HILDA HILST, 5. «Não me procures ali/ Onde os vivos visitam/ Os chamados mortos./ Procura-me/ Dentro das grandes/ águas/Nas praças/ Num fogo coração/ Entre cavalos, cães,/ Nos arrozais, no arroio/ Ou junto aos pássaros/ Ou espelhada/ Num outro alguém,/ Subindo um duro/ caminho// Pedra, semente, sal/ Passos da vida./ Procura-me ali. Viva.»
Aviz
«We have no more beginnings.» [ George Steiner ]
janeiro 31, 2004
NOSTALGIA DO DESASTRE. «A conjugação de um extremo dinamismo técnico-económico com uma pesada dose de imobilidade social forçada, conjunção sobre a qual assentou um século de civilização burguesa e liberal, deu origem a uma mistura explosiva. Causou na vida da arte e da inteligência certas respostas peculiares e, em última análise, devastadoras. São essas respostas peculiares que, em meu entender, constituem a significação do romantismo. Foi a partir delas que se engendrou a nostalgia do desastre.» {George Steiner}
janeiro 29, 2004
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE SOBRE HILDA HILST «Abro a folha da manhã/ Por entre espécies grã-finas/ Emerge de musselinas/Hilda, estrela Aldebarã.// Tanto vestido enfeitado/ Cobre e recobre de vez/ Sua preclara nudez/ Me sinto mui perturbado.// Hilda girando boates/ Hilda fazendo chacrinha/ Hilda dos outros, não minha/ Coração que tanto bates.// Mas chega o Natal/ e chama a ordem Hilda./ Não vez que nesses teus giroflês/ Esqueces quem tanto te ama?// Então Hilda, que é sab(ilda)/ Manda sua arma secreta:/ um beijo em morse ao poeta./ Mas não me tapeias, Hilda.// Esclareçamos o assunto./ Nada de beijo postal/ No Distrito Federal/ o beijo é na boca e junto.»
HILDA HILST, 4. «Ai, ai de mim. Enquanto caminhas/ Em lúcida altivez, eu já sou o passado./ Esta fronte que é minha, prodigiosa/ De núpcias e caminho/ É tão diversa da tua fronte descuidada.// Tateio. E a um só tempo vivo/ E vou morrendo. Entre terra e água/ Meu existir anfíbio. Passeia/ Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:/ Noturno girassol. Rama secreta.»
[de Júbilo Memória Noviciado da Paixão, de 1974]
HILDA HILST, 3. «Antes que o mundo acabe, Túlio,/ Deita-te e prova/ Esse milagre do gosto/ Que se fez na minha boca/ Enquanto o mundo grita/ Belicoso. E ao meu lado/ Te fazes árabe, me faço israelita/ E nos cobrimos de beijos// E de flores// Antes que o mundo se acabe/ Antes que acabe em nós/ Nosso desejo.»
[de Júbilo Memória Noviciado da Paixão, de 1974]
OS TELHADOS DO VATICANO, 2. O Carlos C. do A Quinta Coluna não apreciou as três linhas que escrevi sobre «os telhados do Vaticano» a propósito da acusação à indústria farmacêutica (insisto, ó almas!, que não me parece tratar-se de opinião do Vaticano mas sim de um padre jesuíta americano, o que é bem diferente). O Carlos acha que, a mim, «não importa saber (mesmo se para refutar) as razões da Igreja contra o preservativo como meio de combate à propagação da sida». E tem toda a razão; as razões morais elevadas acerca do uso do preservativo, para quem conhece África, desaparecem rapidamente. Depois de passar pelo Zaire, pela Costa do Marfim, pela Guiné, pelo Ruanda, por Moçambique ou por Angola, confesso que desaparecem — para ser claro, explicar o que é a monogamia, a abstinência sexual e outros valores essenciais, a uma população que vive noutra cultura, não resulta. Mesmo concordando (como escrevi) que os países mais atingidos têm o direito de desrespeitar as patentes dos medicamentos usados no combate à doença (trata-se essencialmente de retrovirais), também me parece que estamos diante de um caso de «desgovernança» (que termo…) na maior parte desses países: seria bom que o Vaticano, por exemplo, declarasse como participantes no genocídio de África os governos que desviam fundos entregues por outros países ou instituições internacionais e que mantêm as suas populações abandonadas e morrendo de fome. Combater esse flagelo pode significar uma parte do caminho andado para combater a sida, por exemplo. O Carlos C. escusa de mencionar o papel de organizações religiosas católicas (e de leigos) em África, que foram e são fundamentais para minorar alguns destes problemas. Graças à sua generosidade é possível hoje termos escolas em lugares recônditos de Moçambique ou de Angola, por exemplo. Ponto assente.
Quanto refere, no seu texto, que «quando se trata de bater na Igreja, qualquer razão serve», eu suponho, caro Carlos, que não estás a referir-te a mim, mas pronto; ou qualquer razão serve?
HILDA HILST, 2. É um poema de Hilda Hilst, de Do Desejo [1992]:
«Que canto há de cantar o que perdura?/ A sombra, o sonho, o labirinto, o caos/ A vertigem de ser, a asa, o grito./ Que mitos, meu amor, entre os lençóis:/ O que tu pensas gozo é tão finito/ E o que pensas amor é muito mais./ Como cobrir-te de pássaros e plumas/ E ao mesmo tempo te dizer adeus/ Porque imperfeito és carne e perecível// E o que eu desejo é luz e imaterial.// Que canto há de cantar o indefinível?/ O toque sem tocar, o olhar sem ver/ A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis./ Como te amar, sem nunca merecer?»
HILDA HILST. Por falar de Adoniran Barbosa (cujas canções foram citadas pelo Alberto a propósito de São Paulo, lembrei-me de Hilda Hilst, uma das grandes escritoras brasileiras da segunda metade do século XX (foi com ela uma das entrevistas que mais gostei de publicar quando estive na Ler). Alguns de seus poemas foram para músicas de Barbosa (um deles está aqui, trauteado pelo próprio Adoniran).
SÃO PAULO, 2. O Alberto Gonçalves fez justiça a Paulo Vanzolini (e a Adoniran Barbosa também, já agora), um compositor de eleição, autor de uma canção fantástica, «Ronda».
VÁRIAS TESES SOBRE TOLKIEN. De vez em quando, nos últimos dias, há animação no Blogame Mucho a propósito de Tolkien. Se bem percebi, há várias teses: 1) «Eu também não gosto dos livros do Tolkien e, no entanto, nunca os li.»; 2) «Não se pode afirmar em consciência que não se gosta de uma coisa sem a ter experimentado, visto, lido ou ouvido.»; 3) «Eu tentei ler Tolkien. Umas três vezes. Mas a verdade é que aquilo não se deixa ler.»; 4) «Da próxima vez que o meu filho mais velho me disser "eu agora ando a ler Tolkien", com ar de iluminado, atiro-lhe com o livro de matemática à caixa craneana.»; 5) «Dizer que nunca se leu o Tolkien mas que aquilo é uma profundíssima seca lembrou-me S.A.R. a dizer que nunca tinha lido o Saramago mas que o O Evangelho segundo Jesus Cristo era uma merda.»; 6) «Nunca tive, não tenho e não terei jamais, pachorra para ler Tolkien. E nem sequer perco tempo a discutir-lhe o tamanho do estro. Aquilo é uma profundíssima seca esotérico-mitológica.» Ora aqui está um debate.
OS TELHADOS DO VATICANO. O Público noticia que o Vaticano, num acto de coragem muito louvável (aliás, um jesuíta americano, o que muda muito o tom da notícia) culpa as multinacionais farmacêuticas de estar a causar uma catástrofe em África, ao não baixar os preços dos medicamentos para o controle da sida. Os dados são assustadores e os governos têm, nestas circunstâncias (à semelhança do que foi feito no Brasil), todo o direito de desrespeitar as patentes dos retrovirais. No entanto, o Vaticano tem, neste campo — e ao contrário das organizações religiosas presentes no terreno —, uma política muito pouco aceitável: é contra a distribuição de preservativos por razões morais, e tem uma atitude muito tolerante com regimes ditatoriais que se desviam os fundos que recebem de países e organizações internacionais.
A NOITE, O QUE É?, 39. Por vezes, mais uma memória da chuva dentro das paredes da casa, luz, conversas, silêncios, risos, hábitos. As coisas vêm ter connosco numa língua estranha, delirante, quando não conseguimos dormir por algum motivo. Volto atrás. Volto sempre atrás, nestes dias, reconstituindo frases e retratos e esse último instante de despedidas. A noite regressa. Duas noites, dois mares.
FUNERAIS. Fora de Portugal, não assisti ao jogo V. Guimarães-Benfica, nem pela televisão. Mas o Paulo Gorjão fez o favor de reunir alguns exemplos de blogs que se manifestaram contra a sandice em que se transformou a tragédia de Miki Féher. Depois de ler a imprensa, o retrato ficou completo. Não vale a pena explorar as contradições (habituais nestas circunstâncias, mas deselegantes): sobre o valor de Féher, o que seria o seu destino no seu clube actual, etc. Ao ouvir discursos institucionais, ler condolências públicas, oficiais, lamentos repentinos, vox populi, mensagens presidenciais, fica-se com a ideia de que Portugal entrou em choque (mais do que com a morte trágica de um futebolista) consigo mesmo. Como se precisasse de comover-se mais do que seria verdadeiro. E há sempre aquelas vozes que escolhem o pior momento para falar daquilo que mudará «no futebol português». Nada mudará. O espectáculo devora-se a si mesmo. Até no seu excesso de sensibilidade.
PAÍS SONSO. O Santa Ignorância escreve, no seu texto «When The Meninas Came To Town», que agora, passados uns tempos sobre a reportagem da Time sobre as meninas de Bragança, não se ouve ninguém protestar contra as notícias de rusgas, detenções, encerramentos de «casas de alterne». Meu caro: somos um país sério, em pantufas, metidos connosco, sentado diante da televisão. A Time não tinha nada que nos vir incomodar com aqueles retratos, aquelas declarações citadas entre aspas (como manda a decência jornalística), aquelas revelações. O que é preocupante, no entanto, não é a confirmação da existência de «meninas de Bragança» pelo país fora. Até dá um certo colorido. Mas a contínua referência da imprensa aos «empresários da noite», essa sim, mostra uns retratos de escravocratas, «homens de negócios flutuantes», traficantes. Todos eles citados, escondidos. Ficariam bem num romance de Jorge Amado, se o retrato tivesse uma luz de decência ou de malandrice. Mas não: é abjecto, traz tiroteios nas discotecas, mulheres mantidas prisioneiras em primeiros andares de discotecas de Mirandela ou de outro lugar. Eu também ouvi gente de sacristia a protestar contra a Time (mesmo da imprensa, apesar de a reportagem nunca ter sido desmentida), país sonso, de plástico sujo, incomodado com o espelho.
SÃO PAULO. São Paulo é o demónio dos que gostam do Brasil. A cidade desmente todo «o amor ao Brasil»; na sua constelação de cimento e de vidro, de viadutos e de favelas, de bairros e de zonas, São Paulo é a imagem inimiga de quem vê o Brasil como o paraíso para forasteiros, praias douradas, povo dócil, aromas fortes, perfumes, bossa nova e tudo o que aprendemos sobre ele no nosso longo contacto (contato?) com imagens-feitas. Nelson Rodrigues falava (o texto vem recolhido em O Remador de Ben-Hur de um amigo que, de súbito, deixou um cliente no escritório e partiu de carro para o Rio, a fim de ver o horizonte a partir da Avenida Atlântica. Esse lado de São Paulo como cemitério de horizontes existe desde o primeiro minuto do entardecer, com prédios transformados em heliportos, ruas escorrendo luzes, o centro despovoando; mas é também o primeiro minuto do renascimento da velha São Paulo dos bairros. A visão é romântica, sim, mas gosto desses bairros, dos becos «poloneses», das mesas dos restaurantes italianos nos passeios, dos relvados, das livrarias abertas, dos restaurantes no vigésimo piso (nunca lá fui, a esses, mas imagino), dos candeeiros do Bairro Liberdade, das praças onde há árvores sobreviventes. Pouco resta do paulistano original; séculos de história, de massacres, desafios (bastantes, contra o Rio e o Estado), aventuras, invenções (da arte moderna à acumulação de riqueza), fizeram da cidade tudo aquilo que nós quisermos falar dela e dos seus 450 anos. Não se pode gostar despudoradamente de São Paulo (há sempre aquele senão brutal que nos encosta à violência, ao subúrbio, à pobreza); não se pode detestar ingenuamente São Paulo, ignorando o seu ruído vivo e as várias cidades que lá moram: a portuguesa, a árabe, a italiana, a judaica, a japonesa. E as coisas de que também gosto: os «sebos» (alfarrabistas), uma certa sisudez que faz bem de vez em quando, a Paulista, o Arouche, Sampa, as salas vazias da USP à noite, aqueles que não gostam de São Paulo, aqueles que gostam de São Paulo. [Por brincadeira devia dizer-se também: «E gosto muito da ponte aérea para o Rio, sim.» E citar-se Vinicius: «Sim, São Paulo... a gente começa a andar, a andar, e nunca mais chega a Copacabana..»]
janeiro 28, 2004
REGRESSO. Regresso ao blog com uma sensação estranha. Leio o post de Pedro Mexia de há dez dias: «As palavras que mais odiei em 2003: “polémica”, “polémicos”, “polemizar”, “polemista”. Não perceberam nada. Eu só quero admirar quem admiro e escrever sobre o que magoa. O mais, não me interessa. Quero é que me deixem em paz. Com os meus livros e os meus discos. Com o que fica.» A sensação prolonga-se pelo blog fora, pelo que se escreve nele, pelo que escrevi nele, como se se tratasse (também, às vezes, de vez em quando) de uma coisa que se faz para substituir outra. É por isso que os códigos deontológicos dos blogs são assustadores, prolongando aqui o que nem sequer existe nos jornais; mas a verdade é que os blogs não deviam ser como os jornais. O blog (mas há outras posições defensáveis) é um texto que substitui outro, uma actividade que substitui outra, até conseguir uma autonomia, um estilo, uma independência de género, uma forma verdadeiramente diarística, o aspecto dos cadernos. Até chegar esse momento, tudo está em lugar de outra coisa.
janeiro 27, 2004
FEHER. Recebi a notícia com dia e meio de atraso, praticamente. Há pouco a dizer depois do que se disse. Lembro, há trinta anos, a morte de Pavão, aquele silêncio sobre o estádio (ouvi pela rádio, os pais de Pavão eram meus vizinhos), a crónica de Pinhão (em A Bola, um dos seus melhores textos de sempre). A morte em directo num estádio de futebol já não se pode descrever, toda a tragédia estava lá. Um guerreiro desaparece diante da sua tribo.
janeiro 22, 2004
AVIZ.BR. Durante uns dias, a versão brasileira do Aviz esteve inactiva, mas está já actualizada.
Os utilizadores de Internet Explorer para Macintosh que têm problemas em visualizar o Aviz, podem ir a esta versão do blog. Utilizadores de Mac com browsers como o Mozilla, Safari ou Netscape, podem continuar na versão blogspot.
OS MAIS CÉPTICOS. Ora, meu caro Bruno Sena Martins, as coisas são mesmo assim. Eu sei que gostávamos que fossem de outra maneira, mas nem por isso sou mais ou menos céptico em relação ao tema – a realização da «queima das fitas» de Coimbra, depois do referendo académico que as aprovou com 77%. Diz o Bruno que «na luta contra as propinas» os estudantes optaram por beber para esquecer. A queima das fitas não tem nada a ver com o assunto. Hoje é uma festa, assunto arrumado. Eu não simpatizo com o género, mas também não a frequentei, nem pedi a ninguém que a proibisse, nem a quero proibida. As cervejeiras agradecem, ponto final.
Agora, meu caro, o assunto é outro – é quando me chama céptico, só porque nunca acreditei que o referendo aceitasse esse luto académico que impediria a «queima». Sou céptico em geral, sim. Mas em se tratando de declarações tão solenes como as que acompanharam o palavreado geral sobre a «queima», nem foi preciso invocar o cepticismo. Bastou ler as entrevistas dos dirigentes académicos. É a vida.
O CÉU DOS TRÓPICOS. [para o Abrupto] Depois de cinco dias de chuva ininterrupta, o céu nocturno dos trópicos (finalmente quente, húmido, devorador) anda cheio de ruídos, mais do que de estrelas: sapos na beira das lagoas, grilos, guayamus, cães ao longe, folhagem das árvores, motores de barcos que entram no rio vindos do mar a esta hora. Distinguem-se manchas de luz no céu azulado, sim, riscos de objectos invisíveis que deixam apenas um rasto branco, prateado, antes de desaparecer. Polux. Gémeos. Sirius. Centauro e, claro, o Cruzeiro do Sul. Mas a maior constelação é a que se avista da orla, quando a linha do mar se consegue distinguir da linha do céu a esta hora nocturna: fios de casas, arvoredo, carros parados, tudo longe da Europa.
POIS TU FOSTE ESTRANGEIRO. Em 1975, a xenofobia nacional, herdada do salazarismo e do que o antecedeu (o provincianismo pacóvio e a Inquisição), foi mais uma vez posta à prova diante da chegada de meio milhão de portugueses vindos das antigas colónias. Deserdados e hostilizados pelo poder político-militar da época, que lhes desaprovava a biografia e as ideias, os retornados mudaram Portugal em poucos anos: evitaram que a província desaparecesse da forma abrupta, transportando consigo criatividade, energia e vontade de vencer; contribuiram para mudar os hábitos e os costumes de um país medíocre cheio de moralistas pálidos e machistas. Fizeram-no contando também com a hostilidade do cidadão comum, que os considerava portugueses de segunda. Eles, sim, os herdeiros legítimos de Afonso Henriques, eram os «portugueses». Desaprovando largamente a vinda de pretos e de emigrantes de Leste, sem falar dos brasileiros, os «portugueses» viveram os anos oitenta e noventa à sombra de muito do que os estrangeiros fizeram por eles – das auto-estradas à Expo98. Os «portugueses» não se incomodaram com o facto de milhares de trabalhadores africanos viverem em condições degradantes nos estaleiros do Alqueva, no lamaçal da Expo e nas encostas da Venda Nova. Apreciavam, até, o ponto de vista «étnico», com os bares caboverdianos e as discotecas angolanas, ou o serviço doméstico barato – mas nunca prestaram atenção (salvo quando eram atingidos) à espiral de violência que tomava conta dos subúrbios e lhes destruía os comboios de Sintra. Daí, passaram a olhar de viés os brasileiros: entre eles, os dentistas (que vieram tornar mais acessível o mercado) e os empregados de lojas e restaurantes (que atendiam melhor). Depois, vieram os emigrantes de Leste, que – mesmo sujeitos às mafias criminosas que andavam à solta pelo País – pela sua competência conquistaram lugares na construção civil, no serviço doméstico e na pequena indústria (muitos deles com qualificação superior). Isso está tudo muito bem, mas os «portugueses» também acham que eles lhes tiram o lugar (até há enfermeiros espanhóis, imagine-se), que eles acabam por subir na vida, por comprar casa e assentar família. Que eles, um dia, podem votar. Que os filhos deles, um dia, podem ir parar à administração pública, às universidades. Que um dia eles – que «vieram com uma mão à frente, outra atrás», como manda dizer a tradição – vão criar empresas e enriquecer. Esse cenário é inaceitável para os «portugueses». Que os estrangeiros e emigrantes estejam entre nós, é uma coisa (podem viver nos estaleiros, apanhar o autocarro das cinco da manhã, os seus filhos tratados pelas misericórdias e organismos de «inserção social», podem as mulheres viver aprisionadas em bordéis de «empresários da noite» pela província fora, podem correr para as filas de legalização durante a madrugada). Inteiramente diferente é que façam disto a sua terra; «eles» não passam de brasileiros, caboverdianos, russos, ucranianos, moldavos ou marroquinos e paquistaneses. Este ano podem entrar 6.500. Os cavalheiros da indústria já vieram dizer que é pouco. O governo mantém que basta. Se forem precisos mais (a expressão é chocante, não é?), já se sabe: entram ilegalmente. Sempre podem viver nos estaleiros, embebedar-se com vodca de Sacavém e com o tempo há-de ver-se. Não pensem é que podem ser «portugueses». [JN]
FUSO HORÁRIO, 1. Por isso, há matéria na imprensa recente que merece atenção. Três assuntos: 1) o artigo de Pedro Magalhães no Público, em resposta ao texto de João Cutileiro sobre a «depressão portuguesa»; 2) os dados sobre «violência sexual» entre universitários, por exemplo; 3) a legislação sobre emigrantes. O resto, o discurso do presidente sobre a justiça, a discussão sobre o aborto, e até mesmo as «novidades» das presidenciais, não trouxeram novidades.
Por isso, ainda, chamo a atenção para a nota de Jorge Marmelo acerca de Planalto em Chamas, de Juan Rulfo (publicado pela Cavalo de Ferro) – infelizmente não é possível manter a musicalidade do título original, El Llano en Llamas. Rulfo é um dos grandes poetas da literatura latino-americana e o criador (no singular) do que viria a ser o «fantástico» latino-americano. Pedro Páramo é um livro desses, fundador e inimitável – quando alguém tenta imitá-lo, nota-se logo: é a história de um homem que atravessa as montanhas para conhecer o seu pai, que já morreu há muito. Todos os seus personagens são fantasmas cujo corpo desapareceu. Todas as suas evocações são tocantes e violentas. Nada ali existe, tudo é fantasma (Pedro Páramo foi publicado numa boa colecção, a Ficções, das Edições 70, dirigida por Eduardo Prado Coelho; começou com Rubem Fonseca e A Grande Arte, e incluiu, por exemplo, Catherine Texier e Hermann Broch).
PARAGEM. O blog tem andado parado; por vezes apetece responder aqui e ali, escrever, tomar notas, mas deixo passar enquanto escrevo «outras coisas»; haverá tempo, se houver, depois desta chuva que só hoje acabou. Longe de Portugal, as notícias chegam aos bocados mas não se escondem.
janeiro 19, 2004
AÍ ESTÁ UM PROBLEMA, SIM. O Terras do Nunca chama a atenção para uma «viagem de luxo» paga por um banco português «a um grupo mui seleccionado de jornalistas». Não acredito. Deve ser uma pequena excursão para ver como funciona a rede de balcões no interior do país, provavelmente na Beira Baixa. Nem estou a ver como há jornalistas em «viagens de luxo» que podem influenciar as suas notícias. O que me lembra aquela tirada do Millôr, em que ele diz que, tirando os «abstêmios tarados», ainda está por aparecer o jornalista que empurra o copo na direcção do anfitrião, dizendo: «Obrigado, só bebo o do meu jornal.» O que, hoje em dia, seria impossível, como sabemos. Os jornais estão a seco.
O MEU PIPI EM HEBRAICO. «Aquele» texto do Ha’aretz para que tanto eu como o Nuno Guerreiro chamámos a atenção era um resumo do artigo de Joana Gorjão Henriques na Pública e que foi parcialmente traduzido também no Courier International sobre O Meu Pipi. Fica a adenda e a correcção.
janeiro 17, 2004
AUTORIA DUPLA. O Blog do Alex acha que as Rimas, de Petrarca, são só de Petrarca e não de Petrarca e de Vasco Graça Moura, conforme aparece na capa do livro, e assim mencionado na pequena selecção de livros do ano do Avis. A questão da tradução & autoria fica para depois, mas o Alex deixou passar o pior, já agora: o livro aparece na categoria «ficção», por puro engano.
CRUZEIRO DO SUL. O calor voltou de repente, mas não esperava outra coisa do Cruzeiro do Sul. As pausas serão agora mais longas, mas – de facto – mais apropriadas. Procurar uma história é sempre perdermo-nos nela, viver na suas sombras e nessa pequena margem de paraíso que é viver fora da terra, noutra terra.
janeiro 12, 2004
SHEARITH ISRAEL. Para quem tenha lido os excelentes posts de Nuno Guerreiro sobre a história judaica de Portugal e tenha ficado curioso acerca das suas ramificações no Brasil, recomendo o novo romance de Miguel Real, Memórias de Branca Dias, edição Temas e Debates.
A 2: E A TRADIÇÃO. Não, Manuel, não é nada engraçado que isto se passe. É da tradição e já devias saber. E espera até começares a ter elogios — vai ser ainda pior, muito pior.
A NOITE, O QUE É?, 38. Enquanto escrevo, reescrevo quase tudo. Sem isso não escreveria, sem essa luz, essa escada para a beira do mar. Já não posso escrever sozinho, sem ouvir a voz que atravessa as ondas, o riso que vem do meio das árvores, do meio da noite.
janeiro 11, 2004
CULTURA PORTUGUESA. O editor Guilherme Valente, da Gradiva, levanta um problema interessante no último sulplemento Mil Folhas do Público: a nossa cultura é quase exclusivamente literária. Isto diz respeito às escolhas dos leitores consultados pelo suplemento, para falarem dos livros de 2003, em que poucos títulos ultrapassavam essa fronteira «literária», excluindo assim o «domínio científico». Não há nada a dizer, é mesmo assim. E não é bom que seja assim.
Por outro lado, ninguém pode ficar indiferente à vinda de João Magueijo. As entrevistas que deu (ao DN, por exemplo, ou o que aparece escrito no próprio Público — na primeira página do DN há um destaque para a música de Carlos Seixas, mas nenhuma a Magueijo) mostram um personagem inesperado, desenvolto e com o sentido do risco — o livro tem o título Mais Rápido Que a Luz (edição portuguesa da Gradiva, já traduzido em 13 línguas). Curiosamente, alguns dos comentários que ouvi falavam muito da sua «arrogância» e da maneira como não seria uma pessoa «contida». Não me pareceu nada disso. O que me pareceu foi que há uma certa rispidez inteiramente justificável da parte de Magueijo, em nome da ciência, do seu trabalho e do seu direito a dizer o que diz, até quando pede que o país encerre para desinfecção, ou quando refere que os políticos são muito bons a errar e que, portanto, o melhor é não fazerem nada.
janeiro 10, 2004
A NOITE, O QUE É?, 37. Encho a vida inteira de recados. Metade dela esperei por isto, haver uma razão qualquer para mudá-la. Um dia disse: «Traz-me de volta à terra.» Não sabia que tinha de procurá-la onde estavam a simplicidade, as estradas onde nos perdemos, o aroma do café, o grande bosque junto do mar, os ruídos dos animais a meio da noite. Quando a noite vem, fria, deste lado do mar, fico sem refúgios, sem música, sem nome. Até que um nome ou o teu rasto aparece, iluminando tudo, juntando-se às estrelas que costumamos descrever, alinhadas, ora deitadas ora erguidas como uma promessa.
JOÃO CABRAL DE MELO NETO, 3. Em noite de futebol, um poema de Agrestes, com o título «De um jogador brasileiro a um técnico espanhol»:
«Não é a bola alguma carta
que se leva de casa em casa:
é antes telegrama que vai
de onde o atiram ao onde cai.
Parado, o brasileiro a faz
ir onde há-de, sem leva e traz;
com aritméticas de circo
ele a faz ir onde é preciso;
em telegrama, que é sem tempo
ele a faz ir mais ao extremo.
Não corre: ele sabe que a bola,
telegrama, mais que corre voa.»
RECORDAÇÕES DA LÍNGUA PORTUGUESA. OLAVO BILAC (1865-1919).
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que, na ganga impura,
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: «Meu filho!»
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio da ventura e o amor sem brilho!
JOÃO CABRAL DE MELO NETO, 2.
«A VOZ DO COQUEIRAL
O coqueiral tem seu idioma:
não o de lâmina, é voz redonda:
é em curvas sua reza longa,
decerto aprendida das ondas,
cujo sotaque é o da sua fala,
côncava, curva, abaulada:
dicção do mar com que convive
na vida alísia do Recife.»
[A Escola das Facas, 1980.]
JOÃO CABRAL DE MELO NETO, 1. Ontem completaria 84 anos.
«Certos autores são capazes
de criar o espaço onde se pode
habitar muitas horas boas:
um espaço-tempo, como o bosque.
Onde se ir nos fins-de-semana,
de férias, até de aposentar-se:
de tudo há nas casas de campo
de Camilo, Zé Lins, Proust, Hardy.
A linha entre ler conviver
se dissolve como em milagre;
não nos dão seus municípios
mas outra nacionalidade,
até o ponto em que ler ser lido
é já impossível de mapear-se:
se lê ou se habita Albertí?
se habita ou soletra Cádiz?»
[Agrestes, 1985.]
CAUSAS ESTRANHAS. [Com actualização.] O extracto/resumo do livro Causas de Cultura, de Pedro Santana Lopes, que hoje aparece no DN não é apenas estranho. É preocupante.
O livro parece ser mais um passo para a candidatura às presidenciais. O assunto não é ridículo, mas dá vontade de rir. Ora, o DN de hoje destaca fundamentalmente as passagens em que Santana Lopes se dedica a, como diz o título, «desancar Teresa Patrício Gouveia» em nome do teatro e da música. Além de ser injustiça, e muito óbvia, inaugura – com uma visibilidade insuspeita – a época das fracturas no PSD. Começou a asneira, mas vá lá.
janeiro 09, 2004
ESTRANGEIROS & EMIGRANTES, 5. De Nova Iorque, escreve o Alberto C. Fernandes um mail sobre o assunto: «O que é curioso é que ninguém é racista em Portugal. Mas vê-se que existe qualquer coisa e isso terá repercussões daqui a uma geração quando os negros que saírem da escola forem procurar empregos. Serão uma geração mais educada, com mais possibilidades do que a actual (metida nos morros à volta de Lisboa), e com mais consciência cívica. O que dirão muitos dos brancos rostos-pálidos quando forem confrontados com portugueses-africanos (afro-portugueses?) que puderam subir na vida? Que lhes vão “roubar os empregos”? Não, não vão “roubar-lhes o emprego”, mas então será racismo a sério. Agora é sobretudo “exclusão social”, mas depois sim, será racismo. Por outro lado, fiquei indignado, durante esta minha estada em Portugal, com a forma como são olhados muitos brasileiros. Ao contrário da América, que gosta de gente trabalhadora e com iniciativa, Portugal recebe-os com um ar de superioridade sem justificação. Em certa medida, eu sou emigrante e isto custa-me.»
EMANUEL, EMANUEL. Também por mail, o Lourenço A. Cordeiro, do blog O Projecto, corrige uma nota anterior, a propósito do livro de Mário de Carvalho, Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina, num dos textos sobre «os livros do ano». E com toda a razão, dado que se trata de uma personagem a reter no livro — troquei-lhe o nome bíblico: «A personagem chama-se Emanuel Elói, não Samuel. Não deixa de ser fantástico, mas tem direito ao seu nome.» Obrigado, Lourenço.
ESTRANGEIROS & EMIGRANTES, 4. Escreve o Nuno Figueiredo, por mail: «E quando as pessoas falam mais alto, ou mais lento, para eles perceberem português? Irónico é que alguns, em poucos meses, falam quase melhor do que alguns portugueses. O que quer dizer que o pior está para vir. [...] Sinceramente também lhe digo que nunca vi um funcionário do Serviço de Fronteiras ser simpático com um português. Será racismo ou simplesmente má educação e funcionite pública?»
CARTA AO EDITOR. Vem no brasileiro Prosa Caótica, um blog que vale a pena visitar: «Prezado editor: Estou enviando uma cópia dos originais do meu livro como combinamos na última quarta-feira por ocasião da noite de autógrafos de U. Espero que o senhor se lembre de mim, apesar de estarmos todos bêbados naquele dia. Eu sou aquela moça loura que servia vinho branco numa bandeja a todos os convidados, lembra? O senhor bebeu mais de duas garrafas do chileno e disse que minhas pernas eram tão perfeitas como um verso cabralino. Eu não entendi direito, mas respondi mesmo assim que eu também fazia versos e umas abobrinhas de ficção.»
O QUE SERÁ? É uma ideia, a do O Bisturi; o que leva os portugueses a «não gostarem de flores, plantarem eucaliptos, consentirem tijolos e couves defronte das casas, não lerem, falarem alto, não terem cortesia no trato social»?
janeiro 08, 2004
ESTRANGEIROS & EMIGRANTES, 3. E nos guichets, nos bancos, nas repartições, nas conservatórias, incomoda-me bastante aquela pontinha de racismo vulgar: não se dão todas as informações, não se é tão atento e solícito quando são pessoas de cor, por exemplo. Aquele ar de superioridade que o mau funcionário adquire quando trata com essa gente, exaspera-me. É a pior das vulgaridades, uma maldade genética, aquela contra a qual não se pode fazer nada. É por isso que também sou contra a discriminação positiva; porque a discriminação em geral me parece um pecado sério.
ESTRANGEIROS & EMIGRANTES, 2. Uma das coisas que me deixa quase boquiaberto é, muitas vezes, a forma como são tratados os estrangeiros nas fronteiras, sim — o modo como os brasileiros são recebidos, por exemplo, sobretudo «se têm aspecto de emigrantes» ou de «prováveis emigrantes». A forma como se fazem as perguntas, o tom de voz, o empurrão na fala. Fico envergonhado quando há funcionários das fronteiras que usam & abusam desse expediente. Apesar da preocupação em não abrir as fronteiras, há um tom de delicadeza que não devia perder-se. Eu sei que é fraco invocar a frase, mas retenho-a sempre, quando se trata de «tratar bem os estrangeiros»: «Pois tu foste estrangeiro.»
ESTRANGEIROS & EMIGRANTES, 1. O Rui Curado Silva escreveu no Klepsydra um texto em que acrescenta um outro aspecto ao desenho que aqui fiz com esse mesmo título: «Sobre a forma como tratamos os imigrantes que trabalham em Portugal o mais grave quanto a mim nem são tanto as posições adoptadas pelo PP sobre a matéria, que são mais verborreia populista do que outra coisa. O que nos deveria peocupar é a maneira desorganizada e irresponsável como tratamos todas as questões burocráticas que deveriam permitir aos estrangeiros viver com um mínimo de normalidade (já nem digo conforto) no nosso país. Desde o visto de residência até à abertura de uma simples conta bancária os imigrantes passam por autênticas aventuras dignas de um romance de Franz Kafka. O pior é que este problema está acima das posições e ideologias políticas. É desorganização pura. É incompetência que vai desde o director do SEF até ao simples funcionário que acham normal que um imigrante esteja 14 meses à espera para ver renovado o seu visto de residência.»
EXTRACTO, 2. O artigo de José Pacheco Pereira no Público de hoje merece ser lido com toda a atenção — constitui uma das análises mais ponderadas sobre o assunto e sem aquela marca evangelizadora que tem aparecido nos jornais. Mas o que escreve no Abrupto, como complemento, é também mais claro. Desde o princípio que tenho concordado com J.P.P. nesta questão e não me comovem muito os ares de escândalo que periodicamente aparecem na «opinião pública». Como já escrevi, o escândalo é o inimigo fundamental desta investigação. O que está na base do mais recente dos escândalos, no entanto, é a fuga de informação; aqui, provavelmente, discordo de J.P.P. no que se refere ao «apelo à serenidade» por parte do presidente da República — se Sampaio tinha alguma coisa a dizer, que fosse dita claramente; caso contrário, o silêncio era uma boa maneira de responder. As fugas de informação mereciam ser estudadas a fundo: pela sua natureza, como são citadas, pela sua ocorrência, pelas coincidências que deixam perceber, pelos álibis que supõem e pelos benefícios que trazem. No caso da justiça (mais do que na manipulação de informações sobre os conselhos nacionais dos partidos), há várias coisas em jogo; neste caso, ainda mais. O «processo Casa Pia», lido na imprensa, revela um conjunto notável dessas manipulações e de fugas de informação bem colocadas. O jogo mais perverso que decorre dessas fugas de informação é a «elaboração de listas» de suspeitos; correm às centenas. Cada cidadão bem informado está na posse de pelo menos uma dezena de nomes. Provavelmente isso acontece em outros países — mas a mim incomoda-me este, e incomoda-me o hábito da denunciazinha, da suspeição alarve e das listas de condenados. Não acho doentio, não acho idiota, não penso que seja apenas obra de maldade. Acho que é assim mesmo.
A politização do caso, como está a decorrer, é o facto mais relevante desde os dias que antecederam a detenção do deputado Paulo Pedroso. A reacção de Manuel Alegre ontem, no parlamento, pareceu-me a mais estapafúrdia de todas, tal como a de Mário Soares nos idos de Junho passado quando, numa entrevista à Antena Um, confundiu o «ataque aos políticos da República» com a «natureza desta investigação». Quem pôs a República no banco dos réus não foram os investigadores ou os juízes — e, de certo modo, não foi a imprensa. Tenho sobre a justiça a ideia de que é lenta, penso que os tribunais funcionam mal, que os cidadãos são maltratados pela justiça (e pelo Estado); mas não acredito na sua má fé essencial. Infelizmente, este processo está a tornar-se esquizofrénico porque há várias coisas em jogo: a credibilidade da política (que não devia ter entrado em campo), as «figuras da República», um crime real efectivamente praticado, a credibilidade da imprensa, a credibilidade da acusação e do MP — e, finalmente, infelizmente, uma questão de fé. A «opinião pública» divide-se entre os «que acreditam» e os «que não acreditam» na culpabilidade dos acusados. Essa fractura indecente passou já para a imprensa, como se sabe.
Outra coisa, completamente diferente, tem a ver com a necessidade de mais leis sobre a imprensa. Não deve haver mais leis. Chega de leis. O problema não está nas leis mas nessa manipulação de que todos são capazes. Quando há interesses políticos em jogo, então, a vontade legislativa é um excesso ridículo. Convocar o Conselho de Estado, por exemplo, seria outro buraco aberto nesta paisagem: pôr as figuras da República a reagir, em comandita, ao que é uma manipulação clara e evidente, parece-me um erro de arromba.
EXTRACTO. Esperava-se que o presidente da República fosse mais claro na sua comunicação em redor da questão das «cartas anónimas» que constam nesse processo — ou se mantivesse afastado do assunto. As duas soluções seriam igualmente defensáveis: o silêncio diante da acusação ou da calúnia sem assinatura (o que, na sua natureza profunda, se confunde), ou a clareza e rispidez de uma resposta directa. Ora, tudo aquilo que o presidente da República disse sobre o assunto, já tinha dito antes. O apelo à serenidade e à contenção, repetido até à exaustão, deixa de ter sentido. Gasto no meio do ruído, não se ouve. E a verdade é que, em substância, o presidente se limitou a apelar à contenção — e, por outro lado, a acusar um jornal de ter publicado uma notícia, o que não pode constituir crime. Ou seja, o presidente manteve-se no éter, moralizando «em geral» quando falava de um tema «concreto». Compreende-se o cuidado, mas devia ter sido mais claro, até para sabermos realmente a sua opinião. Está em causa um processo complexo; a forma sórdida como o assunto é muitas vezes tratado, desfazendo-se ou refazando-se em redor de suspeitas e de informações que ninguém pode confirmar, também não ajuda; a própria imprensa está dividida nas suas opções que não são apenas «editoriais» mas que a leva, frequentemente, a tomar partido ora nas entrelinhas ou nos títulos. A questão das «cartas anónimas», que tem chocado muita gente pelos motivos mais desencontrados, não sendo central no processo (nem na investigação), revela alguma coisa dele e da forma como tem sido tratado junto da opinião pública. É um hábito português: a acusação anónima, a coisa torpe, a vigilância «do povo”, a suspeita «sobre uma lista de nomes», a espionagem dos vizinhos. Vem desde antes da Inquisição, mas a Inquisição aumentou consideravelmente o seu alcance e o seu poder. Este anonimato das acusações que enviou milhares para a tortura, para as fogueiras, para o degredo e para o esquecimento, não é muito diferente, no entanto, de todas as «fontes anónimas» de que a imprensa muitas vezes se serve, mesmo com a sensação nítida de «estar a servir» – sacrificando quem for preciso. O retrato dessa esquizofrenia vem nas primeiras páginas. O país revela aquela face mais obtusa do seu carácter, que nem sequer é risível, através da forma como se alimenta desta corrente de rumores e de insinuações, da pequena perseguição e do riso alarve. O país da suspeita e das cartas anónimas está, mais uma vez, a levar a melhor. Não poderia o presidente, por exemplo, ter dito que isso é um crime? [JN]
janeiro 07, 2004
O MEU PIPI ONDE? O Nuno Guerreiro acaba de chamar a atenção para a publicação de um texto sobre a blogosfera portuguesa no diário Ha’aretz, de Israel. Referências obrigatórias: distinção a O Meu Pipi e ao Abrupto. O cartoon que acompanha a notícia é revelador. [Nota: corram a ler, que está em hebraico...]
janeiro 05, 2004
ESQUERDA, DIREITA. O Terras do Nunca contesta essa ideia estapafúrdia que distingue blogs de esquerda e blogs de direita com base na existência, ou não, de link para comentários. A esquerda teria esses links. Também achei essa teoria muito pouco provável, mas enfim. E escreve o João: «Se quiserem mais um pouco de teoria política esquizóide, aí vai: os blogues de direita fizeram (longas) férias de Natal e Ano Novo, os blogues de esquerda mantiveram-se activos. Alguém discorda?» Ora, olhando para a agenda, não estive no blog durante o Natal, não (nada de piadas...), mas passei o fim-de-ano a ajustar contas com ele. Desta já me safei.
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CURIOSAMENTE. Na mesma edição do Público, Maria do Carmo Vieira dá conta que no 2° Encontro de Investigação e Formação (de 2001), dedicado ao tema «Criatividade, Afectividade, Modernidade», foi dito que a afirmação «É uma massa de ar em movimento.» como resposta à pergunta «O que é o vento?», constitui uma «profunda agressão traumática» para as crianças. Daí que, nos manuais do 1° Ciclo, se tivesse procedido a oportunas substituições lexicais «de carros para popós, titis para tias, pipis para frangos, tautau para pancada, dói-dói para ferida», por exemplo. Passando a tratar um frango por pipi, já se percebe por que razão os alunos vão chumbar depois, na universidade...
DE FACTO, É UMA GRANDE QUESTÃO. NEM ESTOU A VER. Diz a nova presidente da associação académica da Universidade de Aveiro no Público de hoje: «Não discordo que há um ou outro exemplo de alunos que tiram o lugar a outros, mas é impossível implementar um regime de prescrições nesta altura, porque não há como avaliar por que é que um estudante chumba. Não existe um sistema que possa avaliar perfeitamente porque é que um aluno reprovou.» E logo a seguir: «Para além disso, o aluno paga propina — logo, tem todo o direito de frequentar o ensino e muitos reprovam por motivos de trabalho, para pagarem propinas, alojamento e alimentação. Noutros casos o erro está no docente e na pedagogia.»
janeiro 04, 2004
NIETZSCHE, NIETZSCHE... Tem graça. Estava aqui a tentar visitar os meus amigos Nietzsche & Schopenhauer, mas não vejo grande actualização.
NÃO ME ABORREÇAM COM O OPTIMISMO, 2. Este final de ano foi dramático, de verdade: aturar presidentes de Câmara e presidentes de empresa, presidente da República e directores de jornal, secretários de Estado e bispos a pregarem-nos o dever do optimismo é uma desgraça incomparável. Desde Junho, com as incursões açorianas do Presidente, mais o «patriotismo moderno e democrático», o «respeitinho pelos políticos» e a insuportável «auto-estima», que o País se encarregava de espatifar a personalidade com o discurso sobre a crise e o seu contrário, a necessidade de rigor e o seu contrário, a exigência de contenção orçamental e o seu contrário. E é isso mesmo: eu não quero que o primeiro-ministro ande pelo país fora a levantar-nos a moral como os missionários andavam pelo sertão a espalhar a fé ou nas encostas de Trás-os-Montes a levar relíquias da Terra Santa. Eu quero que o primeiro-ministro se dedique, fundamentalmente, a primeiro-ministrar; é essa a sua função. E que os empresários se dediquem à sua função com seriedade. E que os tribunais julguem. E que as coisas, em geral, funcionem. O nosso optimismo seria imenso, fatal, vastíssimo, imbatível. A nossa auto-estima, finalmente, ninguém ouviria falar dela porque não era para aqui chamada. Mas não; há por aí uma vontade irresistível de se meterem na nossa vida: «Tens de elevar a tua auto-estima.» Martha Stewart em edição portuguesa, com mais rendas e bordados. «Vamos! Temos de ser optimistas!» Padre Rossi sem paramentos.
NÃO ME ABORREÇAM COM O OPTIMISMO. Isso mesmo. O último parágrafo da crónica de António Barreto no Público de hoje é isso mesmo: «Não tenhamos dúvidas: quando, em tempo de dificuldades sérias, o Presidente da República, o Primeiro Ministro, os Ministros, os deputados, os Bispos, os Presidentes de Câmara, os porta-vozes da oposição, os directores de jornais, os grandes empresários, os gerentes dos centros comerciais e outros dirigentes nos oferecem os seus melhores votos, a sua esperança, o seu optimismo e o seu contributo para o melhoramento da auto-estima dos portugueses, estão simplesmente a tratar de si próprios e a servir-nos, com estas banalidades, um substituto para a sua acção e o cumprimentos dos seus deveres. Ao mesmo tempo que pedem sossego, resignação e serenidade. Há muito que aprendi que os parabéns, prémios, reconhecimentos e votos públicos são geralmente um modo de cuidar de quem os dá e não de quem os recebe. Sinceramente, não precisamos dos votos dos nossos dirigentes, necessitamos, isso sim, do seu trabalho, da sua energia e da sua pontualidade. Deixem os votos para nós, quando chegar a altura.»
OUTRA VEZ. Há um problema com a justiça, de facto. Ontem, depois de ver uma espécie de mini-debate na televisão, entre dois juristas (e uma jornalista com vontade de mostrar opinião e com os respectivos adjectivos armadilhados — que é o pior que pode acontecer a um jornalista, diga-se de passagem), percebi outra vez que o problema da justiça é tão vago que toda a gente está de acordo na sua existência. Hoje, ao ler o Público, percebi que o processo já tinha expirado. Ponto final.
ESTRADA DOS COQUEIROS. A saudade é uma sabedoria que dura apenas alguns instantes. Dá quase sempre lugar às promessas e à luz dessa estrada a qualquer hora do dia; gosto dela ao fim da noite, quando se regressa da cidade. O mar pela direita, o céu perto da terra, as estrelas alinhadas.
janeiro 03, 2004
LITERAL. Descobri, pelo Jorge Marmelo, a existência do Portal Literal, o que é uma boa informação para quem gosta de ler autores brasileiros, nomeadamente Verissimo e Rubem Fonseca. Bom portal de livros do Brasil.
SEM NOVIDADE. Eu não queria, mas alguém citou por mim. O João Gonçalves referiu o Inquisição e Cristãos-Novos, de António José Saraiva, a propósito desta paranóia de delação nacional. Delação por cartas anónimas, armadilhas da imprensa, barulheira para nada. Não há novidade no génio português. Curiosamente, só o Correio da Manhã escreveu (não por acaso), em editorial, que o processo «da Casa Pia» está em vias de acabar.
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SINCERAMENTE. Uma pessoa acorda, passa os olhos pelos jornais, ouve o noticiário do meio-dia, assiste à abertura dos telejornais da uma — e duvida seriamente da sanidade mental do país. Nada de escândalos, amiguinho. Nada de te escandalizares. Hoje, então, devias estar longe disto, mas não consegues. Lamaçal, lodaçal, pântano, vêm à memória estas palavras, mas é só um prenúncio do que há-de vir. Espantoso país das cartas anónimas, das vingançazinhas, da suspeita, do medo de pôr o nome por baixo, hoje devias não pensar nisso mas não consegues. Há uma espécie de náusea no ar. Belo ano. Excluis os pontos de exclamação por vício, para não te associares à gritaria, mas não consegues: volta atrás e corrige, corta os pontos de exclamação. Ris da ingenuidade absoluta, da credulidade total. Ah, o ministério público falhou. Ah, está a investigação toda de rastos. País das ruas. País da praça pública. Vem nas crónicas, lembram-se?, de quando diziam «corram ao Paço que matam o Mestre», e vai lá toda a gente, e o Mestre estava de boa saúde, a multidão acreditou em tudo. Acredita em tudo. E há denúncias anónimas. Manigâncias. Alguém deixa cair uma informação, mas não tem rosto. O melhor de tudo é ver como tudo encaixa, como tudo estava escrito nas instruções para compor este puzzle perfeito em que tudo se baralha para que tudo continue na mesma, esquerda e direita, tudo amiguinhos, maravilhoso bloco central. A humilhação maior é ver como as cartas anónimas figuram nas páginas do processo, claro, mas isso é vício nacional: um país que tem tantas cartas anónimas na sua história merece isto. Cartinhas de denúncia, cartinhas de humilhação: mencione-se um nome para que o nome fique coberto de lama. Diga-se um nome, um nome qualquer no meio de uma conversinha sobre a lama, e a lama arrebatará todos os nomes à volta. País assim. País perfeito. País sem culpados. A estratégia está a funcionar na perfeição, de resto: corram ao paço, que matam o Mestre, e a multidão corre ignorando que o Mestre está de boa saúde. Para que se há-de fazer justiça? Melhor que tudo fique contente, de um lado e de outro. Melhor que tudo fique assim. A estratégia está a resultar. E tanta gente escandalizada, ignorando que o escândalo, escandalizar-se assim alguém, é meio caminho para que não se mencione mais o assunto. País sensível, de plástico, cheio de merda pelos cantos. Tudo está a resultar. A aranha na sua teia. Perfeito.
ADEUS. Morreu Eduardo Guerra Carneiro. Era um bom poeta, esquecido por todos nós, e um jornalista esquecido pelos jornais. Morava no mesmo prédio onde viveu Agostinho da Silva, ao Bairro Alto. Escrevia em caderninhos lisos e tinha canetas de tinta permanente. Gostou muito. Foi muito amado. Tinha um brilho nos olhos que se foi perdendo à medida que ia envelhecendo, mas nunca foi um ressentido. Bebeu muito. Leu bastante. Escreveu o suficiente. Alguns livros: Isto Anda Tudo Ligado, Como Quem Não Quer a Coisa, É Assim que se Faz a História, Contra a Corrente, Lixo ou Dama de Copas. Era boémio, mas não era da boémia. Sentava-se ao fundo dos bares caboverdianos. Gostava de mornas, da sua terra do Norte (Chaves), dos salgueiros ao longo da estrada nacional n.º 2, dos choupos do Douro e de poetas que sabiam calar-se. Uma pessoa escreve «era um bom poeta» e sente que alguém desconfia, como se fossem bons todos os poetas que desaparecem. Não. Ele era um bom poeta que raramente ficava contente com os seus livros. Não se dava muita importância. Brigou muito. Tinha bom feitio. Tinha mau feitio. Tennyson repetiria: «O selfless man and stainless gentleman.» Bebia cerveja. Acho que bebia tudo. Tinha uma bela voz. Eduardo.
janeiro 02, 2004
MOLLY BLOOM. Ó Charlotte, que tirada, sim senhor! Queremos mais.
AVIZ.BR. Desde anteontem, 31 de Dezembro, que o Aviz tem edição brasileira. Como alguns bloggers brasileiros tinham dificuldade em aceder ao blogspot.com, criou-se um espelho em blogger.com.br. No servidor brasileiro, os utilizadores de Internet Explorer para Macintosh não terão os problemas de visualização que se mantêm no Blogspot (onde só se safam no caso de utilizarem browsers livres de Bill Gates, como o excelente Safari para sistema 10 do MacOSX, o Netscape ou o Opera), que os obriga a seleccionarem manualmente o Unicode UTF-8. Enfim, tudo o que sirva para fugir à ditadura windows.
OBRIGADO, MATA-MOUROS. Eu devia corar. O Mata-Mouros distingue de forma muito simpática o Aviz no seu balanço de 2003. Obrigado, amigos.
Num texto sobre 2003, de resto, o Luís Rocha acha estranho que a blogosfera não seja vista como um dos fenómenos portugueses do ano (de toda a imprensa, de facto, só a Grande Reportagem, e episodicamente, de raspão, referiu o facto). A imprensa generalista também tem a sua agenda, e os blogs deixaram de render espaço ou motivação. Mas convém não manifestar muito espanto: grande parte da blogosfera acabou também por se render à agenda da imprensa generalista, correndo atrás dos assuntos dos jornais e, em muitos casos, ou em casos muito identificados, repetindo indignações e comentários que acabaram por figurar na imprensa. É natural, no entanto, que os blogs cedessem à tentação de repetir os procedimentos, as técnicas e os alinhamentos da imprensa. Já se esperava, não há mal nisso. Mas a lição fica clara.
janeiro 01, 2004
LIVROS DO ANO, 12. {Ficção} Vasco Graça Moura / Petrarca, Rimas (Bertrand).
Durante muito tempo teremos de agradecer a VGM o seu trabalho como tradutor, de Villon a Seamus Heaney, de Dante a Gottfried Benn ou a W.H. Auden, por exemplo. Muita da melhor poesia europeia chegou-nos através das suas magníficas traduções e, neste domínio, não tem comparação. Também se trata de um dos nossos melhores poetas, naquele fio que vem dos clássicos dos séculos XVI e XVII, atravessa Cesário e passa por Nemésio, juntando melancolia e ironia e nunca sucumbindo à tentação do lirismo romântico. É injustamente desvalorizado como romancista, mas dois dos seus livros, Naufrágio de Sepúlveda e Partida de Sofonisba às 6/12 da Manhã, merecem ser lidos pelos menos crédulos. As Rimas de Petrarca são um exemplo desse trabalho de paixão pelos livros e pela poesia. Além do mais, há um prefácio fundamental que arrasa com as banalidades que têm vindo a ser encaixadas na academia portuguesa em redor da Renascença e do seu cânone. Um dos exemplos maiores (mas trata-se de uma leitura pessoal) é a versão de «De l'empia Babilonia», que fica assim:
«Da ímpia Babilónia, a que perdida
toda a vergonha está, todo o bem fora,
albergue para a dor, mãe de erro agora,
fugi para alongar a minha vida.
Aqui sou só; e como Amor convida,
colhendo rimas, versos, ervas, flora,
falo com ele e melhor tempo implora
o meu pensar: só esta ajuda é tida.
Nem fortuna nem vulgo me consuma,
nem de mim muito, nem de coisa vil,
nem sinto dentro ou fora calor vir-me.
Duas pessoas só peço; e assim uma
a dar-me em paz seu coração gentil,
e a outra, como nunca, em seu pé firme.»
LIVROS DO ANO, 11. {Ensaio} Fernando Gil, Paulo Tunhas (& Danièle Cohn), Impasses (Europa-América).
A «ciência jornalística» chama-lhe «estimulante» e isso é o menos que se pode fazer para o desvalorizar por parte de quem tem todas as certezas absolutas (sobre o Iraque, sobre Israel, sobre a América, sobre a Europa, sobre a degradação da filosofia) e usa todos os adjectivos do dicionário. Trata-se, também, de um livro contra a má-fé, que é cada vez mais um instrumento acessível e popular. No caso de Fernando Gil, corre um risco surpreendente e considerável, ao passar dos fundamentos da sua teoria e epistemologia da prova para o universo da política quando os assuntos ainda estão a provocar fracturas tão decisivas e definitivas. É um dos livros mais corajosos do ano, que, como de costume, provoca esgares de cinismo naqueles que são proprietários da verdade aconteça o que acontecer.
[Um dos temas centrais do livro tem a ver com a questão iraquiana, claro; seria bom dizer o seguinte em relação ao assunto: é cada vez mais evidente que não existem essas armas de destruição em massa que povoaram todas as ameaças pré-invasão; os EUA vão pagar muito caro essa mistificação, e durante muito tempo; no terreno, a inépcia e a infantilidade quase totais dos americanos, são outro erro que descredibilizou bastante a luta contra o terrorismo e a possibilidade séria de, num curto prazo, democratizar os regimes ditatoriais e fora-da-lei do Médio Oriente, como a Síria, o Irão ou a Arábia Saudita; essa democratização acarretará, agora, custos mais elevados; uma das consequências mais graves dessa inabilidade da administração Bush é a radicalização a esquerda europeia, o aumento da sua desconfiança em relação à democracia (para retomar o que Gil diz) e a ilusão de uma vitória, provavelmente breve, do eixo Paris-Berlim.]
LIVROS DO ANO, 10. {Poesia} Manuel António Pina, Os Livros (Assírio & Alvim).
É um pequeno conjunto de versos, mas que marcam, no conjunto da sua obra, uma espécie de consolação pelo que não se disse antes. Não é estranho que apareçam, por isso, referências aos livros essenciais, às tradições que nos fizeram ser como somos. No universo lírico & antilírico de Manuel António Pina, este é um livro sereníssimo, vindo do fundo das bibliotecas, pausado como os grandes capítulos das vidas todas. Gostei muito de o ler.
LIVROS DO ANO, 9. {Ensaio} Maria Filomena Molder, A Imperfeição da Filosofia (Relógio d'Água).
O trabalho de Maria Filomena Molder parece-se cada vez mais com um nosso remorso: por não lhe termos dado mais atenção. As suas investigações sobre Walter Benjamin deviam ser recuperadas no meio do impasse e da perturbação. Este novo livro é de uma lucidez espantosa: não sobre a perda da filosofia, ou sobre o seu desaparecimento, mas sobre a necessidade da sua recuperação na companhia da poesia e da literatura para que se possam ludibriar as aparências da banalidade. Para quem passa pela blogosfera e se irrita com a leviandade com que são apresentados tantos juízos definitivos, o livro de Filomena Molder pode apresentar um caminho, buscando na imperfeição da filosofia uma fragilidade da própria vida.
LIVROS DO ANO, 8. {Ficção} Manuel António Pina, Os Papéis de K. (Assírio & Ailvim).
Trata-se de um divertimento, ou seja, de uma pequena novela que se prolonga no tempo: uma história sobre o mistério, os cruzamentos de lugares e de memórias, diálogos de aeroporto, despedidas de encontros literários. Mas sobretudo devolve, em prosa, algum desse mistério que tem vivido nos versos de Manuel António Pina, atravessando suspeitas religiosas, devaneios, esoterismos, olhares. Felino como um dos seus gatos.
DESPEDIDAS EUROPEIAS. Antigamente, havia neve onde eu estava. Não esta, da serra turística, das promessas de casino. Neve mesmo, quinze dias de isolamento, botas, neve sobre as oliveiras, neve a rodear os outeiros, as colinas de carvalhos. Nunca soubemos esquiar nem sabíamos onde era Gstaad ou Axalp, mas havia neve de uma brancura rudimentar. Com a idade, essa neve vai-se transformando numa lembrança ridícula como quase todas. Lembrar aos outros uma coisa tão estranha como essa ameaça-nos mais do que a eles. Não tenho saudades da neve, de qualquer modo, nem do frio, nem dos quinze dias de isolamento, nem dos jornais que chegavam depois pelo correio, num pacote compensador. Sei que existia, que vinha todos os anos antes de chegar o aquecimento global, o fim de alguns picos de gelo na Antárctida, as correntes quentes, o descontrolo do clima. Chegava como as amendoeiras de Fevereiro e os patos de Barca d'Alva. Ao folhear livros, ao olhar para as lombadas das estantes, ao ver fotografias de Antuérpia e das ruas de empedrado, catálogos dos museus, reproduções de Rembrandt, vejo como essas imagens da neve são, também, parte das minhas despedidas europeias. Havia um filme de Bergman em que nevava sempre, não deixava de nevar; era uma neve limpa, sem ruas lamacentas nem sulcos de carruagens. Como uma moldura, essa neve entra em todas as lendas que repetem os seus lugares-comuns: o rosmaninho seco, as estevas, a urze, a flor violeta da urze, as casas de granito ou xisto, os ramos de carvalho, as varandas de madeira, rangendo. E os pássaros de Inverno (como no livro de Grimsley), os choupos à beira do rio.
PESSIMISMO AMIGÁVEL. O Frederico (Nietzsche) do blog benfiquista Nietzsche & Schopenhauer é pai de novo. Para comemorar, escreveu um texto sobre o assunto. Mas a verdade é que há um problema no círculo doméstico e dos seus amigos mais próximos: todos tentam demovê-lo de preencher uma ficha de sócio do Benfica em nome do novo filho Manuel. Há uma razão essencial: não se pode ser assim tão pessimista.
A NOITE, O QUE É?, 36. Não há nenhum nome em nenhum lado do céu. Três estrelas que ficam deitadas, três estrelas que se erguem no escuro, consoante o hemisfério. Muitas vezes, a tarefa do astrónomo amador resume-se a ver o mundo de um lado e do outro, a vigiar coincidências e amostras. Mas acaba por regressar sempre àquela posição ideal: sentado numa varanda, imaginando o mais suave dos ventos. A isto chama-se promessa, também; dormir quando não há mais nada a dizer, só nessa altura.
LIVROS DO ANO, 7. {Ficção} Patrícia Melo, Valsa Negra (Companhia das Letras [Brasil]).
Um maestro e director artístico de uma orquestra de S. Paulo destrói a sua vida e a de todos os que o rodeiam; sobretudo daqueles que ama. Um romance negro e povoado de mal, mal puro, que é aquele que vem da ingenuidade e dos sentimentos que se julgam estar certos. Há aqui de tudo: paranóia sobre a desconfiança, excesso, violência, auto-punição. Não se sabe como se sai vivo da sua leitura. Por detrás destas páginas há uma dor imensa que ninguém consegue suportar.
INÍCIO DE ANO. É estranho o ruído quando começa o ano: parece uma tempestade a meio da madrugada, não deixa dormir. Depois, tudo volta ao normal. Até as notícias mais vulgares voltam ao normal, como se nunca tivessem desaparecido desse ecrã.
É por isso que me lembro de Stephen Jay Gould e das suas brincadeiras sobre o calendário.