o tempo passou sobre ele e diluiu as suas cores sem, no entanto, destruir o conjunto ou, sequer, designar herdeiros incólumes de entre os seus artífices. A evocação desses artífices não significa a sua impunidade ou a sua absolvição; seria como se o papel de Otelo em Abril de 74 pudesse servir para o absolver de tudo o resto, ou para o poupar ao juízo da História.
Defender a memória (e lutar contra o esquecimento) não significa esgotar, até à exaustão, o sentido dessa memória, nem confere aos libertadores um papel de superioridade moral ou um lugar na eternidade do presente. Muitos deles usaram esse prestígio para fins políticos particulares que já não se contam entre o que a gratidão permite. Essa herança comum, vinda do 25 de Abril, significa hoje eleições livres e participação dos cidadãos, liberdade, distribuição de riqueza, justiça, igualdade no acesso à educação e ao conhecimento. Poderíamos acrescentar outras coisas, sim. Mas seria bom que também mencionássemos a necessidade de, hoje, combatermos a mediocridade, a aldrabice populista, o autismo dos políticos tradicionais do regime, a arrogância absurda da «opinião maioritária» que abunda nas televisões e na imprensa. [Jornal de Notícias]
LIBERDADE. Como acontece aos domingos, crónica exemplar de António Barreto no Público; uma passagem: «"Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril!" "Isto" pode ser tudo. A evasão fiscal, os carros dos ricos, as filas de espera nos hospitais, a pobreza, as propinas universitárias, os incêndios das florestas ou os imigrantes clandestinos. Acontece que foi exactamente para "isto" que se fez o 25 de Abril. Fez-se o 25 de Abril para poder pensar, falar e amar em liberdade. Para escolher quem nos representa. E para derrubar quem nos governa mal. Nesse sentido, Abril está cumprido. Apesar dos que, depois de terem falhado durante cinquenta anos o derrube da ditadura, tentaram confiscar o movimento libertário. E não obstante haver quem queira "aprofundar Abril" ou "cumpri-lo integralmente". Deus nos livre!...
É verdade que muitos dos que o fizeram, e todos nós hoje, temos outras ambições. Queremos uma justiça decente e uma saúde eficiente. Boas escolas e melhor segurança social. Mais cultura e mais produtividade. Uma direita liberal e uma esquerda inteligente. Mais igualdade social, mais oportunidades e um lugar mais destacado ao mérito. Menos compadrio, menos corrupção, menos complacência. E mais brio para um país que o tem pouco. Quero, queremos muito disso. É possível que alguns militares de Abril e não poucos civis do mesmo mês e dos seguintes o quisessem também na altura. Mas o 25 de Abril não se fez para isso. Fez-se para isto. Para ter êxito e para falhar. Para ouvir disparates e rasgos de inteligência. […]
E se é verdade que a maior parte dos jovens não sabe o que foi o 25 de Abril, o que choca não é isso, mas sim a confrangedora falta de cultura. Também não sabem o que foi o 28 de Maio, nem o 5 de Outubro. Não sabem quem foi Oliveira Martins ou Guilhermina Suggia. Não sabem quem foram nem o que fizeram Fontes Pereira de Melo, Guerra Junqueiro ou Egas Moniz. Como não sabem o que é o genoma, nem quem foi Galileu. Curiosamente, os pais também não.» [António Barreto]
CHUCAS. «Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor./ Outras vezes encontro nuvens espessas./ Avisto crianças que vão para a escola./ Pardais que pulam pelo muro./ Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais./ Borboletas brancas, duas a duas,/ como refletidas no espelho do ar./ Marimbondos que sempre me parecem/ personagens de Lope de Vega./ Às vezes, um galo canta./ Às vezes, um avião passa. [...]» [Cecília Meireles]
O MEDO DO BRILHO. [ACTUALIZAÇÃO: No meio de várias distracções não mencionei a homenagem a Shakespeare no Blogue dos Marretas durante o dia 23, sexta-feira passada: «O, let my books be then the eloquence/ And dumb presagers of my speaking breast», Sonnet XXIII.]
Eduardo Prado Coelho escreveu no Público sobre o novo espectáculo de Ricardo Pais, uma montagem moderna de Hamlet , e pareceu-lhe muito bom. A questão não está na encenação, que deve ser boa -- mas no brilho de Shakespeare. Ao percorrer as livrarias em busca de uma versão simples de Gil Vicente, reparo que, além de exemplares em vias de desaparecimento da edição da Sá da Costa, existem apenas edições «preparadas para os estudantes», ilustradinhas e explicadinhas. Mas nenhum texto integral em edição popular. O mesmo acontece com Cesário; quando andava no liceu, havia pelo menos três edições de Cesário Verde (a preços diferentes e com anotações diferentes); agora, razoável, há uma, disponível. Evidentemente que o problema não se resolve apenas com edições dos clássicos pagas pelo Estado, ou feitas pelo Estado. Se a escola não faz circular os clássicos, o mercado não vê necessidade de publicá-los; daí, para quê publicar uma edição razoável de Cesário ou dos principais textos de Gil Vicente? É uma lógica circular mas muito clara.
A questão que o Hamlet de Ricardo Pais coloca (como o Shakespeare de Kurosawa, em Ran [Rei Lear] ou Throne of Blood [Macbeth] ou o Shakespeare de seja quem for), não é a da sua existência, mas a da necessidade da leitura de Hamlet e do seu brilho. Passar para o brilho contemporâneo de Shakespeare sem reparar, sequer, nesse brilho intenso do próprio Hamlet de Shakespeare, enquanto clássico, na sua beleza profunda (sim, quase explosiva quando se lê a primeira vez), deixa para trás a vida da própria peça. A contemporaneidade de Hamlet explica tudo o que quisermos a propósito do nosso mundo (e com o sentido que lhe quisermos dar), mas não explica essa beleza terrível (o verso de Yeats) da composição de Shakespeare. O mundo não pode recomeçar, já se sabe; mas podia ter menos medo dos clássicos, ou seja, da sua revelação, do seu brilho. Dizer isto de Shakespeare é dizer quase a mesma coisa acerca das edições inexistentes de Gil Vicente ou de Cesário: os livrinhos que andam aí, pedagógicos e didácticos, podem explicar tudo o que o nosso tempo aproveita deles, mas não explica como surge essa revelação espantosa: aquele livro, justamente.
RECORDAÇÕES DO ABADE DE JAZENTE. De vez em quando, aparecem estas recordações amarantinas do vetusto Abade (1719-1789); não fazem mal a ninguém:
«Brutos penhascos, rústicas montanhas,
Medonhos bosques, hórrida maleza,
Que me vedes, coberto de tristeza,
Saudoso habitador destas campanhas.
Para me suavizar mágoas tamanhas,
Alteremos um pouco a Natureza;
Civilize meu mal vossa dureza,
Barbarizai-me vós estas entranhas.
Meu pranto vos comova algum afecto
De branda compaixão; pois da impiedade
Encontra sempre em vós um duro objecto.
Pode ser, que com esta variedade,
Seja mais agradável vosso aspecto,
Sinta eu menos cruel minha saudade.»
UM LIVREIRO DE GREGÓRIO DE MATOS. Versos «a um livreiro que havia comido um canteiro de alfaces com vinagre»: «Levou um livreiro a dente/ De alface todo um canteiro,/ E comeu, sendo livreiro,/ Desencadernadamente./ Porém, eu digo que mente/ A quem disso o quer taxar;/ Antes é para notar/ Que trabalhou como um mouro,/ Pois meter folhas no couro,/ Também é encadernar.»
CONFRONTO. Uma ida ao médico. Tudo realmente explicado. Mas naquelas circunstâncias ninguém é intelectual. Só uma soma indecisa de coisas, proteínas, massas, glicoses, colesteróis, alanina, seja o que for, apneias, insónias, reacções químicas, confrontos. Ainda por cima esqueci-me de lhe levar charutos. Os charutos da concórdia.
abril 24, 2004
abril 23, 2004
ERRATA. Estas coisas deviam festejar-se intimamente, mas também devem agradecer-se. Assim, agradeço aos leitores que, por mail, trataram de corrigir a data de nascimento de Gregório de Matos, «o Boca do Inferno» (texto imediatamente abaixo, já corrigido). De facto, mencionavam-se os anos 1936-1695: era um salto e tanto, uma brutal viagem no passado. Obrigado aos visitantes do Aviz.
Por outro lado, o interesse manifestado por vários leitores acerca de Gregório de Matos e da sua poesia, levou-me a revisitar a sua obra. Em breve aparecerão mais sonetos -- e, mesmo, os vilancetes vergonhosos.
abril 22, 2004
TUDO VAI DO COMEÇAR. [Actualização às 17:37 de 23.04.2004] A poesia do barroco merece ser lida; no meu caso «vai do começar», para uma maratona de voltar páginas sobre páginas. A do barroco brasileiro é infelizmente pouco conhecida entre portugueses – mas é uma pena. Um dos personagens literários mais fascinantes do século XVII baiano é Gregório de Matos, que mereceu a alcunha de «o Boca do Inferno» (nasceu em Salvador em 1636, morreu no Recife em 1695 e a sua obra completa está publicada pela Record, mas existe uma edição anterior, da Cultrix, com os cuidados de José Miguel Wisnik) e que escreveu em verso quadros excelentes da vida baiana de seiscentos. [Para mais descrições, já agora, veja-se o novo livro de Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre Velha (edição da Difel), um romance acerca de Francisco Manuel de Melo, onde se encontram algumas passagens pela Bahia]. Um dos textos mais vergonhosos da versalhada anti-clerical de Gregório de Matos, aliás «o Boca do Inferno» leva o título «A certo Frade na Villa de Sam Francisco, a quem Hua Moça fingindose Agradecida à seus repetidos Galanteyos, Lhe mandou em simulações de Doce huma panella de merda» (não o reproduzo hoje…), em plena onda da sátira sua contemporânea. Tem alguns sonetos quase correctos (na mesma onda satírica, o que dedicou à ilha de Itaparica: «Ilha de Itaparica, alvas areias,/ Alegres praias, frescas, deleitosas;/ Ricos polvos, lagostas deliciosas,/ Farta de putas, rica de baleias.// As putas tais, ou quais não são más preias,/ Pícaras,ledas, brandas, carinhosas,/ Para o jantar as carnes saborosas,/ O pescado excelente para as ceias.[…]»), mas o mais canónico de todos, com a sua habitual imperfeição do último verso (ou, muitas vezes, o corte abrupto do último terceto), é «Nasce o Sol, e não dura mais que um dia», também conhecido como «A inconstância dos bens do mundo»:
«Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.»
E CLÁUDIO MANUEL DA COSTA. Cláudio Manuel da Costa é um dos poetas mais singulares do barroco brasileiro (e de Minas, a que dedicou estes versos: «Destes penhascos fez a natureza/ O berço, em que nasci: oh quem cuidara/ Que entre penhas tão duras se criara/ Uma alma terna, um peito sem dureza! »), circulando entre Vila Rica (Ouro Preto), Rio de Janeiro e Coimbra – além de ser um dos conspiradores da Inconfidência Mineira. Este é, a meu ver, um dos sonetos mais perfeitos de Cláudio Manuel da Costa (apesar de o cânone registar sobretudo o «Leia a posteridade, ó pátrio Rio»):
«Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.
Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.
Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!
Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.»
TOMÁS ANTÓNIO GONZAGA. Gonzaga (1744-1810) nasceu no Porto, é essencialmente brasileiro e morreu em Moçambique, para onde foi desterrado em consequência da conspiração mineira. Aqui fica um poema para Marília de Dirceu, naturalmente (ou seja, para D. Maria Doroteia Joaquina de Seixas, sua eterna noiva):
«Ah! enquanto os Destinos impiedosos
Não voltam contra nós a face irada,
Façamos, sim façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
Um coração, que frouxo
A grata posse de seu bem difere,
A si, Marília, a si próprio rouba,
E a si próprio fere.
Ornemos nossas testas com as flores.
E façamos de feno um brando leito,
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos Amores.
Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo, que se passa,
Também, Marília, morre.»
POR FALAR EM BRASIL. [Actualizado, 15:42h, dia 22.04.2004] Tanto o Diário de Lisboa como o Estrada do Coco assinalaram o feriado brasileiro de Tiradentes, recordando o dia de 21 de Abril de 1792. Em Portugal, seria a Primavera. No Brasil, imaginemos que a temperatura era suave. Joaquim José da Silva Xavier não deve ter podido, nessa manhã, olhar para as águas da baía de Guanabara nem para o céu do Rio de Janeiro de então. Ao longo de três horas, percorreu — em passo de procissão, lento, mas supõe-se que sem serenidade — um caminho terrível que o levaria à morte, pelas ruas da cidade, até ao Largo de Santo António. Aí, rezou um «credo» antes de ser morto. Dividiram o seu corpo em cinco partes — a cabeça foi levada para Vila Rica, no caminho de Minas, para ser exibida como exemplo. O resto do seu corpo foi espalhado por essa estrada. Em Vila Rica, hoje Ouro Preto, o governador local ordenou três dias de festa por ocasião da morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Os nomes da Inconfidência Mineira incluíam também Francisco de Paula Freire de Andrade, José Álvares Maciel, Cláudio Manuel da Costa, Tomás António Gonzaga ou Joaquim José da Silva Xavier.
Em homenagem ao supliciado, a cidade onde — em casa do padre Corrêa de Toledo e Mello, o padre misterioso — se reuniram por várias vezes os conjurados, recebeu o nome de Tiradentes em 1889, depois de se ter chamado Ponta do Morro (quando se descobriu ouro na região), Arraial da Ponta do Morro de Santo António (homenagem dos garimpeiros e moradores ao santo, a quem dedicaram uma pequena capela) e São José del- Rei (em 1718, quando subiu à categoria de vila). É hoje uma pequena cidade turística, a primeira cidade mineira para quem vem do Rio, um conglomerado de ruas que lembram, com os seus apês — árvores gigantescas e de belíssimas flores coloridas —, o mesmíssimo emaranhado de então: casas portuguesas, palácios reconfortantes, ruas de empedrado.
Nem de propósito, o Estrada do Coco (e o Diário de Lisboa, vejo agora) assinala também a chegada de Cabral ao Brasil, que agora se comemora, citando uma das canções mais divertidas de Gonzaguinha, «Desenredo»: «No dia em que o jovem Cabral chegou por aqui, ô ô/ Conforme diversos anúncios na televisão/ Havia um coro afinado da tribo tupi/ Formado na beira do cais cantando em inglês/ Caminha saltou do avião assoprando um apito em free bemol...»
O JARDIM À BEIRA MAR. A paulista Maura Paoletti, que (ainda) vive em Portugal e que mantém o Diário de Lisboa, recebeu mais um daqueles mails de «um senhor português que, entre várias barbaridades e imprecações, dizia que eu devia mais era mudar para a Espanha já que gostei tanto de lá, que um blogue com o nome de Diário de Lisboa deveria falar é de Lisboa e não de Espanha, que gente como eu (leia-se imigrantes) tinha mais é que sair de Portugal, e deixar de "conspurcar este jardim florido à margem do Tejo" com a nossa presença. Que os espanhóis também não prestavam, que isso e que aquilo. Em resumo, só faltou dizer que o melhor mesmo era arranjar um serrote gigantesco e separar esta pequena tripa de terra chamada Portugal do resto da Europa e ficar flutuando à deriva pelos oceanos com todos os portugueses nas bordas, com varas bem compridas, para impedir que os navios se aproximassem. […]»
abril 21, 2004
MAS A MANIPULAÇÃO, SENHORES. Mas a manipulação não é apenas privilégio da «imprensa desportiva». Para quem ouve os noticiários da rádio (com a montagem de peças cortadas à vontade de cada editor, ou a recolha de depoimentos de várias «personalidades» que estão todas do mesmo lado) ou vê os rodapés das televisões (com adjectivos multiplicados ao sabor de cada hora), por exemplo, a conclusão não é muito diferente. Mas preparem-se. Vem aí mais. É o triunfo do common-sense e das «verdades maioritárias».
FUTEBOL, 2. Quem andou na imprensa desportiva (eu fui director de um diário desses, já agora) sabe que o fenómeno se alimenta de si próprio, mas nunca se devora totalmente; caso contrário, o negócio desaparecia. O negócio da imprensa desportiva não é o da informação, em linhas gerais; é mais o da emoção das primeiras páginas. Discuti bastantes, e havia sempre argumentos imbatíveis: a percentagem de encarnado na primeira página, a percentagem de verde e de azul. É um negócio flutuante que conhece os seus limites e constrói as suas estratégias ao milímetro. Nessa imprensa, há verdadeiros génios que conhecem o valor de um ponto de exclamação, de uma letra que seja, de um pequeno empate.
Nesse campo, o negócio está a correr menos bem para o papel impresso. Se o Benfica fosse campeão, haveria mais vendas de jornais; é uma lógica inacessível a espíritos elevados, mas (pese a repetição) inegociável; quando os números descem, é necessário fazer alguma coisa para mudar a realidade. Daí, tirem-se conclusões precipitadas à vontade, que são as únicas que convém tirar. Pensar muito no assunto é capaz de fazer mal, e o melhor é nunca deixar que a verdade (mesmo a vulgar «verdade desportiva») estrague um bom número.
FUTEBOL. O Bloguítica pergunta se eu não escrevo nada sobre a detenção de Valentim Loureiro. Ó Paulo: mas isto teria de acontecer mais tarde ou mais cedo; infelizmente, acontece apenas com esta dimensão, sendo provável que fique reduzido à pequena futebolada dos clubes da II Divisão B. Já escrevi o bastante sobre as relações entre as câmaras e o futebol; creio mesmo ter sido um dos primeiros portistas a escrever sobre o quanto tinham de justo algumas das decisões de Rui Rio sobre o universo do futebol -- e sobre as relações entre o FCP e a câmara de Rui Rio, sem esquecer os manifestos exageros e ressentimentos que a marcaram.
Casos de corrupção no futebol, e de dimensão muito mais séria, aconteceram já em Espanha, na França e em Itália (mencionemos o «eixo europeu»); o caso que agora está em investigação ou inquirição (eu, esta terminologia passa-me ao lado), por aquilo que se sabe, irá centrar-se na arbitragem, relacionando-se com clubes da II Divisão B e, com pouca probabilidade, com um ou outro «dirigente desportivo». Não deitem foguetes aqueles que acham que «agora vai tudo». Não, «não vai tudo». Este pequeno mundo do futebol, cheio de jantares entre árbitros e «dirigentes desportivos» (uma classe flutuante, hiperbólica), de contactos nos corredores e nos «escritórios de agentes», é apenas um aspecto da novela de costumes que de vez em quando ameaça transformar-se em história policial. Sobre essa matéria, já dei -- e antes de muita gente. Escrevi um livro sobre o assunto. Os «grandes negócios» do futebol têm pouco a ver com «gente do futebol», hoje em dia; a rede de cumplicidades entre o poder político, as grandes construtoras, os «empresários» e o seu marketing, ultrapassam o pequeno delírio provinciano que tem os «dirigentes desportivos» e as suas polémicas como protagonistas. São coisas feitas no fio da navalha, sim, mas também nas franjas da legalidade, aceites pelos poderes políticos (locais e central), detectávais, mas improváveis.
A questão é que a paixão futebolística portuguesa (mais a depressão dos derrotados, a fúria das pequenas multidões, o arrazoado da imprensa e o seu alinhamento clubístico) se alimenta disso mesmo: de suspeitas e de insinuações, de parlapatice e de contínua pressão sobre os «agentes desportivos». Isso há-de, com o tempo, ficar reduzido a nada. Sou um céptico, é o que é.
abril 19, 2004
BAI JUYI, 3. «Densas as ervas na planície,/ cada ano crescem e murcham./ O fogo na pradaria não destrói as suas raízes,/ as ervas renascem ao vento da Primavera./ Aromas novos espalham-se por velhos caminhos,// tufos esmeralda por ruínas desertas,/ estremecendo, sussurrando nostalgia/ num adeus ao viajante, na hora da partida.»
[Tradução de António Graça Abreu.]
BAI JUYI, 2. «Uma nuvem branca no alto da montanha,/ intacta face ao avançar da manhã./ O trigo ressequido no campo/ perde o viço e o verde./ O homem cresce e murcha,/ cumpre e concretiza o quê?/ Não pode transformar-se em chuva/ e seguir o vento Leste.»
[Os poemas de Bai Juyi foram publicados pelo Instituto Cultural de Macau (1991), com tradução de António Graça de Abreu. Bai Juyi nasceu no ano de 772, em Xinzheng.]
BAI JUYI, 1. «Acabo de comer,/ um ligeiro repouso,/ depois levantar,/duas chávenas de chá./ Volto a cabeça,/ olho o sol escondendo-se/ lá longe, a Sudoeste./ O homem feliz lamenta/ a brevidade dos dias./ O homem triste lamenta/ o arrastar dos anos./ O homem nem feliz nem triste/ aceita o que a vida lhe dá,/ o efémero, o constante.»
[Tradução de António Graça Abreu.]
abril 18, 2004
POR CAUSA DE ADONIRAN, AÍ ESTÁ VANZOLINI. Tem mais a ver com Caetano, evidentemente. O Vasco, aliás Tulius Detritus, do Memória Inventada, tem dúvidas sobre a natureza do plágio em relação a Vanzolini, sobre o qual assistimos a discussões que se arrastam há anos; a primeira vez que mencionei a questão de «Sampa» foi exactamente no Aviz, no recente aniversário de São Paulo, em Janeiro deste ano. Eu não mencionei plágio propriamente dito, e não tenho a certeza sobre a autoria, de Caetano ou de Gil («O tipo de melodia e a harmonia são muito à Gil, mas convém ter presente que foi Gil quem ensinou Caetano a tocar "violão"...»). É bom que estas coisas aconteçam para lembrar Vanzolini, por exemplo. De qualquer modo, o pessoal do Memória Inventada assistiu ao concerto de Caetano (o novo livro, Letra só, vem já mencionado aqui -- trata-de de «um dois em um», com as letras e os comentários), no Carnegie Hall, para o lançamento de A Foreign Song, com um deles, o Ivan, a tomar notas e tudo.
ALMOCREVE. O Almocreve das Petas escreve um texto («Passa por mim na livraria») sobre a sua memória das livrarias: «Abençoadas livrarias», diz a certa altura. Eu compreendo-o. As livrarias acrescentaram-nos quase tudo o que não pudemos visitar na vida real; visitei muitas dessas que menciona, visitámos todos. «Nunca fomos vencidos pela fadiga, mas agora mais refinados, gostamos de ficar a escarafunchar nos alfarrabistas, pescar na Feira da Ladra, depenicar em pequenos armazéns ainda escondidos. É sempre bom voltar à Histórica Ultramarina, ao Nunes de Benfica, ao Artes & Letras (descansando o corpo), ao actual Bobone, à Barateira, ao Arquimedes no Carmo, à prelecção com o Ferreira da Livraria Antiga do Carmo e muitas mais. A peregrinação continua.»
OS INTERESSES. A «interferência de juízos de ordem moral», ou de ética, em questões de ordem internacional está muito boa para os blogs e para a inflamação permanente. Uma onda de moral varre a imprensa periodicamente (no nosso caso, contemos ainda com os fóruns das rádios, ouvintes em directo, inquéritos de rua, praças públicas, opiniões unânimes aprendidas de repente pelas cartilhas mais fáceis), sinal de que há consciência, valores, princípios. Mas, sobretudo, comparações: equivalências morais, determinismo, paixões, somos todos espanhóis, somos todos o que for, condenações, palavras de ordem, exploração das «contradições», tudo isso. Esquecemo-nos do resto. Na verdade, o Liberdade de Expressão lembrou o assunto: «E por isso, não adianta argumentar a favor ou contra a (des)união do ocidente. Os países unem-se por interesses. Não se unem, nem nunca se uniram, por coisas tão abstractas como "os valores da civilização ocidental". Até porque, entre esses tais "valores da civilização ocidental" estão o direito ao autogoverno e o direito de cada país seguir uma política externa independente.» Curiosamente, leio na imprensa espanhola várias defesas dos interesses do país «no alinhamento tradicional e boas relações com os países árabes».
INTERVALO PARA HOOLIGAN, ADITAMENTO. Se o Vítor Baía tivesse cometido metade dos deslizes do Ricardo, ah, o que não seria...
ADONIRAN BARBOSA & SÃO PAULO. Para quem tem aquela visão estereotipada de São Paulo, que comece pela música. E até por «Sampa», de Caetano, que surripiou acordes a Paulo Vanzolini (de «Ronda»). Mas eu acrescento sempre Adoniran Barbosa, o autor de «Trem das Onze», «Saudosa Maloca» ou «Samba do Arnesto»; um dos melhores textos sobre Adoniran é de Antônio Candido, o prémio Camões, justamente. Bom. Acaba de sair Adoniran. Uma Biografia (edição Globo), que ajudará a refrescar muita ideia sobre a música popular e sobre São Paulo, aliás.
CUENCA. O Jorge Marmelo leu o romance de João Paulo Cuenca (Planeta/Brasil), Corpo Presente, e deixa uma nota final muito lúcida; para quem viveu estes últimos dias do Rio, não deixa de ser verdadeira. Não sei se desilude, mas é fria como um espelho: «Ao contrário do que Marx supôs e contrariando o que José Eduardo Agualusa imaginou no seu O Ano em que Zumbi Tomou o Rio, o asfalto e favela estão em guerra, mas não há neste embate qualquer sonho de redenção dos oprimidos. O homem da favela está em armas, dispara alucinado para o ar, mas não procura qualquer libertação – quer apenas vender mais droga, enriquecer mais e mais e afastar quem atrapalha. A maioria, os outros, os que haviam de querer tomar o destino nas mãos, vão fintando as balas para ir trabalhar, às vezes sorrindo, às vezes felizes apenas por ainda estarem vivos e poderem continuar a servir quem reina no asfalto.» Não faço esta citação ao acaso. Zuenir Ventura, que escreveu Cidade Partida, uma das mais brilhantes reportagens sobre o mundo da favela e o mundo do crime (não por junto), ou, se quisermos, sobre a violência no Rio, falava disso mesmo. Já é tarde para recomendar dois dos outros livros de que eu e o Jorge gostamos, de Patrícia Melo, Inferno e O Matador, onde essa visão é quase transparente. Quando o Jorge fala da «Copacabana que não vem nos postais» refere-se a esse universo desfeito, perigoso, pobre, desumano -- mas também ao mundo que só chega a Copacabana pelas sombras dos morros, atrás do cheiro da pólvora ou pelos ônibus da madrugada, transportando as empregadas domésticas, o pessoal das limpezas, as babás que conhecem as coberturas de Ipanema ou da Gávea. E, mesmo aí, há gradações: as de Cuenca, as de Paulo Lins, as de Patrícia Melo, e as de Garcia-Roza. O mundo do Comando Capital, o das prisões, o das balas contra passeantes, o dos ataques ao palácio do governo, o dos assassínios nas favelas (entre bandos), não é romântico fora dos livros nem fora dos filmes. Tem uma crueza que Zuenir dizia ser inexplicável à luz da ideia de «luta de classes». Tem servido para muito sacerdócio, mas a evangelização leva a melhor.
INTERVALO PARA HOOLIGAN. Há um blog bem escrito, escreva o que quiser, o Blogame Mucho. Mesmo quando não concordo, está bem escrito e é divertido. Hoje, o Besugo, um dos seus bloggers, escreveu um magnífico texto hooligan sobre o Boavista-Sporting. Não concordo; mas ri-me bastante. O texto leva o título «Brahms e quero que morram» e é muito recomendável para sportinguistas. Gente da moral, abstenha-se.
abril 17, 2004
HILDA HILST, 9. «Toma para teu gozo/ Este rio de saudade./ Nenhum recobrirá teu corpo/ Com tamanha leveza/ E com tal gosto.»
O PERIGO RONDA. Numa visita repentina ao Homem-a-Dias (que se mantém inactivo), fiquei preocupado com o anúncio Blogspot que encimava a página: «For Sale: Casa do Benfica. A new website for you to buy and use for yourself.» Acho isto grave, não apenas para a honorabilidade do Alberto, mas também para os seus amigos. [Já agora, uma informação: o site está à venda por 5.000 euros, o que é uma roubalheira justificável. Quem sabe se o Golpes de Vista não quer comprar o site? Como diz a publicidade, «they are a place for fans to meet, drink and buy merchandise. This is the one and only Casa do Benfica and it's for sale!»]
LIVROS DA MINHA VIDA. O capítulo VI de Os Livros da Minha Vida, de Henry Miller (edição Antígona, tradução de Ana Bastos) leva o título «As Influências» (mas os melhores de todos são o primeiro, «Eles estavam vivos e falavam comigo», e o dedicado a Rider Haggard), e descubro nele uma tentação curiosa: a de fugir à influência. O tema é longamente comentado por Harold Bloom, que escreveu sobre a «angústia da influência». Miller enumera os seus autores (e os seus não-autores, como Poe, Jack London, Hugo, Kipling ou Conan Doyle) e sente-se essa angústia, mesmo quando diz que essa lista pode constituir a sua «árvore genealógica»; mas o seu problema é outro, e não está muito distante do que Bloom escreveu: ele quer é saber que livros leram os seus autores de preferência (de Rimbaud a Dostoievsky, por exemplo). Não há angústia literária semelhante: saber que influência estamos a sofrer quando estamos sob outra influência.
Mas há uma nota pessoal interessante que Miller deixa cair: a sua admiração por Knut Hamsun. Hamsun é um dos grandes escritores europeus (teve o Nobel e Pan e Mistérios foram publicados em Portugal pela Guimarães há muitos anos). De certo modo, pende sobre ele a mesma acusação que desvaloriza tremendamente a figura de Heidegger, uma ligação ao nazismo. Perdoando, mas não esquecendo; Hamsun reinventou o mito do homem numa Europa que estava a caminho do racionalismo e Pan é um livro a redescobrir. A sua dor mortal tem o tamanho dos fiordes, nas suas páginas sente-se essa ventania.
Outra nota é a forma como A Morte em Veneza («uma peça de papelão», inteiramente de acordo), de Mann, se desmoronou, não resistindo a uma segunda leitura. Por acaso, sempre achei A Morte em Veneza um conto cheio de exibicionismo.
OZ. Leio as páginas finais de O Mesmo Mar, de Amos Oz (edição da Asa): quando estamos diante de um livro assim desconfiamos mais das certezas absolutas que conduzem à crispação e ao ridículo. E sente-se uma dor muito aguda, mas isso é outra conversa.
SARAMAGO E DURÃO. Vai por aí uma grande onda de indignação sobre o cachimbo da paz fumado por Saramago e por Durão Barroso. Saramago foi vítima de um governo – o de Cavaco – que se permitiu deixar à solta um cavalheiro praticamente inimputável como Sousa Lara. O homem podia pensar uma coisa daquelas – que o Evangelho era blasfemo –, mas nada o autorizava a erguer o estandarte religioso naquilo que era uma questão literária. Saramago saiu beneficiado na altura, bem vistas as coisas, do ponto de vista do marketing pessoal e literário. E, de facto, irritou-se com toda a razão, saiu de Portugal e fez bem; naquelas condições, com o Nobel praticamente debaixo do braço, qualquer pessoa teria feito o mesmo, ou seja, recusar-se a aceitar ter como governante uma abécula gritante como Sousa Lara, num país que já queimara muitos livros ao longo da história e que andara a pintar rótulos de «blasfemo» por todos os arraiais que lhe apeteceu. O erro foi cometido por Cavaco e por Santana Lopes, então secretário de Estado da Cultura, que não quiseram pôr a história em pratos limpos. Vaidade por vaidade, está tudo dito.
Eleitoralismo, agora? Provavelmente. Mas num país que está a começar a dar-se bem com a crispação a todo o custo, o gesto não é desprezível. E não havia necessidade nenhuma de o gesto de Sousa Lara – que entretanto se dedicara à Moderna e a pregar o milenarismo (lembram-se daquelas cruzes gigantescas que aguardavam a passagem de milénio?) – ficar como uma marca da «identidade nacional». Sobre o resto, evidentemente que um almoço nunca é de graça.
REAL. Para um adepto do Real, o que está a acontecer ao clube é mais do que triste. Uma equipa daquelas está transformada numa banda de província, descaracterizada e condenada a tocar músicas de baile de bombeiros; deixaram o maestro Queiroz (o fabuloso Prof. Pardal) escolher as suas próprias pautas. E é isto.
O SONHO BÍBLICO. A verdade, verdade inteira, é que o sonho do «Israel bíblico», com a Judeia e a Samaria (em parte recomposto em 1967), deixou de ser um sonho para judeus – tirando o facto de, onde estão dois judeus, haver sempre quatro opiniões. A leitura da imprensa conservadora americana dá-nos uma ideia clara: é um sonho dos evangélicos de direita. Com o apoio integral de Bush ao projecto de Sharon, sabe-se que um deles representará o papel do general romano Tito. Vejam o que ele fez na altura.
Outra verdade elementar é que o «direito de retorno» é absurdo nas actuais circunstâncias; e as fronteiras de 1947 – as do sionismo original –, são impossíveis hoje. Mas as fronteiras de 1967 são uma meta de compromisso. Já se sabe que os países árabes e as ditaduras da região ficarão descontentes em qualquer circunstância, porque a existência da «entidade sionista» é apenas uma desculpa para organizar multidões. De resto, o mapa que está colado na manga esquerda da farda de Arafat (o do estado palestiniano) vai do Jordão ao Mediterrâneo. É absurdo contra absurdo.
VOLTAR. Se volto, é para regressar logo depois; só se regressa a casa, e ela está onde estão as árvores que se amam, o céu, a música, o céu de novo. Faltam sempre as palavras para falar do lugar onde está tudo, a janela para a luz do dia.
abril 14, 2004
OS ÓCULOS DE VITALINO. Ah, meu bom Paulo, esse discurso vai aumentar, vai aumentar. Por toda a Europa e durante bons anos. E, à falta de surpresas verdadeiras, ficam as surpresas da demagogia. Nada de inesperado. A situação, sim, é mais grave do que se pensava.
STEINER. Caro João: O «we have no more beginnings» de Steiner é, precisamente, o centro de uma tragédia. E, também pode ser, dessa tragédia. Razão porque o governo de Lula não pode começar: ele já começou uma vez. O facto de Steiner se ter interessado de forma tão dramática pelas questões de tradução e de precisão tem a ver com isso mesmo. Um dos problemas das utopias do século XX, lidas ao longo da história política recente, toca nesse ponto misterioso: por que razão se insiste tanto na validade das utopias depois de se verificar a sua corrupção e o seu rasto de caos? Saramago deu uma resposta, na altura da queda do regime soviético: não, «ainda não era aquilo», mas a utopia continua de pé. Mas, se ainda não era aquilo desde há tanto tempo, porque levou outro tanto tempo a admitir a existência dessas ruínas? Lendo bem as três utopias centrais da Europa (a de More, a de Campanella e a de Bacon), elas não são apenas o retrato desse nenhum lugar de onde deriva a própria palavra utopia, mas a insistência em nenhum homem possível, pois nenhuma delas é humana: imensamente religiosas, têm no centro um Estado poderoso (para Campanella e Bacon, sobretudo), uma fé demolidora, uma ideia de sociedade uniforme ou uniformizada, relacionada não apenas com o bem comum mas, também, com o comportamento comum (para coisas como a oração, o sexo, a procriação, a música, o trabalho, a festa, a alimentação, a educação dos filhos). Mas, sobre todas as coisas, a ideia de que as pessoas são sensatas e de que viverão de acordo com os seus princípios (Rabelais, rindo das utopias, sabia que isso nunca iria acontecer, mas ele tinha vivido depois de Calvino e da violenta Genebra de Calvino, onde toda a dúvida era condenada). Justamente, uma das coisas que inquieta Steiner (sobretudo em O Castelo do Barba Azul) é a natureza do absurdo que os homens são capazes de gerar. Poderemos começar outra vez?
HILDA HILST, 8. «Lembra-te do anónimo da Terra/ Que meditando a sós com os seus botões/ Gravou no relógio das quimeras:/ “É mais tarde do que supões.”» [Cantares de Perda e Predileção, 1983]
BERNARD LEWIS, 2. Entrevista de Bernard Lewis à Folha de São Paulo (revista Mais!), por Eduardo Szklarz; alguns extractos (não está online):
- Em Os Assassinos [edição Jorge Zahar], o senhor diz que os membros dessa seita xiita do século X não esperavam sair vivos das missões, mas não se suicidavam. Como explica os suicídios actuais?
- De acordo com os ensinamentos islâmicos, o suicídio é um pecado capital. Qualquer pessoa que cometa suicídio vai directo para o inferno e a sua punição será a eterna repetição do acto que causou a sua morte. Os «assassinos» não cometiam suicídio. Eles entravam no local da missão sabendo que não poderiam escapar, mas não se matavam com as próprias mãos. Isso é novo e muito estranho à lei islâmica.
- O que o explicaria, então?
- Essa é uma das muitas introduções ao Islão feitas pelo wahhabismo, uma seita muito extremista que apareceu no final do século XVIII. Ela se manteria marginal não fosse por duas razões: a criação do reino saudita, governado por Ibn Saud, e a imensa riqueza obtida por ele graças ao petróleo. O wahhabismo se transformou numa força mundial no Islão, com uma força tremenda sobretudo sobre a diáspora muçulmana. Os países islâmicos conseguem exercer algum tipo de controle sobre ele, mas em países não-islâmicos não existe esse controle sobre o que é ensinado nas escolas. Há um ensino muito mais extremo em escolas muçulmanas da Europa e da América do que na maioria dos países islâmicos.
- Por que a questão palestiniana tem levado tantas décadas para se resolver?
- Essa é uma parte essencial do aparato político dos países árabes. Os governantes precisam desses agravos e ressentimentos para desviar a ira do povo. Caso contrário, eles mesmos serão objecto da ira. Nos países árabes, a queixa a respeito de Israel é a única que pode ser expressa livremente. Mas o problema palestiniano é apenas um entre os vários que vemos ao longo das fronteiras do mundo islâmico, como o Kosovo, Bósnia, Tchechénia, Caxemira, Sudão ou Timor. Todos esses pontos são manifestações de um mesmo grande problema entre o Islão e o não-Islão.
- Por que a questão palestiniana recebe mais atenção?
- Por duas razões. A primeira é que Israel é uma democracia, então os média podem entrar e sair, fazer o seu trabalho livremente. Israel é o país com a terceira maior presença de jornalistas em todo o mundo, atrás apenas dos EUA e de Inglaterra. A segunda razão é que os judeus estão envolvidos. E judeus são notícia. A vantagem da questão palestiniana é que os agravos podem contar com uma resposta imediata na Europa. Quando lutam contra os cristãos, aí é mais delicado. Não podem esperar que os cristãos se juntem a eles. Houve recentemente um ataque terrível no oeste do Sudão, mas ninguém lhe deu a mínima atenção.
- Israel pode ter êxito mantendo a política de assassinatos selectivos, como o do xeique Ahmed Yassin?
- Não tenho a informação necessária. Mas acho curioso que os presidentes Bush e Clinton estejam sendo condenados por não terem feito com Osama Bin Laden aquilo por que Ariel Sharon está sendo condenado em relação a Yassin.
- O senhor foi alvo de críticas de Edward Said, que condenou o preconceito e a ignorância dos orientalistas ocidentais em relação às culturas árabe e islâmica…
- Edward Said estava certo ao condenar certas visões sobre o Islão. Ele estava errado ao atribuir essas visões a mim e a outros orientalistas. Nem todo o trabalho orientalista é baseado no preconceito e na ignorância. Mas posso entender a atitude de Said. Era um professor de inglês. E tendemos a julgar os outros por nós mesmos. Ele sem dúvida presumiu que os não-árabes que estudam árabe estão inspirados pelas mesmas motivações e atitudes que ele teve em relação à história e à literatura de Inglaterra.
[Folha de São Paulo, revista Mais!, 11-04-2004]
BERNARD LEWIS, 1. Já tinha mencionado esta entrevista de Bernard Lewis à Folha de São Paulo (revista Mais!), por Eduardo Szklarz; alguns extractos (não está online):
- Que conclusões podem ser tiradas a partir dos atentados ocorridos em Madrid?
- Tenho medo de que pessoas no Oriente Médio tomem esses acontecimentos como uma vitória dos terroristas. Já vimos isso quando os israelitas se retiraram do Líbano. Temo que essas pessoas vejam nas eleições espanholas a seguinte resposta aos terroristas: «Tudo bem, faremos o que vocês querem, apenas nos deixem em paz.»
- Até que ponto grupos como a Al Qaeda e o Hamas são partes do Islão?
- Hitler e os nazis não foram partes do cristianismo, mas certamente eram partes da cristandade. Eles governaram num país cristão, numa sociedade cristã. Creio que esses grupos são islâmicos nesse sentido. Ao tratar do Islão, estamos falando de catorze séculos de história, mais de 1,3 biliões de pessoas e 57 países, além de minorias importantes em Estados não-islâmicos. Por isso, é difícil fazer declarações genéricas. Mas concordo que a maioria dos muçulmanos não é fundamentalista, a maioria dos fundamentalistas não é terrorista, mas a maioria dos terroristas é muçulmana actualmente. Muitos perguntam: «Por que você os chama de terroristas islâmicos e não chama os bascos e os irlandeses de terroristas cristãos?» Porque os bascos e os irlandeses não reivindicam estar lutando pela cristandade. Se eles dizem que estão cometendo esses actos em nome do Islão, isso é o que os média correctamente relatam.
- Como tem agido a imprensa na cobertura do terrorismo?
- A imprensa nos dá uma gama muito ampla de respostas, mas eu diria que muitas delas estão ajudando e incentivando os terroristas, ao dizer a eles que estão ganhando. No caso do Iraque, tudo de mau que acontece é reportado prontamente e em detalhes. Mas a imensa melhoria do Iraque, que inclui serviços públicos e educação, quase não é mencionada por grande parte dos média.
- Existe a possibilidade de que o ayatollah do Iraque chegue ao poder justamente por meio da democracia. Os EUA se veriam, então, diante de um novo Irão?
- Esse é um perigo. Mas deixe que eu me expresse desse modo: democracia é um remédio forte que deve ser dado em doses pequenas e graduais. Se der uma dose grande muito rapidamente, você mata o paciente. Democracia requer habilidade, experiência e todo o tipo de técnicas totalmente desconhecidas na maioria dos países do Oriente Médio. Não há sentido em já ter eleições num país que nunca teve procedimentos eleitorais. Ter eleições livres e justas não é a inauguração, mas a culminância do processo democrático.
abril 13, 2004
INTERFERÊNCIA DE HOOLIGAN. No meio de tudo, um dos empregados da loja, vendo o sotaque, sorriu: «Então, este ano ganhamos a Champions League?» O jogo do FC Porto não foi transmitido pela RTPi, mas sim pela televisão brasileira: nos primeiros cinco minutos o interesse dos comentadores centrou-se nos brasileiros do Olympique de Lyon; depois, a partir dos 15, passou para os brasileiros do FC Porto; a partir da segunda parte, transferiu-se para o FC Porto. «Este ano ganhamos a Champions» está no top das saudações locais, esta semana, quando ouvem o sotaque. Tento dizer que é preciso esperar, ter calma, etc. Nada. Como se convence um brasileiro a ser moderado em matéria de futebol? Aliás, isso não vai ser problema tendo em conta a presença de brasileiros no Deportivo. No futebol, eles ganham de qualquer modo.
LIVROS NO MEIO DA CHUVA. Mas houve outras surpresas, depois de eu próprio ter escrito sobre «clássicos» no JN: nas estantes de livros mais rodados encontrei as poesias do Abade de Jazente, as obras do Padre Manuel Bernardes, umas três edições diferentes de Jerónimo Baía e seis da Marília de Dirceu (junto com uma biografia de Gonzaga), além de duas do Espírito das Leis, de Montesquieu. Isaiah Berlin traduzido na banca dos mais vendidos (lembrança para o Carlos), Correia Garção num volume, a biografia de Eça de Maria Filomena Mónica em destaque, entre muitas outras coisas.
PETER BURKE. Ontem fui à melhor livraria generalista de Salvador, que revelou um pormenor estranho -- a popularidade de Peter Burke. Mencionei o nome e, de cinco estantes diferentes, com rapidez, vieram cinco livros diferentes. O último deles (edição Jorge Zahar) é sobre a natureza do conhecimento, de Guttenberg a Diderot. Numa entrevista recente (no Estado de São Paulo), Burke anuncia o próximo livro, sobre Gilberto Freyre. Depois de ter lido alguns «reparos» sobre Freyre, aqui no Brasil (vindos da esquerda, sim), suponho que a popularidade de Burke vai descer -- como é possível um scholar (ainda por cima de história cultural) interessar-se por Freyre?
abril 12, 2004
DE QUALQUER MODO. Apesar do atraso na leitura dos jornais portugueses do dia, há coisas que chegaram à mão primeiro: na Folha de São Paulo (na «Mais!»), uma entrevista com Bernard Lewis; no Estadão, uma reportagem sobre as últimas ocupações de terras do MST e duas brilhantes críticas de livros no caderno de Cultura; no Globo, desilusão pela interrupção da crónica de Verissimo (desencantado com o hemisfério, regressa só em Maio) e pela repetição até à enésima lágrima da saudade carioca de João Ubaldo. N'A Tarde, um dossier sobre Kurt Cobain (não sabia quem era). Voltarei à entrevista de Lewis.
ANTÓNIO BARRETO. Leio a imprensa toda com atraso, o que me deixa a crónica de António Barreto, no Público, para depois. Mais uma vez, a deste domingo é notável.
O REGRESSO DA TRAGÉDIA. Miguel Portas na Festa do Bloco: «Não estamos aqui para outra coisa que não seja transformar a sociedade.»
abril 11, 2004
CARTAS DO BRASIL: LULA. Não, não vou dizer que Lula faz bem em fazer o que faz, e que é pragmático e que faz cedências. Tudo o que está a passar-se no Brasil estava já inscrito nos últimos dias da campanha Lula-Serra. Vão ver, passado ano e meio. Nessa altura, num texto do JN, escrevi «oxalá me engane» (acerca dos planos do PT, das suas alianças, dos planos de propaganda, do «Fome Zero» inútil e invisível) -- tinha sido a apoteose da «patrulha ideológica» local, quando todo o PT e «pessoal das artes» tentou exterminar aquela actriz de telenovela, Regina Duarte, que disse temer, mais do que a eleição de Lula, a subida do PT ao poder; ela limitara-se a comentar, no fundo, as declarações entusiastas de Heloísa Helena, por exemplo, que já durante a campanha disse esperar o Brasil emitisse um mandato de captura internacional contra o FMI. Luciana Genro e o deputado Babá foram apenas aditamentos que foram crescendo na imprensa. A imagem messiânica que toda a esquerda projectou em Lula foi uma injustiça para o próprio Lula: ele estava encarregado de realizar, no Brasil, aquilo que a esquerda tinha falhado noutros países. Era mais do que responsabilidade: era o pedido de uma redenção que os dias actuais demonstram ser impossível. E, como escrevi ontem, o que a esquerda pede a Lula é que reaplique algumas das receitas da ditadura de 64.
ABRIL, 2. Para quem não se lembra, «Sebastian», dos Cockney Rebel, e «Seasons in the Sand», dos Terry Jacks, estavam no top em Abril de 1974. Aguentaram-se ainda umas semanas.
ABRIL. Não compreendo a indignação sobre o 25 de Abril e os festejos oficiais a não ser como uma reminiscência do republicanismo que todos os anos vai em romaria lançar foguetes nas praças dos municípios, defender o 5 de Outubro e dar vivas ao dr. Afonso Costa. Se tivesse de acrescentar qualquer argumento, ele estava na tese de António Barreto sobre as décadas prodigiosas em que Portugal se transformou: o País realizou em duas décadas (década e meia, para ser mais preciso) aquilo em que outros países europeus se ocuparam em muito mais tempo. Já se sabe que isso foi possível graças ao 25 de Abril -- é um lugar-comum medíocre mas vale a pena dizê-lo uma vez por ano. Obrigado a todos, trinta anos depois.
abril 10, 2004
CARTAS DO BRASIL: CAETANO. Está bem, não vale a pena discutir o talento de Caetano Veloso. A imprensa está a fazer um «ruidinho» pelo facto de não lhe ter sido atribuído o visto para entrada nos EUA logo à primeira, depois de o cantor ter dito que «Bin Laden era bonito» (leio a notícia no Estrada do Coco, que acrescenta ainda outros pormenores). Não é, parece-me, um novo critério para concessão de vistos, mas convenhamos que há irritações no ar. «O senhor, que acha daquele sujeito que reivindicou os ataques de 11-S?» «É um cara bonito.» Já imaginei coisas mais inverosímeis do que Caetano nos braços de Ayman al Zawahri, só que as declarações de Caetano, em 2001, vinham embrulhadas em outras. Há, aliás, rumores de que, farto do anti-americanismo primário e idiota, ele está de novo fascinado com a América. Digamos que, agora, se penteia para aquele lado. Fica-lhe muito melhor.
CRÍTICA. No livro de Jacques Barzun, Da Alvorada à Decadência (edição da Gradiva), há uma observação interessante sobre a natureza da análise literária no Renascimento – teria nascido aí como uma especialização. Barzun relembra que o primeiro grande exercício de análise veio com os comentários de Dante sobre os seus próprios poemas (os de Vita Nuova). O método seria banal: passar a prosa «uma explicação» de cada grupo de versos, por exemplo, e por aí fora, sucessivamente. Barzun diz, com uma ironia que dificilmente lhe desculparam os bonzos: grande parte análise não visa tornar as coisas mais simples – mas, pelo contrário, transformar coisas que são apenas interessantesem coisas difíceis. De facto, trata-se de um negócio.
PÁSCOA EM MANGA ROSA. Os frutos não fermentam ao sol, nem quando o fim da tarde ilumina Manga Rosa daquele lado da pequena floresta, a que se estende pelas colinas. Escrevo «fim da tarde» só para dizer «tranquilo», porque umas coisas não se podem dizer e outras podem – e o lugar é bonito, tranquilo, cheio de árvores: a abrir, uma mangueira frondosa. Depois, é o cheiro dos frutos: acerola, carambola, fruta de conde, jenipapo, goiaba, ameixa, maracujá, lima, limão, laranja. Um campo de abacaxi. E manjericão, junto dos muros. E pássaros, rondando os coqueiros. Folhas de palma. Longe de qualquer coisa.
CARTAS DO BRASIL: PT & PUB. O escândalo brasileiro do momento já passou. Depois do «caso Waldomiro & Dirceu» (que ameaça regressar a qualquer momento), a questão é a do anúncio televisivo preparado pelo governo para falar do sucesso da «política agrícola familiar». O anúncio era bonito (foi retirado ao fim de dois dias de exibição) e mostrava uma exploração agrícola com alfaces viçosas e agricultores sorridentes. A Folha de São Paulo revelou que se tratava de figurantes e não de agricultores – e que a «exploração agrícola familiar» era propriedade de um empresário, que ficou ligeiramente aborrecido com o aproveitamento. Seja como for, nada de mais para um país onde a política se faz de propaganda televisiva e onde o PT usou e abusou dela, antes e depois de ser governo (o partido de Lula acabou de contratar outro novo publicitário e de indexar cerca de vinte milhões de reais à verba de «imagem», à custa dos contribuintes). O «Fome Zero», outra das grandes invenções da máquina de publicidade do PT, também já foi retirado do ar, bem vistas as coisas.
Mas o 1.º de Maio dos sindicados da CUT, petista, é patrocinado pelo Banco do Brasil, pela Caixa Económica e pela Petrobras. Também são dinheiros públicos, evidentemente, uns bons milhões de reais. O líder da CUT já anunciou o programa das festas: exigir que o governo deixe de pagar os juros da dívida externa e aplique esse dinheiro na administração pública, para «gerar mais emprego». Foi o que fizeram os generais durante a ditadura, nada de original.
O NOVO LIVRO DE DALTON TREVISAN. Ele escreve curto em Arara Bêbeda. Frases curtas. Textos curtos. Como um vampiro com medo da tinta.
abril 05, 2004
CRUZEIRO DO SUL. Depois do Índico, estou sob os céus do Cruzeiro do Sul. Calor (ou seja, tempo bom), sol, sombras, imprensa que discute Saramago e as finais dos campeonatos estaduais de futebol.
VOTO EM BRANCO. Vital Moreira não concorda com a hipótese da abstenção em vez do voto em branco defendido por Saramago – do seu ponto de vista, certamente que tem razão. Como escrevi no artigo do JN, a abstenção é uma recusa muito mais radical e, aí sim, totalmente «fora do sistema». Eu não vejo o voto em branco como um cartão amarelo à democracia – mas sim como voto num outro partido.
O livro de José Saramago mostra que a sua desconfiança nem sequer se limita à democracia como sistema político (sinceramente, a ideia de uma democracia fora da prática de eleições para um parlamento parece-me impraticável), mas à própria natureza humana, aproximando-se de um pessimismo antropológico a posteriori, ou seja, enunciado depois de ver os «descaminhos» que as coisas tomaram – fica do lado do ressentimento, da crispação contra «os políticos» que discursam em contraponto, «os eleitores» que elegeram os parlamentos, «os jornalistas» que permitiram que as coisas chegassem a este ponto, «os intelectuais» que não se opuseram «à hecatombe anunciada», «os rapazes» que ouvem rock, «as religiões» que defendem um deus absurdo. A encruzilhada de Saramago é evidente: existe depois das ruínas da utopia e do comunismo (que «não era isto», mas que continua a ser defensável), e assenta numa profunda bondade impossível. O mundo anda às avessas. Mas os personagens de Levantado do Chão já não são os personagens de Levantado do Chão: o capitalismo corrompeu-os, no Alentejo como no Leste europeu, e isso é tristeza bastante. Esta é a ideia de Saramago, e não se pode duvidar da sua generosidade. Mas podemos duvidar das suas ideias, o que é uma coisa inteiramente diferente. Eu não duvido da sua generosidade – mas tenho demasiadas dúvidas sobre as suas ideias. E, no caso presente, muitas dúvidas sobre o seu romance. Mas isso é outra coisa completamente diferente. É literatura. E, em matéria de literatura, este livro é um caso encerrado. Tudo o que nele é literatura está esmagado pelo peso superlativo da moral e da pregação.