DE MOÇAMBIQUE. O José Flávio, português em Moçambique, com um texto no limite, sobre o fio da navalha, a ler sem dúvida nenhuma.
Aviz
«We have no more beginnings.» [ George Steiner ]
julho 30, 2004
OLAVO BILAC. «Onde estão elas, as flores de antanho?», perguntava-se Brás Cubas através de Machado de Assis. Lembro-me sempre de Bilac e do seu poema sobre a Língua Portuguesa. Não nos faz mal um pouco de parnasianismo.
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela ...
Amo-te assim, desconhecida e obscura
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: «Meu filho!»
E em que Camões chorou, no exílio amargo
O génio sem ventura e o amor sem brilho!
Olavo Bilac, 1865-1918. Poeta brasileiro.
ORTOGRAFIA, A ALEGRIA DE LER. O Pedro Ornelas regressa ao Aviz (onde há sempre um lugar) para os nossos diálogos sobre a ortografia:
Caro Francisco: Nada me leva a crer que se escrevesse melhor português em 1993, 1973, 1953 ou 1753... nem que se escrevesse pior. Mas de uma coisa estou certo: cada vez há mais gente a saber escrever, bem ou mal. E isso poderá, eventualmente, explicar que hoje se escreva pior. Mas sou céptico a esse respeito. Já os romanos se lamentavam do avacalhamento do latim - que deu, entre outras coisas, nesta coisa que nós falamos e escrevemos.
Outra coisa de que tenho a certeza é que a ortografia portuguesa está cheia de incongruências e omissões. É mais complicada, por exemplo, que a ortografia do espanhol ou do italiano. Há intermináveis e inconclusivas discussões sobre o uso do hífen ou das maiúsculas, por exemplo. Seria bastante útil, quanto a mim, que a reforma de 1990 entrasse em vigor. Disseram-me ontem que se abriu essa possibilidade por a CPLP ter acordado que não seria obrigatória a ratificação por todos os estados-membros. Espero que seja verdade.
Quanto à importância do ensino do português, confesso que não sei o que dizer. Não percebo nada de didáctica da língua. No entanto, parece-me que só aprende a escrever bem quem gosta de ler. Logo, fomentar o gosto pela leitura será a melhor maneira de fazer com que as pessoas escrevam bem. E não me parece que isso tenha de passar necessariamente pela leitura dos clássicos. Eu sempre fui um aluno medíocre a Português, a disciplina sempre me pareceu uma seca, e no entanto tinha uma facilidade acima da média em exprimir-me por escrito. Porquê? Suponho que foi por ter tido a sorte de ter uns pais cultos, que liam umas coisas, e eu fui lendo o que havia lá por casa – os livros dos Cinco, o Moby Dick, as Selecções do Reader's Digest, o Último Moicano, eu sei lá. Mas do Camilo só li um livrinho da colecção RTP (Maria Moisés), do Eça só me lembro do Crime do Padre Amaro por causa das sugestões eróticas, depois li o Álvaro de Campos no final da adolescência, e pouco mais. Ah, também me lembro dos livrinhos do Rómulo de Carvalho, de que devorei avidamente a colecção toda, mas isso não conta. Continuei a ter más notas a Português porque não tinha pachorra para ler o que me mandavam - ninguém avaliava se eu escrevia mais ou menos bem, mas sim se conhecia a intriga dos Maias ou o que fosse obrigatório ler. E, no entanto, sempre me disseram que eu escrevia bem, desde a escola primária à faculdade e aos jornais. O que será mais importante, conhecer bem a literatura portuguesa ou saber ler e escrever bem? Era bom discutir-se isto sem histerias e preconceitos à Vasco Graça Moura contra os pobres linguistas.
Sobre o Dicionário da Academia: acho que pouca gente percebeu a importância do projecto e o Malaca Casteleiro talvez não se tenha sabido explicar. Foi, simplesmente, a primeira tentativa de fazer um dicionário em que as palavras que lá figuram não estão por acaso, porque alguém se lembrou que existiam, mas sim porque são de facto utilizadas – um conjunto de palavras representativo do português tal como é falado hoje em dia. Tanto quanto sei, o primeiro dicionário no mundo feito com este critério foi o Oxford English Dictionary, elaborado entre 1884 e 1928 com a contribuição de milhares de voluntários. Hoje em dia, as grandes editoras britânicas de dicionários, como a Longman ou a Collins, trabalham a partir de corpora, ou seja, grandes quantidades de textos, recolhidos nos mais diversos tipos de publicações e através de entrevistas, de onde é extraída uma amostra representativa das palavras mais utilizadas. Uma especialista em lexicologia da Faculdade de Letras falou-me de alguns problemas com o Dicionário da Academia, nomeadamente um certo secretismo em torno da sua elaboração e o facto de não terem sido publicados artigos teóricos à medida que o projecto ia avançando, como seria normal. Infelizmente, o que passou para a opinião pública não foi a enorme importância do projecto e a melhor ou pior forma como foi elaborado, mas as reacções à inclusão de palavras «impróprias», à exclusão de palavras caídas em desuso e à tentativa de normalização ortográfica de estrangeirismos.
Quanto aos revisores que o Francisco cita, não tenho o prazer de conhecer nenhum deles. Mas pelas minhas mãos já passaram textos de muita gente, incluindo um tal de Francisco José Viegas, o João Bénard da Costa, o Vasco Pulido Valente, só para citar alguns dos melhores. Quanto aos piores, abstenho-me. Como se nota, fui revisor no O Independente. Agora, há um caso que me dá que pensar: o Leonardo Ferraz de Carvalho foi um dos cronistas que maior prazer me deu. Escrevia maravilhosamente, na minha modesta opinião. Mas os textos dele vinham sempre com erros, lapsos, distracções, incongruências. E, no entanto, quem me dera algum dia conseguir escrever daquela maneira. Trocava já a minha competência ortográfica por aquele maravilhoso dom de escrita.
julho 29, 2004
HAVERÁ UMA SOLUÇÃO LIBERAL PARA A PAZ PERPÉTUA? O Causa Liberal interroga-se, em dois textos, sobre a tentação humanitária de intervir no Sudão. São dois textos com inquietações legítimas e, portanto, mencionáveis.
«Nota: a cartada humanitária é – exagerar o problema, meter-se nos assuntos dos outros e criar ainda mais problemas à pacificação local, disfarçar outros factores geo-estratégicos em jogo, até que a situação se agrava mais do que seria na sua ausência e tornando o intervencionismo "inevitável" para todos.»
«Quanto ao Sudão, aos poucos, devagar devagarinho, vai crescendo o "consenso" para uma nova emergência. Mais um motivo para justificar que a ONU ou a "comunidade internacional" actuem para promover um qualquer bem e impedir um qualquer mal, que "não sei quem" destrua "não sei quem" por causa de "não sei o quê", ou ainda pior, que alguém impeça a chegada de ajuda humanitária decidida por um qualquer burocrata a precisar de ser promovido para um órgão internacional.»
«Por exemplo o Kosovo. Existe quem fique orgulhoso por uma paz só se manter com as armas e que mal estas retirem, os problemas retomem exactamente onde estavam ou provavelmente ainda pior. Nos Balcãs, tentam o mesmo há centenas de anos, foi lá que a Europa começou a ser destruída.»
Admito com facilidade este tipo de inquietações. Mesmo sendo verdade que a barbárie do Kosovo não terá fim nas próximas décadas, o que me assusta é a fragilidade dos mortos indefesos do Sudão só porque não são árabes ou muçulmanos ou são uma pequena peça desagradável na região. Assustam-me os campos de concentração onde ninguém pode vislumbrar, creio, uma ideia de «pacificação local». Tal como me assustavam os massacres no Kosovo, cuja forma de «pacificação local» seria a eliminação sucessiva e contínua de alguns milhões de europeus que a Europa se mostrou incapaz de defender.
Há países em que uma intervenção militar estabeleceria um mínimo de civilização, de tal modo estão entregues à barbárie e à «pacificação local». Mas esta ideia é de uma vastíssima falta de propósito, reconheço.
ORTOGRAFIA, UMA RESPOSTA. Caro Pedro Ornelas: «o que eu disse, e mantenho» (ah, esta expressão retirada dos jornais…) é que os portugueses letrados são relapsos quando se trata de defender um mínimo de inteligência e de delicadeza para a sua e nossa Língua. O Pedro sabe, por várias razões não apenas profissionais, que se perderam alguns hábitos – o de verificar a ortografia segundo os dicionários e o velho prontuário do Bergström, o de observar as regras do hífen e do que, esse malfadado que relativo, o de perguntar, o de esclarecer dúvidas, o de não facilitar. Tenho um ponto a meu favor: todos os revisores que trabalharam comigo, sem excepção, aqui e ali, a quem eu sempre dei poderes excepcionais em hora de fecho de edição (de jornal e de revista) e a quem nunca subtraí influência na hora de confrontar os jornalistas com um erro que fosse. Eles lembram-se.
Li muitos textos impublicáveis, sim; e fui, além de editor, revisor. Tenho esse ponto a meu favor (e testemunhas): não traí a autoridade da Língua. Simplesmente, entendo que o relativismo em torno da ortografia é um passo para todo o género de relativismos. A facilidade com que se desculpam erros ortográficos desencanta-me, tal como acho altamente irregular que tenha sido nomeado secretário de Estado da Educação alguém que desculpa os seus erros próprios ortográficos com a falta de corrector adequado no computador – o que significa retirar toda e qualquer autoridade ao cargo e à função específica. Ou seja: não podemos permitir que um alto dignitário do Estado esteja à espera do corrector ortográfico para redigir um decreto, a menos que coloquemos um revisor atrás de cada caneta ou teclado.
Eu não penso que hoje a situação seja mais desgraçada do que há vinte anos, ou que Portugal seja mais atingido pelo vírus do mau português do que, digamos, a Islândia com a febre do mau islandês. O que eu sustento, com provas – programas escolares, compêndios autorizados e vistos pelo Ministério da Educação, teorias expostas em seminários destinados a professores perplexos, erros ortográficos quase abjectos em manuais escolares do secundário, artigos de professores lamentando-se da situação em que vivem e em que acusam claramente os responsáveis políticos e ideológicos – é que ninguém se importa; ninguém, ou seja, quem se devia importar. E sustento que isso se deve à falta de leitura de bom português nas escolas, à decadência do estudo dos autores clássicos da nossa língua, à falta de palmatória adequada nas televisões (sobretudo na televisão do Estado) quando passam legendas e rodapés que assassinam todas as regras, à permissividade bacoca das elites em relação ao ensino do Português e à qualidade do ensino da literatura. Por exemplo.
Esta opinião não é dominante e nunca será dominante. Seria impossível. Não julgo que estejam a assassinar o Português, como se bradava há anos – mas alguma coisa está a empobrecê-lo. Pois se já o dr. Balsemão se queixava em 1973…
PS,1 – Sobre o Dicionário da Academia. Caro Pedro, nenhuma dúvida em relação à sua importância. O que eu me interrogo é se alguns modismos de ocasião (parte deles entretanto desaparecidos) merecem figurar como exemplos dominantes.
PS, 2 – Eu indicava ao Pedro uma série de revisores ou «preparadores de textos», com quem tive a sorte de trabalhar e de aprender (Ayala Monteiro, Leal Ferreira, João Assis, Constantino Romão, Elsa Rocha, José Imaginário, Rita Bento…), e que poderiam contar muitas histórias sobre o uso do Português por gente ilustre. É isso, justamente, que nos devia deixar ainda mais preocupados.
julho 27, 2004
ORTOGRAFIA, UM RASPANETE. Do Pedro Ornelas recebo um mail sobre o assunto ortográfico. Responderei depois, caro Pedro.
Estas questões da linguística são, de facto, um diálogo de surdos entre meia dúzia (ou devo escrever meia-dúzia para não ser insultado?) de pessoas com formação na matéria contra uma data de pessoas que acham que sabem tudo sobre o assunto. Sem querer alongar-me na matéria, o que você diz do Dicionário da Academia, por exemplo, é simplesmente insultuoso. Por muitos defeitos que o DA tenha, vergonhoso era não termos em Portugal um dicionário feito em termos minimamente científicos, quando os ingleses, por exemplo, já o têm há perto de um século. O DA é um esforço meritório, pelo menos, um princípio. Presumo que o Francisco quando fala de 'linguajar' refere-se à inclusão no DA de expressões correntes do português moderno, colhidas da linguagem oral. Pergunto-me o que dirá o Francisco dos dicionários ingleses, regularmente actualizados de modo a incluírem toda a espécie de neologismos, 'palavrões', etc., que, quer se queira quer não, fazem parte de todas as línguas - talvez não de um registo 'culto', e daí nem sempre.
Eu fui revisor durante vários anos, li milhares de textos escritos pelas mais diversas pessoas, e a conclusão a que cheguei é que não há diferenças significativas, quanto à observância das normas ortográficas e gramaticais, entre um jovem estagiário de 20 anos e um jornalista experimentado com 60. Qualquer pessoa que tenha passado pelo mesmo trabalho lhe dirá o mesmo - se não fossem os revisores, conhecidíssimos cronistas e escritores portugueses seriam crucificados pelos seus deslizes, enquanto muitos jovens jornalistas passariam sem uma gralha.
Só para exemplificar como este não é um problema de agora, recordo uma passagem livro do José António Saraiva sobre o Expresso, em que ele conta como, na primeira metade dos anos 1970, o Pinto Balsemão revia pessoalmente muitos textos do jornal e se lamentava de 'como os jornalistas de hoje escrevem mal' - o que mostra que não era obrigando a dividir as orações dos Lusíadas que se fazia com que as pessoas não dessem erros.
Tanto quanto me vou apercebendo, creio que o problema do desconhecimento da ortografia não é um mal português, tal como as listas de espera nos hospitais não o são, e muitos outros males que nos afligem. E penso que intelectuais como o Francisco têm a responsabilidade de serem mais ponderados naquilo que dizem, e não alinharem pelo mais elementar senso comum.
Se, de facto, como diz o José Vítor Malheiros, aparecem gralhas nos sítios mais insuspeitos, isso deve-se, não a qualquer decadência no uso da língua portuguesa, mas à displicência dos responsáveis de agências de publicidade e empresas ao não contratarem serviços de profissionais para corrigirem possíveis erros. O Francisco, que já dirigiu várias publicações, sabe tão bem como eu, creio, que nenhuma publicação dispensa revisores qualificados - e isto é verdade em qualquer parte do mundo. Nada de histerias, por favor, e mais ponderação.
DAVID JUSTINO. A Grande Loja lançou hoje um repto a David Justino, ex-ministro da Educação: para que escreva sobre a sua experiência no Ministério. Pessoalmente, considero que David Justino foi um dos melhores ministros da educação dos últimos anos. Ao conntrário do que se pensava, conhecia bem demais o mundo dos professores, as suas dificuldades, os seus acessos de pedagogês e de euforia -- e sabia que o ensino não dizia apenas respeito aos professores. De resto, tinha um projecto, defendeu-o enquanto pôde, tinha uma «visão da escola», teve a coragem de não alinhar com banalidades sobre educação e pedagogia, reabilitou algumas palavras, como competência, exigência, esforço e selecção. Foi, por isso, um solitário no Ministério.
BOM GOLPE DE VISTA. «A esquerda do PS. Hoje na televisão vi uma peça sobre a reunião de ontem da Comissão Nacional do PS. Segundo o jornalista, no final o porta-voz da esquerda do PS foi Jorge Lacão. Estamos, então, conversados.» [Duarte Moral, no Golpes de Vista]
MOORE. Através de O Intermitente, aqui está um bom texto de Dave Kopel sobre Fahrenheit 9/11, bem como um providencial resumo a ser enviado a críticos de cinema.
HÁ UM ANO. «Portugal é dos países com maior percentagem de floresta ardida de todos os países da Europa. Comparando com a área da Amazónia, os incêndios portugueses representam uma situação mais alarmante do que a que se vive no Brasil. Será isto uma catástrofe?» {Sexta-feira, 1 de Agosto de 2003}
O GOLO DE ADRIANO NO CANTINHO DO HOOLIGAN. Ainda Gonçalo Soares, mas com outra matéria completamente diferente, pergunta se «o golo do Adriano no último minuto da final conta a Argentina mereceria um post no mínimo laudatório» (já agora, a Folha de São Paulo de hoje publica uma reportagem sobre amigos de Adriano, «o Pipoca» em miúdo, na favela carioca de Vila Cruzeiro -- uma região controlada por traficantes do Comando Vermelho, um dos gangs em combate no Rio --; há mesmo um muro na favela com a imagem de Adriano e vem na primeira página do jornal).
O golo do Adriano tem a marca de um sopro súbito de inspiração. Não apenas por se tratar da Argentina, mas sobretudo porque os argentinos, durante toda a semana, brincaram com a «selecção B» do Brasil. «Vai buscar!», eu ouvi Adriano dizer, sim.
ESPIÕES, 2. O leitor Gonçalo Soares, por email, esclarece: «O português Tiago Verdial detido por espionagem ao serviço da Kroll tem 30 anos e se encontra no Brasil desde 1975. O sotaque com que fala dissipa qualquer dúvida: só é português no papel.»
ESPIÕES NO BRASIL. O Rui Batista dá destaque a esta notícia com bastante relevância: «Espião português pode responder por ao menos seis crimes.» Bom, o Tiago Verdial é apenas um funcionário da Kroll envolvido no célebre caso da espionagem entre empresas do ramo telefónico e sócios rivais da Brasil Telecom (nomeadamente o Banco Opportunity e a Telecom Italia). No meio são apanhados um ministro (Gushiken) e várias personalidades. Não é a primeira vez que isso acontece; há anos rebentou outro escândalo igual quando se tratou de primeira fase de privatização das redes telefónicas fixas (a espionagem chegava a monitorar reuniões nos gabinetes ministeriais de Brasília). Mas, em certa medida, esta história de «arapongas» levantou o ânimo brasileiro: a tão desconsiderada Polícia Federal conseguiu apanhar a Kroll (a maior empresa de segurança e espionagem do mundo) no deslize.
ORTOGRAFIA. [Actualizado] José Vítor Malheiros, autor do texto «Ortografia» do Público desta manhã, tem toda a razão. A televisão (nomeadamente a televisão pública, infelizmente), usa e abusa de erros em legendas e rodapés. Mesmo na comunicação institucional das empresas os erros ortográficos são vulgares. Nos manuais escolares, já aqui em tempos se fez uma relação desses erros. Durante muito tempo, os linguistas acharam que isso não tinha importância -- porque «desde que se comunicasse», o problema estaria resolvido. Temo muito que estejamos a formar uma pequena geração de analfabetos e de gente desinteressada. Em tempos escrevi no Aviz que isso se deve, também, ao facto de «a “classe educada” portuguesa ter abdicado de si mesma e ter abdicado de pensar e de ser exigente. Baixou o nível de exigência nas escolas, aceita sem pestanejar as idiossincrasias de uns cavalheiros que se permitiram gastar milhares de contos para elaborar um dicionário da Academia que rejeita valores e tesouros da nossa língua para passar a ser um saco onde cabe todo o linguajar, desinteressa-se dos resultados do ensino da Matemática e do Português, tornou-se vulgar e medíocre, acha que Bach é uma excrescência inútil, que não vale a pena ler Cesário ou Camilo às criancinhas».
Temos nas mãos uma geração de líderes se contenta em falar e escrever mal o Português, em se desculpar do seu défice de conhecimentos e em parecer muito moderna e contente.
Convém relembrar que, há uns anos, em plena euforia da linguística teórica nas universidades e escolas secundárias se criou a ideia de que a “língua escrita” era secundaríssima. Passava-se todo um trimestre (ou mesmo um semestre) explorando, com êxtase e delírio, as virtualidades técnicas de uma frase como “O João joga à bola”. O que era importante era a “língua oral”, ou seja, a língua tal & qual se fala – e havia mesmo rumores contra os exemplos fornecidos pelas gramáticas mais sérias (como a de Lindley Cintra e Celso Cunha, vale a pena dizer) para explicar o funcionamento da nossa língua. Que não: que aquilo era literatura e que a literatura não tinha nada a ver com a “nossa língua”, ou seja, a língua tal & qual se fala. O resultado parece mais ou menos evidente, e convém, neste caso, generalizá-los – para que se discuta, de uma vez por todas, o problema do ensino do Português e da literatura portuguesa nas nossas escolas. Parece que os estudos existentes já deram o alarme e fornecem números sinistros sobre iliteracia real, analfabetismo prático e fenómenos parecidos. Mas nada interrompe a tranquilidade dos técnicos e especialistas na matéria. Sobretudo porque qualquer medida mais drástica há-de acabar por gerar conflitos insanáveis na sagrada confraria que, nesta matéria, tem dominado o Ministério da Educação. Não é admissível que não tenham sido tomadas, até hoje, medidas sérias para evitar que, no futuro mais próximo, a nossa língua se transforme numa velharia obsoleta e sem regras. Um ensino do Português com tons mais permissivos, preguiçosos e envergonhados não há-de produzir bons falantes da nossa língua, nem bons leitores dos textos da nossa língua, nem sequer gente capaz de escrever – com clareza e rapidez – uma frase decente. O Ministério da Educação devia pensar nisso, com urgência, e as televisões deviam ser vigiadas de perto para não ser possível aparecerem legendas com erros ortográficos na nossa língua.
A EUROPA E O SUDÃO. Escreve Teresa de Sousa no Público de hoje sobre a irrelevância europeia e a sua inactividade na crise do Sudão: «De crise internacional em crise internacional, o padrão de comportamento da União teima a não se alterar. Demasiadas vezes, as suas belas declarações (como, provavelmente, a de hoje) não são mais do que um consenso mínimo possível entre os seus membros, que as torna quase imediatamente irrelevantes. Resta-lhe sempre a alternativa de despejar dinheiro sobre os problemas, na ânsia quase sempre vã de fazê-los desaparecer. Poucas vezes age e quando age é, normalmente, tarde demais ou com menos meios do que os necessários.»
Sobre a questão da inactividade, Teresa de Sousa poderia ter dado o exemplo de Perejil; dada a inabilidade e impotência europeias, foi Colin Powell quem se desfez em telefonemas para Rabat, Madrid e Bruxelas. Sobre a ideia de «despejar dinheiro sobre os problemas», a lista é longa.
DARFUR, A RAIVA QUE NOS DÁ. [Actualizado.] Uma citação simples do texto de Samantha Walker («Cerca de 30 mil pessoas foram já assassinadas, e perto de milhão e meio foram vítimas de limpeza étnica, afastados das suas aldeias e terras de cultivo. Centenas de milhar foram encurraladas em campos de concentração, patrulhados por milícias janjaweed, apoiadas pelo governo, que violam mulheres e matam os homens que tentam sair em busca de comida para as suas famílias. Outros vagueiam pela região sem alimentos nem água. Entretanto, Khartoum tem bloqueado e manipulado a ajuda alimentar internacional.») pelo Nuno Guerreiro, daria para tecer muitas considerações sobre o papel da ONU na questão das «crises humanitárias». Daria para falar do Ruanda, da Eritreia e da Etiópia – e da responsabilidade de países europeus no incremento do número de vítimas. «Quem se lembra dos arménios?», lembrava Hitler (relembra o Nuno, justamente), quando justificava a solução final. Quem se lembra dos sudaneses? Aliás, quem – na altura – se lembrou dos curdos atacados por Saddam e dos massacres de Ali, «o Químico» sobre a população iraquiana? Quem se recorda dos cinco mil mortos no estado indiano de Gujarat (em Godhra, perto de Ayodhya), onde cem mil muçulmanos foram deslocados para campos de concentração?
Há uns meses (Abril), transcrevi no Aviz uma entrevista (publicada na Folha de São Paulo) em que Bernard Lewis chamava a atenção para a questão do Sudão e para a hipocrisia europeia:
O problema palestiniano é apenas um entre os vários que vemos ao longo das fronteiras do mundo islâmico, como o Kosovo, Bósnia, Tchechénia, Caxemira, Sudão ou Timor. Todos esses pontos são manifestações de um mesmo grande problema entre o Islão e o não-Islão.
- Por que a questão palestiniana recebe mais atenção?
- Por duas razões. A primeira é que Israel é uma democracia, então os média podem entrar e sair, fazer o seu trabalho livremente. Israel é o país com a terceira maior presença de jornalistas em todo o mundo, atrás apenas dos EUA e de Inglaterra. A segunda razão é que os judeus estão envolvidos. E judeus são notícia. A vantagem da questão palestiniana é que os agravos podem contar com uma resposta imediata na Europa. Quando lutam contra os cristãos, aí é mais delicado. Não podem esperar que os cristãos se juntem a eles. Houve recentemente um ataque terrível no oeste do Sudão, mas ninguém lhe deu a mínima atenção.
As declarações de ontem do ministro holandês dos Estrangeiros, em nome da UE (sublinho o «em nome da UE porque é suposto ser em nosso nome) confirmam a ideia de que, para não ferir o monstro, se cede à monstruosidade. A UE sabe que, atacando a fundo a questão sudanesa, encontra no fio da meada a al-Qaeda (ver as peças dos enviados da Grande Reportagem à Etiópia, Martin Adler, e ao Sudão, Vincent Dudant – há três anos), o fundamentalismo islâmico, o poder das milícias armadas por senhores da guerra e da droga (como na Etiópia e na Eritreia). E, tal como se a ONU se recusou a condenar o nazi de Harare, recusa-se a condenar os bandidos de Khartoum.
Regressando ao post anterior, desta manhã, sobre a ajuda humanitária a enviar para o Sudão, é necessário lembrar que nenhuma dessa ajuda chegará ao seu destino: ela será desviada pelos militares, desviada pelos funcionários do regime, vendida nas ruas de Khartoum, retida pela burocracia do pobre Estado sudanês e enviada para as tribos fiéis. A UE salvará a honra, chorará convenientemente, a imprensa lamentará, e a ONU poderá ajudar a enterrar os mortos. A raiva que nos dá.
P.S. - O Paulo Gorjão põe, evidentemente, o dedo na ferida: «Sejamos claros. Goste-se ou não da idéia, à Esquerda e à Direita, a situação sudanesa só se poderá resolver com a queda do regime autoritário e com a imposição de um regime democrático.» Por mim, nas tintas. À esquerda e à direita.
Ler também o texto do blog Nós e os Outros (neste como em outros assuntos), igualmente recomendada pelo Paulo.
A RAIVA QUE ME DÁ. Eu, que gosto profundamente do Porto, subscrevo a carta que Gabriel Silva, no Blasfémias enviou a S.Exa. o Senhor Primeiro-Ministro sobre a peregrina ideia de vir aborrecer a cidade com inutilidades. O Porto nunca requereu o favor de uma esmola para ser visitado pelos cortesãos e pelas cortesãs. Escreve o Gabriel: «Saiba vexa que eu não estou disposto a que a minha cidade sirva para passeios fotogénicos, retratos enquadrados no velho casario, passeatas ostensivas de veículos oficiais a alta velocidade, interrupções de trânsito injustificadas, reforço de medidas policiais com prejuízo da vida urbana normal, já de si difícil, entre outros actos típicos de quando a corte se desloca do sofá para outros poleiros, perdoe-se-me a franqueza.»
julho 26, 2004
O CANTINHO DO HOOLIGAN, MAS JÁ COM ATRASO. Esqueci-me, entre tantas notas & reflexões autorizadas & solenes, de referir a opinião curiosa de Rafael Azevedo, do blog brasileiro Blógico (uma das minhas leituras) sobre o Euro 2004:
Pobre Portugal. E a Grécia é a nova Itália, um pouco pior em tudo. Lembra a azzurra tanto na feiúra de seu futebol quando na absoluta mediocridade de seus jogadores, mas consegue ser ainda pior em tudo. Nenhuma jogada bonita, nenhum drible - simplesmente onze jogadores a se defenderem como podem, para marcar um golzinho num erro tolo do adversário.
Ok, é um estilo de jogo. E ganharam, não há o que discutir. That's football. Por que é mesmo que eu me interesso tanto por um jogo tão estúpido? Beh. Mas que Portugal merecia ter ganho essa, isso merecia. Assim como nós vamos ficar pra sempre "merecendo" ter ganho a Copa de 50. E isso vai ser muito ruim para o futebol. Quando finalmente se achava que a Europa, com Portugal, também era capaz de jogar um futebol bonito e entertaining como o brasileiro, acontece isso. Agora dá-lhe mais quatro anos de times na retranca.
QUESTÕES DE POUCA CARIDADE. O ministro dos estrangeiros da Holanda (em nome da UE) declarou-se contra as sanções ao Sudão. Há uma razão profunda, evidentemente: as sanções só iriam agravar a situação do país e tornar mais calamitosa a tragédia humanitária. Evidentemente que isso acontece depois de a Rússia, a China, o Paquistão e a Argélia se terem manifestado contra a hipótese, na ONU. A ideia é que a UE «envie auxílio para a problemática região, de modo a criar uma situação onde todos os refugiados possam ganhar a sua vida e sentirem-se em segurança quando resolverem voltar a casa», como diz o ministro holandês. A noção de «enviar auxílio» coloca questões muito pertinentes: quem distribui esse auxílio?; quem recebe esse auxílio?; como voltarão os refugiados a casa e como se sentirão em segurança, se as milícias continuam (ver notícias de hoje) a actuar livremente?
O ABRAÇO PARA O CARLOS OU A SORTE EM LIMA. Sim, Carlos, eu sei que houve ali sorte. Talvez o Brasil não tivesse merecido ganhar, com os dois golos marcados no fim de cada parte (eu vi o Diego sobretudo, já vestido de azul e branco) sobre uma Argentina que fez uma grande parte do jogo. Que se há-de fazer?
POIS É, POIS É. Ponto 1: «O Papa Pio XI já referiu a existência de uma "verdadeira conspiração do silêncio" sobre os crimes do comunismo em grande parte da imprensa mundial, juntamente com uma "propaganda diabólica" em favor de ideias e estilos de vida anti-cristãos.»; Ponto 2: «Há uma constatação óbvia: a imprensa é judeofílica!»; ponto 3, entre vários: «Órgãos de comunicação social pertencendo a grupos judaicos ou ao seu serviço, alguns exemplos: Frankfurter Allgemeine Zeitung, fundado e financiado pelos Rotschild, Lambert e Rockefeller, Christian Science Monitor, New York Herald Tribune, Boston Evening Transcript, Readers Digest, Berlingske Tidende, Die Zeit, Le Monde, Le Figaro, L’Express, Corriere della Sera, La Stampa, Journal de Genève, The Sunday Times, Radio Luxemburg, Le Nouvel Observateur, The Economist, Financial Times, The Observer, The Guardian, Daily Mirror, The Times, Expresso, SIC, TV Globo, Agência Reuters…» Nem o dr. Balsemão escapa. Este é um exemplo do delírio anti-semita de direita, num texto intitulado «A imprensa, os judeus, o rebanho de Panurgo».
(Obrigado ao F., por me ter feito chegar o link e por ter lembrado No Passion Spent, Essays 1978-1995, de George Steiner, a este infeliz propósito).
julho 24, 2004
A NOITE, O QUE É?, 46. A noite demora a chegar, quando me levanto de madrugada para escrever, trabalhar, pequenas anotações meteorológicas, gotas de água na erva, ruídos de carros que passam na estrada. A madrugada substitui a noite, quando fico desperto pelas horas mais escuras. Cheiro de terra molhada, cheiro de café pela noite dentro, mosquitos que vagueiam, em ondas, depois substituídos pelas borboletas da madrugada. E também madeira salgada do salitre, ouriços, a costa africana, romances do século XIX, opúsculos sobre a ocupação da terra, postais ilustrados comprados numa feira, o vento de ontem à noite, arrancando as folhas da amendoeira, faíscas no céu, alguma coisa cheia de descrições, sistemas solares, azulejos. Acordo cedo, pés no chão morno, restos de chuva; vejo isso todos os dias, todas as manhãs, enquanto não vem a noite seguinte, esperando. Para isso serve a noite, para esperar.
PAULO FRANCIS. De vez em quando abro as crónicas de Paulo Francis que coleccionei por um ou dois anos; mas há um exercício curioso de fazer: um dia, o senador Eduardo Suplicy, do PT, conseguiu que um tribunal impedisse Paulo Francis de escrever o seu nome e de comentá-lo na coluna que mantinha no Estado de São Paulo. Mais tarde, Suplicy caiu em si e pediu desculpa. O exercício consiste em descobrir como é que Paulo Francis se referia a Suplicy sem o citar, sem o evocar, sem provocar de leve uma única alusão.
UM PROGRAMA CHEIO DE CORAGEM. João Miranda, no Blasfémias (ver post «Orgasmo múltiplo»), num notável trabalho de pesquisa, adianta que a palavra incentivo aparece 32 vezes no programa do Governo; estímulo aparece 17; estimular, 10; incentivando, 13; etc., etc. Podemos começar a organizar a nova gramática dos próximos meses.
ISSO É QUE ERA BOM. Dos textos que encontro na imprensa sobre as intenções de Durão Barroso à frente da Comissão Europeia, há uma que me faz pensar várias vezes antes de começar a rir: «Contudo, devemos igualmente poder mostrar aos contribuintes que o dinheiro que confiam à Europa é gasto de forma prudente.»
LUIZ ANTÔNIO ASSIS BRASIL. Sim, também era um dos finalistas do Jabuti; Luiz Antônio Assis Brasil, gaúcho de Porto Alegre com ascendência açoriana tem um livro publicado em Portugal, O Pintor de Retratos (edição portuguesa Ambar, edição brasileira na LP&M), a história de um retratista (a óleo) que vive, na passagem do século, o confronto com a fotografia (e Nadar) e com a guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul. Creio que em breve será publicado A Margem Imóvel do Rio (edição brasileira da LP&M), uma história fantástica passada no século passado, entre o Rio de Janeiro (apenas uma pequena parte) e o Rio Grande do sul, quando o cronista do Imperador parte para investigar um chamado Francisco Silva, a quem D. Pedro teria prometido o barão de Serra Grande; a viagem é espantosa, os Franciscos Silvas multiplicam-se na serra gaúcha e nas profundezas do pampa -- é um desenho do Brasil que merece ser visto.
DEVEMOS CITAR OS GRANDES CLÁSSICOS. Não é por nada; é que vão directos ao assunto e já têm tudo escrito:
«-Tomara que ela não apareça hoje, senão vou ficar perturbado.
-Quem é?
-Se Pero Vaz Caminha a tivesse encontrado, teria escrito de outra maneira: "Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu, as tais coxas grossas, torneadas, terminando no bumbum em pêra, espantosamente roliço, convidativo como aquele sorriso. Ah, sim, descobrimos também uma terra".»
{No blog brasileiro Bricabraque.}
julho 23, 2004
O CANTINHO DO HOOLIGAN. Zagallo diz hoje, na imprensa, que a responsabilidade e a pressão do jogo de domingo (Brasil-Argentina) está toda do lado de Marcelo Bielsa, que está no fio da navalha. Basicamente, a técnica é pré-scolariana: «Nosso objectivo na Copa América já foi alcançado. [...] A ansiedade está com eles.» Percebe-se o argumento, mas se tivessem visto mesmo Sorín a arrancar pelo relvado, lá em Lima, dariam um puxão de orelhas a Luis Fabiano por ainda não ter marcado. É certo que esta equipa é o Brasil-B, e que a grande meta é o Mundial de 2006, mas isso deixa qualquer um frustrado. Antes da decisão sobre o Mundial de 2002, a Copa América também foi cinzenta para o Brasil e muitos jogadores evitaram participar (foi aí que começou o folhetim Romário, aliás). Mas quem viu os jogos anteriores com «o escrete das estrelas» também não fica muito aliviado -- Ronaldo não é sempre rasteirado pelos argentinos no Mineirão, não é?
[No domingo, mando-te um abraço, Carlos.]
SE FOSSE POSSÍVEL UM SOM. Se fosse possível um som seria este. Por causa da respiração, do eco. Só um som.
BERNARDO, SÉRGIO. O Jabuti deste ano foi (na categoria de ficção) para dois autores e dois livros a reter: Bernardo Carvalho, com Mongólia, e para Sérgio Sant'anna, com O Voo da Madrugada (ambos da Companhia das Letras no Brasil, Livros Cotovia em Portugal). Os dois livros já tinham recebido o Prémio da Associação Paulista dos Críticos de Arte de São Paulo.
«Foi chamado de Ocidental por nômades que não conseguiam dizer o seu nome quando viajou pelos confins da Mongólia. Fazia tempo que eu não ouvia falar dele, até ler a reportagem no jornal. Voltou da China há cinco anos e largou a carreira diplomática. Sua volta intempestiva coincidiu com a eclosão da crise da pneumonia atípica na Ásia, o que pode ter servido de explicação para alguns, mas não para mim. O jornal diz que ele morreu num tiroteio entre a polícia e uma quadrilha de seqüestradores, quando ia pagar o resgate do filho menor no morro do Pavãozinho. Pela idade do garoto, só pode ser o que nasceu em Xangai, logo antes de voltarem para o Brasil, quando ele decidiu mudar de vida sem dar satisfações a ninguém. Ao que parece, também saiu de casa em sigilo, terça-feira de manhã, para pagar o resgate. Não avisou ninguém, muito menos a polícia. Seguiu à risca as ordens dos seqüestradores. Os policiais o seguiram assim mesmo, sem que ele percebesse. O menino foi salvo, mas ele morreu no local. Tinha quarenta e dois anos. Ninguém vai ser responsabilizado, é claro. A polícia alega que ele foi imprudente. Liguei para um diplomata do Itamaraty que vive em Varsóvia e que o conhecia desde pequeno. Eram amigos de infância. Estava muito abalado. Decidira pegar o primeiro avião para o Brasil, que partia de Frankfurt naquela mesma noite.»
Bernardo Carvalho, Mongólia.
«Se alguma coisa digna de registro aconteceu em minha vida dura e insípida foi estar entre os passageiros daquele vôo extra, de Boa Vista para São Paulo. Antes de tudo, devo explicar as circunstâncias, talvez fortuitas - mas que depois me pareceram pertencer a uma cadeia de fatos necessariamente interligados -, que me levaram a estar entre os seus poucos passageiros, pois tinha bilhete marcado para as nove horas da manhã seguinte.Eu estava no quarto de hotel e, apesar de haver tomado dois comprimidos das amostras que carregava comigo, não conseguia dormir, por causa do som infernal que vinha da boate em frente, atravessando a janela e a cortina fechadas, misturando-se às vibrações do velho e empoeirado condicionador de ar. As músicas, em fitas que se sucediam sem interrupção, eram dessas gravadas especialmente para se dançar em discotecas vagabundas, as mesmas tocadas nas piores rádios em toda parte, e mal se distinguiam umas das outras.»
Sérgio Sant'anna, O Voo da Madrugada.
julho 22, 2004
PÁTRIA, PORTANTO. As notícias que chegam da pátria são absurdas. Suspeito que não é apenas o Verão, a silly season.
MAIS PROSA DO CADERNO LILÁS. «Província de Okinawa, 1946. Marlon Brando e uma casa de chá ao luar de agosto. E logo ali a Polinésia. E logo depois os trópicos. Abacaxis, bananas, representações diplomáticas. E tomei o café absorvida pela atmosfera de dia seguinte. É esse o seu trabalho? ele perguntou, virando as páginas do álbum do Japão. Mas me interrogando com os olhos escuros, os cabelos meio caídos sobre a testa, a cicatriz no lado esquerdo do rosto. O que mais eu poderia falar sobre o meu trabalho, que já não estivesse ali, em todas aquelas fotos, colagens e desenhos? Eu não sou o que eu faço. Eu sou outra coisa.» {Texto de Karim Blair.}
PROSA CAÓTICA. «Os armazéns, as docas, o arsenal da marinha e a inspetoria da alfândega. Brazil: estava escrito acima, encimado por um telhado que caía em declive, 1892, a Companhia Docas de Santos estabelecida no Valongo, 14 km de cais acostável hoje. A armadora britânica de Lamport & Holt . Dezesseis navios fundeados na barra, 39 sendo esperados nas próximas 48 horas, 28 atracados no porto público, três nos terminais, o som alto de uma música techno, os cachorros pouco ferozes e muito famintos, as sobrancelhas erguidas, as digitais cheias de tinta aplainadas nos papéis. Ele encostou em um container e deixou que a brisa quente da baía entrasse & naufragasse pelos seus cabelos. Passou a mão no pescoço e acendeu um cigarro. O carregamento de banana e de café, as moscas e os cargueiros do píer 45. Levantei a cabeça: os adeuses aos adeuses pequenos, que acontecem nas noites e nos cargueiros, entre as peças de prata das pulseiras, entre diafragmas que se abrem e fecham em segundos, em papéis propositadamente envelhecidos mais tarde no laboratório. Perfumes de gardênia, boleros de satã, um poema de Pound misturado às ondulações marinhas, e os olhos dele percorreram o mapeamento dos insetos que aqui habitam, verificando toda a sua exatidão.» {Texto de Karim Blair, também citado no Prosa Caótica, de Maira Parula}
BRASIL-ARGENTINA NO DOMINGO. A vitória de ontem, contra o Uruguai, não foi justa nem injusta: aconteceu apenas aquilo que era previsível, uma vitória tangencial. Para quem viu o Brasil-Argentina ou o Chile-Brasil de há mês e meio, houve uma «descida de produção»; e não tem a ver com a ausência dos Ronaldos ou de outras estrelas -- mas da confirmação deste futebolinho das «melodias de sempre», que já tinha sido o da Copa de 1998, em França, comandado por Zagallo. Desta vez, Parreira e Zagallo não conseguiram a magia de outras épocas. Eu sei que a Copa América não é assim tão importante. Mas, caramba, a Argentina é a Argentina (desculpa, Carlos), e neste momento joga um futebol muito superior.
PÓ. A Maura Paoletti diz que «as edições novas dos livros de Monteiro Lobato e os programas novos do Sítio do Pica-Pau Amarelo não têm mais menções ao pó de perlimpimpim por causa das associações politicamente incorretas com a cocaína». É outra das revoluções culturais contemporâneas.
julho 21, 2004
AUTÁRQUICAS DE LISBOA. O Miguel Silva, no Viva Espanha! (e fazendo eco de um texto do Irreflexões e do Diario Digital), relembra uma peça publicada na Grande Reportagem sobre irregularidades no apuramento dos resultados nas últimas autárquicas de Lisboa. Na altura, eu era director da revista, sim, e os dados por nós apresentados na reportagem eram seguros -- e são ainda hoje correctos. Nunca foram desmentidos. E nunca foram contestados por quem devia (seria bom que se explicassem os motivos). Há quem diga que nessa noite eleitoral foi tomada uma das mais perversas decisões familiares que afectaram a democracia portuguesa nos últimos anos -- e, já agora, a vida do PS. Ponto final, e definitivo. Pela minha parte.
SUDÃO, DARFUR. Há cerca de três anos, a Grande Reportagem, era eu director, publicou uma história de várias páginas (com direito a capa) sobre os crimes cometidos no Darfur, Sudão. Desde essa altura que acho ignóbil a posição da imprensa em relação a «crises humanitárias» (como o são desde há décadas as da Etiópia e da Eritreia): crianças raptadas e vendidas para a al-Qaeda, mulheres violadas, raptos em série, etc. Mais, muito mais: desaparecimento em massa de aldeias cujos habitantes foram assassinados por milícias árabes e muçulmanas, conhecimento da situação por parte das Nações Unidas e dos seus departamentos (para além das ONG que financia generosamente e cujos resultados são desconhecidos -- excepto o seu cada vez maior poder financeiro), denúncias permanentes da guerra religiosa movida à população cristã (como há anos aos falasha da Etiópia). Finalmente, alguma atenção ao caso, dado que já estão cansados de breaking news de cada vez que uma arma dispara no Iraque. Há vítimas e vítimas. No caso do Sudão, tal como no do Ruanda (e como, será no Zimbabwe, quando a «linha da frente» deixar de apoiar o nazi de Harare) só dez anos depois, ou mais, a ONU revelará a «real dimensão da tragédia», num dos seus relatórios contemporizadores, antes de aceitar que a Síria, Cuba, a Líbia ou talvez o Paquistão presidam à comissão de direitos humanos como moeda de troca. A «real dimensão da tragédia» está ali, em dois milhões de mortos contados no ano passado.
JUVENTUDE, 3. A Maria João Correia de Oliveira, também por mail, acrescenta um pormenor:
«Há poucos dias, um canal de televisão noticiava que, no IPO de Lisboa, há médicos (gente boa e humana) que prolongam o internamento de idosos com o objectivo de lhes proporcionar uma alimentação mais cuidada. Isto dói.»
JUVENTUDE, 2. Nuno Carrilho comenta, por mail, o post que vai abaixo. Transcrevo uma passagem (o Nuno tem um blog):
«Uma outra associação e talvez mais pertinente que a da juventude é a do caso das mulheres associarem-se às criancinhas e aos idosos; realmente as mulheres estão indefesas como as crianças e os velhos? Eu tenho a certeza que não, e que os idosos são das pessoas mais desprezadas da nossa sociedae mas mudar a mentalidade de um povo que é por demais evidente é conservador é uma obra herculiana ou mesmo impossivel... os países nórdicos nesses aspectos estão mto a frente de nós, nos países mediterraneos. Nem se preservaram os fortes laços de socialização familiar onde os mais velhos eram vistos como pedras fundamentais na orgânica familiar e na preservação, não da dita "cultura" mas do respeito pelo próximo, nem que seja da família. De pequenos passos se faz uma mudança de atitude).»
MARIO SAA E OS JUDEUS. José Pacheco Pereira refere no Abrupto este texto de Mário Saa (e publica a imagem da capa, que transcrevo) como «um dos poucos textos anti-semitas publicados em Portugal no século XX». Ainda não há um levantamento do anti-semitismo português mais recente, ou seja, do século XX (no século XXI, de 2001 para cá, há bastantes amostras, algumas delas na blogosfera). Mas o texto de Mário Saa, A Invasão dos Judeus, é uma preciosidade. Há, aliás, vários textos de Saa sobre o assunto. Tenho uma edição comprada, imagine-se, em Díli (há ano e meio), que li no avião. A biblioteca de Mário Saa está montada a poucos quilómetros de Aviz, na freguesia do Ervedal, e o seu espólio pode consultar-se. Também aí, há uma relativamente subtil amostra de anti-semitismo.
julho 20, 2004
JUVENTUDE. Parece que uma das linhas de acção dos governos portugueses é, sempre, a da protecção à juventude. Parece-me um exagero e um abuso. Esta ideia de proteger a juventude é despropositada – não há nada mais protegido, nas sociedades actuais, do que a juventude. No caso português, então, a avalanche de jovens que enche os jornais, as televisões (onde qualquer pivot de notícias com mais de 45 anos parece um absurdo nacional, como se fosse um escândalo aparecer na pantalha um cavalheiro com ar sério e conhecimento do mundo), as ruas, os estádios, os casos de polícia, as claques dos partidos, desmente qualquer necessidade de protecção. Pelo contrário, os velhos merecem protecção. Uma sociedade é tanto mais civilizada quanto mais protegidos estão os seus velhos – das intempéries, das doenças, do abandono dos filhos, da falta de transporte, da falta de alegria. Numa das minhas primeiras viagens na Suécia fiquei espantado quando o revisor de um comboio pediu (com ar de ser uma ordem) a um rapaz que cedesse o seu lugar a uma senhora de idade. E o aspecto dos velhos comoveu-me. Nunca gostei muito de dizer «terceira idade» depois dessa viagem – lembrei-me dos velhos do meu país, escondidos nos fundos, esquecidos nos hospitais. Anos depois, quando o Instituto da Juventude pôs no ar uma série de anúncios de televisão, idiotas e estapafúrdios, sobre jovens «que não fumam», a irritação subiu de tom; num deles, uma «jovem» frequenta lojas de roupa, esplanadas, anda de metro, somos informados de que «gosta de moda» (que é isso?) – e não fuma.
Não; esta ideia da «protecção à juventude» parece-me coisa para mentecaptos. A juventude precisa de gramática, de boas maneiras, de exercício físico, de leitura, de levantar cedo e de liberdade. E precisa de uma escola que não a trate como indigente ou diminuída intelectualmente. Os velhos, sim, precisam de apoio. Eles não são um mercado potencial, como os «jovens»; por isso mesmo os «jovens» não precisam de ministérios, protecção estatal e choraminguice. Mas os velhos sim, precisam de ser bem tratados. Precisam de ser ouvidos e de serem lembrados, de uma vida feliz e, também, de uma morte feliz.
Subjacente, existe outra ideia: a de que os velhos não têm nada para ser valorizado a não ser participar no «Praça da Alegria» e aparecer esporadicamente nos telejornais como vítimas de maus tratos em lugares miseráveis. Este contentamento do país que festeja com alarvidade os seus jovens escritores, jovens pintores, jovens «jotas, jovens estrelas de televisão, jovens vândalos, jovens idiotas e jovens analfabetos só nos devia envergonhar enquanto os velhos não forem, sequer, mencionados.
GOVERNO. Um liberal à moda antiga sente-se um pouco perdido na lista (elenco, como lhe chamam na imprensa) de ministérios do novo governo. Não há «ramificação da vida» que lhe escape: da criança ao mar, passando pela agricultura e pelo turismo, pela família, pelas comunidades portuguesas – não vejo (tirando a «terceira idade», que é uma ideia desprezada pelas novas gerações que exercem o poder, que exaltam a juventude, a juventude, a juventude…) muitas diferenças em relação àqueles governos de países que acabam de se tornar independentes, onde tudo parece ser um campo fértil para que o Estado intervenha, regule, esclareça, proíba ou esbanje. E não falta, nas designações adoptadas, um curioso tom politicamente correcto. Se este governo tivesse saído de eleições, não teria tantos ministérios.
MEDICINA GERAL. O meu médico de estimação (e de verdade, embora eu seja um seu paciente relapso) comemora o seu primeiro aniversário na blogosfera. Merece comemoração.
julho 19, 2004
MURO. O Nuno Guerreiro esclarece um ponto importante acerca do muro de segurança entre Israel e os territórios palestinianos; por exemplo, a existência de uma barreira espanhola em Ceuta: «A barreira espanhola – ou o “muro de Ceuta” – tem agora oito metros de altura e custou 60 milhões de euros, com a sua construção a ser custeada parcialmente com fundos comunitários.» Não se conhece a opinião de Javier Solana. O Nuno acrescenta mais alguns países que instalaram barreiras semelhantes – não com o apoio de fundos comunitários europeus, evidentemente.
julho 18, 2004
MAIS ANIVERSÁRIOS. O Desesperada Esperança, do Bruno Alves, faz anos. O Luís Carmelo também festeja um ano do Miniscente -- e hoje, talvez pelo Verão europeu, lembrou-se de Paramaribo. Não me fica muito longe; e a estrada que segue de S. José de Macapá para o Oiapoque (do Chuí ao Oiapoque...) bem merece a lembrança. O Suriname, esse, merece a visita.
julho 17, 2004
ORNABI, SÃO PAULO. A Ornabi, não sei se ainda existe, mas devia existir. Organização Nacional de Bibliotecas, um sebo (alfarrabista) impressionante, cheio de salas a cheirar a pó, no centro de São Paulo (Sala Fernando Pessoa, Sala Ruy Barbosa, Sala Luís de Camões, etc.) A Ornabi foi fundada e mantida por um português (creio que de S. João da Madeira) que gostava de livros. Nas poucas vezes que lá entrei (nunca se sai de lá sem um livro debaixo do braço), reparei no seu olhar – vigilante, cioso dos livros que tinha reunido, quase cheio de pena pelos que iam saindo, irritado por terem escolhido aquela edição (perguntou-me três vezes, com um olhar triste, se eu estava mesmo interessado naquele Corção que encontrara fora do lugar, e só então desistiu). Não sei se recebeu alguma comenda portuguesa pelo 10 de Junho, como o pessoal do futebol ou do espectáculo, mas São Paulo também ficava mais portuguesa, em parte, por causa da Ornabi.
Isto vem a propósito do texto do Os Outros de Nós, citado abaixo, mas também lembro essa livraria do aeroporto: durante alguns meses, o meu voo de ligação levava-me a esperar algumas horas da madrugada em Guarulhos – e a LaSelva acompanhava-me as horas de espera com as novidades em cima da banca, noite fora. Gosto muito das livrarias de aeroporto; no Brasil, as de São Paulo, Salvador e Porto Alegre são razoáveis para a exigência do viajante devorador (as do Rio desceram de qualidade, não se percebe porquê) – e a de Porto Alegre tem uma secção gaúcha muito interessante (infelizmente, ao lado da loja de chocolates, o que traduz uma situação de concorrência desleal). Fanático, como sou, da Saraiva.com, que entrega livros em dois dias com embalagem especial e cuidados de expedição, reservo-me sempre para os sebos, aqui e ali. E, se bem que o Os Outros de Nós fale do ar clean de grande parte das livrarias de São Paulo, quase nunca resisto a duas: à Cultura, evidentemente, na Paulista – porque não é preciso procurar muito, o que às vezes é uma vantagem; e à do shopping de Higienópolis, por duas razões: os empregados, habituados à clientela dos arredores, são simpáticos, conhecem os frequentadores e os seus hábitos (sim, tem alguma judaica nas prateleiras) e, pormenor a não desprezar, a vinte metros há o melhor petit gâteau de chocolate das redondezas.
DE UM LADO E DO OUTRO DO MAR. A comunidade luso-brasileira de blogs alarga-se. Já tinha referido vários, como o Diário de Lisboa, o Estrada do Coco, o Sushi/Leblon, entre outros -- junta-se agora o Outros de Nós:
«Aquela livraria improvável sempre me fascinou. A cidade tem muitas outras, embora em São Paulo proliferem as livrarias assépticas e modernistas. Não são melhores, nem piores. Mas como nunca achei o livro um objecto moderno, desconcentra-me o snob minimalismo de algumas delas.»Merece visita.
NERUDA, 2. Escreve o António Cruz, por email: «Fiquei admirado quando no seu post sobre o Neruda reconheceu que a sua pouca simpatia pelo poeta se funda num preconceito. Fico sempre espantado quando vejo alguém reconhecer que tem um preconceito. Um preconceito, por definição, não é uma coisa que deveria envergonhar? O Francisco vai-me desculpar, mas não ficaria mais espantado se alguém confessasse "eu não gosto disto, mas isso é porque sou parvo". Eu suponho que fica sempre bem reconhecer as fraquezas e até admiro essa coragem. Eu que sempre aprendi que ter preconceitos é mau, evitaria dizer que os tenho, ainda que os tenha. Mas não seria melhor que tentasse afastar o preconceito quando escreve e sobretudo quando faz um juízo acerca de alguém? Ou, reconhecendo em si tal preconceito, nem sequer escrever?»
Talvez não. O meu preconceito sobre Neruda é menor e por isso escrevi que reconheço nele «poemas que rondam o magistral, o génio, por vezes o absoluto» (no Canto Geral a sequência de Machu Pichu, por exemplo, é única). Mas não o venero como um dos meus poetas. Acontece que nesta matéria dos aniversários, muito grata à cultura comemorativa, existe uma tendência para tomar a parte pelo todo e ignorar o conjunto; glorificando-se o poeta, glorifica-se a obra e, glorificando-se o poeta e a sua obra, como uma coisa só, toma-se como uma única coisa aquilo que não devia ser confundido. Assim, Neruda tem «poemas que rondam o magistral, o génio, por vezes o absoluto», mas não concordo nem me associo à homenagem política que pretende ser caucionada pela qualidade desses poemas, misturando loas a Estaline com descrições das fronteiras do Chile; e, se quer que lhe diga, sem ofensa pessoal, alguns poemas escritos sob influência da paixão pelo «Pai dos povos» são, de facto, uma boa merda. O conjunto não é lá muito notável, em termos comemorativos e geralmente leva tudo de arrastão. Quanto a calar-me: bom, não tinha pensado nisso.
VANTAGENS E DESVANTAGENS. A vantagem do céptico é que raramente alimenta esperanças infundadas. A desvantagem é que também raramente se sente obrigado a prestar vassalagem às suas paixões. Os liberais à moda antiga são cépticos.
MANIA. O Brasil fez um mau arranque e perdeu no Perú. Carlos Alberto Parreira,o treinador (que sorri, ao canto da boca, sempre que se lhe fala de Scolari -- com Zagallo ao lado, numa autêntica dupla das «melodias de sempre») declara que «acabou o tempo das experiências». Já é mania dos treinadores brasileiros.
julho 15, 2004
CRUZES. O Cruzes Canhoto decidiu interromper o seu blog. A sua despedida (necessariamente transitória) tem um tom de amargura e de bom-humor, o que prova que nos entendemos para lá do bem e do mal: «Se antes eu dizia que emigrava se PSL chegasse ao poder, hoje hesitaria muito antes de dizer que antes um tiro na cabeça que ver Avelino Ferreira Torres como primeiro-ministro.» Espero que volte.
julho 14, 2004
LEMBRANÇA AOS EVANGELIZADORES. «Devemos apoiar tudo o que o inimigo combate, e combater tudo o que o inimigo apoia.» [Mao TseTung, em 1939; Obras Escolhidas, T.II] Hoje seria um tal barafunda que o velho Mao faria como António Vitorino.
REPETIÇÃO. Escrevi outro dia que a decisão do presidente da República «não foi uma vitória de ninguém em especial» (inesperadamente é uma vitória do PS, sim, porque isto escreve-se por linhas tortuosas) Mais: «Um liberal à moda antiga não pode ficar contente. Um liberal à moda antiga, ou seja, alguém que preza a liberdade.» Mantenho e insisto.
TANTA ELOQUÊNCIA. Eu começaria por cobrar as promessas: quem vai cumprir a promessa de partir para o exílio, agora que Santana Lopes é primeiro-ministro? Eu, que já escrevi o que escrevi sobre Santana Lopes, gostaria de os ver, cabisbaixos, partindo para o exílio – envergonhados com a Pátria, meia dúzia de livros debaixo do braço, de olhos fechados. Tanta eloquência, tanta. Prometem intervenção cívica, desalojar Sampaio de Belém; há dois anos novinhos em folha cheios de possibilidades – a campanha eleitoral permanente vai começar.
julho 13, 2004
NERUDA. Tenho pouca simpatia por Neruda, mas é um preconceito que reconheço. Há poemas seus que rondam o magistral, o génio, por vezes o absoluto. Há outros que são profundamente menores e que eram uma espécie de cartilha militante, com ditirambos de carácter; sobre este último aspecto, escreveu Borges[*] no Aleph, quando se ri de uma obra intitulada Canto Augural (e que é o Canto Geral, de Neruda), imitação de Whitman com tempero comunista – nomeadamente Estaline, que era profundamente admirado pelo poeta. Borges detestava Neruda e tudo o que ele significava: o comunismo, o lirismo cheio de imagens da natureza, o pan-nacionalismo sul-americano e a tentativa de representar em verso a geografia da grande terra da América. Há mesmo um fragmento do Aleph em que Borges nos obriga à gargalhada: «[Carlos Argentino Daneri, ou seja, Neruda] em 1941 já tinha despachado uns hectares do estado do Queensland, mais de um quilómetro do curso do Ob, um gasómetro a norte de Veracruz, as principais casas de comércio da paróquia de Concepción, a quinta de Mariana Cambaceres de Alvear, na rua Once de Setiembre, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos não longe do conhecido aquário de Brighton.» Mas eu gosto profundamente de «As alturas de Machu Pichu», o melhor do Canto Geral. A poesia «de amor» de Neruda nunca me pareceu ter esse brilho celeste e acredito que foi sobrevalorizado pelas condições políticas da sua sobrevivência.
[*] – Ainda Borges sobre Neruda: «Julgo que ele é um homem muito ruim. Escreveu um livro acerca dos tiranos da América do Sul, e depois teve várias estrofes contra os Estados Unidos. Agora sabe que são tolices. E não teve uma única palavra contra Perón. Isso devido ao facto de ele ter um processo em tribunal, em Buenos Aires, como me foi mais tarde explicado, e não queria correr riscos. E assim, quando se esperava que ele escrevesse alto e bom som, cheio de nobre indignação, afinal nem uma palavra ele pronunciou contra Perón. Estava casado com uma senhora argentina e sabia que muitos amigos dele tinham sido presos.»
PORTUGAL, VELHA PÁTRIA. A serem verdade, as declarações de António Vitorino são notáveis. E não se afastam muito da teoria do pântano, expressa por António Guterres, ou da prática de Durão Barroso: «Há coisas que com humildade reconheço que, ou não sei, ou não tenho a motivação para fazer.» Portugal não nos merece. A lista de emigrados e de estrangeirados continua a crescer. Compreende-se.
GOVERNO. Uma das vantagens é esta: acabou o prazo para justificações. O governo não tem, a partir de agora, legitimidade para regressar ao tema da «fuga de Guterres» e ao descalabro das contas publicas. E vem em plena silly season.
NOTAS. O Público diz que a média de resultados dos exames nacionais baixou na maioria das disciplinas «em comparação com o ano anterior». O problema com que a escola se defrontava não era o das notas -- mas o da aprendizagem. Sobretudo a Português e a Matemática. Recordo um debate, logo depois da vitória do PSD nas eleições de há dois anos, em que o deputado Guilherme Silva dizia não compreender como é que Portugal indexava tantos gastos para a Educação quando os resultados eram tão medíocres. Deu vontade de rir. Porque toda a gente sabe que os resultados não melhoram só porque há uma maioria de direita. Os resultados escolares não melhoram porque a maioria o decreta do Parlamento. Não melhoram pelas intrínsecas e públicas qualidades de qualquer ministro da educação mais popular e apoiado pela imprensa ou pelo partido. Por isso, o ministro da educação nunca foi popular no partido.
MADEIRENSES NO EXÍLIO. O livro de Ferreira Fernandes sobre a diáspora madeirense depois da perseguição religiosa aos presbiterianos, Madeirenses Errantes (edição Oficina do Livro), é seguramente um dos livros do ano. Em meados do século dezanove (tudo teria começado na década de quarenta) muitos madeirenses escaparam à sua ilha e passaram para as Caraíbas, atravessaram as Américas, chegaram ao Havai, no Pacífico. E se a Inquisição tinha sido abolida há anos, a verdade é que, na origem desta fuga, esteve a perseguição religiosa – eles eram protestantes, ou pelo menos tinham acabado de converter-se ao protestantismo. É uma história espantosa, essa, de madeirenses perdidos no mundo. As pequenas narrativas sobre a família Mendes, de Trinidad, são dignas de serem lidas e relidas -- desde Alfie Mendes, um dos escritores mais importantes da zona (juntamente com V.S. Naipaul ou Derek Walcott, ao que dizem os manuais), até Sam Mendes, o realizador premiado com o Oscar (e ignorante o suficiente para desconhecer a história da sua família: «Derek Walcott told someone that Alfie Mendes' grandson was doing great things in London», escrevia o The Guardian em Fevereiro de 2000). Depois, a chegada dos protestantes madeirenses a Nova Iorque, a sua partida para o Illinois (e o encontro com Abraham Lincoln). Se puderem, leiam. É absolutamente brilhante: os inquisidores madeirenses ardem nestas páginas (o bispo D. Teodoro Faria pediu desculpa aos presbiterianos século e meio depois), reconstituem mais um período de fogueiras religiosas. E deliciem-se com o rum Fernandes, de Trinidad, uma das criações madeirenses em Trinidad & Tobago (uma das grandes aquisições da Baccardi, já agora...).
ELEIÇÕES EM SÃO PAULO. A Folha de São Paulo mostrava na edição do fim-de-semana as transformações por que passava a fotografia de Marta Suplicy antes de ser impressa nos cartazes. Lado a lado, uma fotografia de ontem -- e a do cartaz. Marta Suplicy, que reclamava o regresso da luta de classes nas eleições para a prefeitura de São Paulo, parece a Xuxa. Igualzinha.
julho 10, 2004
ATÉ QUE ENFIM. Eu sabia que não resistiam. Nuno Costa Santos, Alexandre Borges, Filipe Nunes, João Pedro George e Rui Branco estão juntos num blog -- e até que enfim.
OXALÁ. Oxalá me engane (por causa do País, etc.), mas não foi uma vitória de ninguém em especial. Um liberal à moda antiga não pode ficar contente. Um liberal à moda antiga, ou seja, alquém que preza a liberdade.
julho 07, 2004
UM ANO. Mais tarde ou mais cedo fazemos todos um ano. Agora é o Ivan Nunes e o A Praia. Saudações luso-brasileiras de cá para lá e vice-versa.
DIÁRIO DE LISBOA. A Maura regressou ao Brasil onde continua, mas agora a partir de um bairro bonito de São Paulo, o seu Diário de Lisboa; se antes era o olhar sobre Portugal de uma brasileira que vivia em Lisboa, agora pouco se perdeu desse olhar, lendo a imprensa portuguesa à distância. Não deixa de ser gratificante saber da sua atenção.
julho 06, 2004
A VIDA QUE AGORA TE COMEÇA. [Para o Rui, do Companhia de Moçambique] Alfazema ou rosmaninho, amêndoa, flor de giesta, castanheiro, um dia ela reconhecerá esses perfumes, e talvez o do mar, o da terra, o dos pinheiros, de olhos abertos, de olhos fechados. Desaparecem de nós muitas coisas menos o nome que hoje te começa, ou te prolonga, ou te fica mais perto do coração.
julho 05, 2004
ENTREVISTA. A entrevista de Santana Lopes (na RTP1) terminou com um tom épico, quando se mencionou a peça de fait-divers do El Mundo em que era tratado como um Don Juan lisboeta (ah, moralistas, exultai!). É por isso que Santana Lopes gostaria muito de ter eleições.
PRAIA. Tal como acontece com o Ivan e quase pelas mesmas razões, de repente um cansaço enorme tomou conta de tudo naquele momento em que o miúdo Ronaldo chutou para as bancadas. Era muito futebol, era pouco futebol? Não, as bandeiras podiam continuar nas janelas, nos carros -- mas esta unanimidade pura, patriótica, nacionalista, heróis do mar nobre povo contra os canhões chutar, somos os maisores, tudo isso continua a ser um excesso apesar dos melhores momentos. Não agradeço ao Charisteas aquele golpe oportuno na nossa baliza, não -- porque aquele futebol de merda é futebol de merda mesmo quando se está do lado da «filosofia» de Scolari («ganhar é preciso/, jogar/ não é preciso»). Mas o pontapé para as nuvens de Ronaldo, que só poderia ter remissão no disparo de Ricardo Carvalho, como uma absolvição, anunciava o fim. Tal como o Ivan, lamentavelmente para mim, não me sinto patriota com as quinas e a esfera armilar e o verde e o vermelho -- tenho as minhas pátrias, sim, mas noutro lugar. Não sou patriota de uma pátria em que o presidente da República chora enquanto malbarata a Ordem do Infante, ou lá o que é. Gosto daqueles golos de Maniche («Vai buscar!»), sim. Mas futebol é futebol -- aquelas horas de emissão, as repórteres a mandar beijinhos aos rapazes «que estão em Alcochete», os editoriais de A Bola sobre a pátria e a remissão dos pecados através do futebol só me provocam repulsa, tal como me provocavam antes. E o que havia a dizer já está dito: Portugal portou-se bem, em geral, as raparigas festejaram, com a pele à mostra. Mas isso era futebol. Futebol mesmo, pátria em chuteiras. O resto já não é. Medalhas da pátria, lágrimas avulsas, isso não. Isso é tudo avulso.
PADRÕES ESTRANHOS. «Detecto no ar padrões estranhos... E não sei porquê passei a irritar-me facilmente, tipo alergia, quando oiço ou leio a palavra "consensos"; cheira-me sempre a mofo embrulhado num misto de bolas de naftalina por cima, tipo continuidade mal-disfarçada; numa decisão ausente, a ausência da decisão; malditas traças.» O A Formiga de Langton faz um ano de invenção na blogosfera. Muitas vezes vamos lá para ter um retrato do mundo visto de cima. Do céu. Do que flutua.
POLÍTICA PURA. O Paulo Gorjão acaba de cumprir um ano de vida na blogosfera. Uma das coisas que se procura no Bloguítica, e se encontra, é opinião clara; mas, como acontece com os melhores espíritos, existem também dúvidas metódicas, informação séria, irritações. É um dos blogues que leio para estar informado (o outro, por razões diferentes e extra-territoriais, é o dos Marretas). Uma ressalva: tenho saudades dos tempos em que o Paulo se dedicava também a questões de política internacional pura. Para quem não saiba, o Paulo Gorjão é especialista em matérias que em Portugal são muito ignoradas, como a zona Ásia-Pacífico, sobre a qual tem escrito vários artigos na imprensa indonésia ou australiana, por exemplo. Parabéns, Paulo.
E AGORA, UMA COISA COMPLETAMENTE DIFERENTE. Bom, já me esquecia deste pormenor: amanhã, segunda-feira, o regresso à vidinha.
O CANTINHO DO HOOLIGAN. Sim, os gregos ganharam a taça. Observações de passagem e sem carácter definitivo: 1) acho que Portugal fez um bom campeonato (quando escrevo bom isso quer dizer, de facto, bom); 2) há jogadores que desiludiram, mas é a vida; 3) houve outros que não me importo de festejar, como Maniche, Ricardo Carvalho, Cristiano Ronaldo, Rui Costa ou Miguel -- mas nenhum goleador «de raiz»; 4) Scolari ainda tem de explicar por que razão andou durante um ano e meio a jogar mal, por que manteve Pauleta em campo, e o que o levou de facto a mudar a equipa depois do primeiro jogo com a Grécia. Agora, espero que deitem contas à vida.
julho 04, 2004
QUE LINDA, A ESTABILIDADE. Há, pelo país fora – blogosfera incluída, naturalmente – uma gritaria descomunal a pedir estabilidade. Não compreendo porquê e não vejo grande vantagem nesta estabilidade. Eu sei que a esquerda pede eleições (e como o Causa Nossa me nomeou na categoria de blog de direita, tenho de ser mais cuidadoso) e, como já escrevi, essa é a sua condição. Ai da esquerda se não pedisse eleições nesta circunstância (refiro-me ao PS – o Bloco e o PCP podem pedir eleições em regime de permanência). Seria uma vergonha se Ferro Rodrigues hesitasse um dia que fosse na exigência de eleições antecipadas depois de o primeiro-ministro anunciar que iria pedir a demissão. Muitos dos meus amigos de direita insinuam casos anteriores, um historial de nomeações e de ascensões ao cargo de primeiro-ministro sem ser através de eleições. Muitos dos meus amigos de esquerda pedem eleições no pressuposto de que, sem elas, não haverá legitimidade democrática que abençoe qualquer primeiro-ministro, o que me lembra a aparição da Eng.ª Pintasilgo, vinda do Além, falando da maior crise de que há memória – a senhora está com amnésia, mas compreende-se (de resto, pedir estabilidade através de eleições, e pedir legitimidade através de operações de rua é coisa que eu não entendo). Eu compreendo que há legalidade constitucional e legitimidade democrática, e que são coisas diferentes. Daí que Sampaio (qualquer coisa de positivo, finalmente, como diria o PC) tenha de tomar uma opção – e, por favor, que a tome sem multiplicar advérbios e adjectivos e sem pregar sermões de duvidosa moralidade. Que a tome, a justifique e seja rápido (a final do Euro é já hoje).
As eleições não assustam ninguém de bom senso e que saiba o preço da conquista do poder. É apenas disso que se trata. As coisas, nessa medida, são muito simples: 1) Durão Barroso aceita o cargo europeu; 2) Fez bem aceitar e não se compreende o coro que, agora, desvaloriza o cargo; 3) Ao abandonar o governo, Barroso sabia que a convocação de eleições era uma das hipóteses, tanto mais que o resultado das europeias tinha deixado o seu governo – e o seu partido, e a sua coligação – em situação muito fragilizada; 4) Volto a insistir num ponto (ver abaixo o post «Bom Motivo, Mau Motivo»): um governo de Santana Lopes será um governo do PSD, mas não será um governo do mesmo partido – será inteiramente diferente. Ou seja, um eventual governo de Santana Lopes não seria o governo nascido do quadro eleitoral anterior – a prova está na reacção de Manuela Ferreira Leite, por exemplo. Santana Lopes formaria um governo do PSD, mas com base num programa inteiramente diferente daquele que o «quadro parlamentar actual» validou, aprovou e defendeu.
De resto, mantenho que Santana Lopes gostaria muito de ir a eleições. E, salvo erro, essa hipótese assusta cada vez mais o PS.
O pedido de estabilidade parece-me, nestas circunstâncias, absurdo. Justificava-se, sim, se Durão Barroso fosse primeiro-ministro e a gritaria se mantivesse nas ruas. Demitido Durão Barroso, e nas actuais circunstâncias políticas, a realização de eleições não é nada absurda. E vão ter resultados muito surpreendentes.
O país não precisa de estabilidade: precisa de clarificação. Seria importante saber se o PS multiplicaria a criação de fundações dependentes dos dinheiros públicos, o que propõe para a função pública, como vai lidar com as metas impostas pela União em relação ao défice, o que vai propor em matéria de endividamento das autarquias e do sector público, com que dinheiro pensa fomentar a política de investigação e do ensino superior, que política vai seguir quanto às propinas, o que pensa da rede de transportes e da armazenagem de clientela em institutos e departamentos estatais. Tal como é importante saber como vai ser, exactamente, a sua política externa, embora isso me importe menos do que saber o que pensa sobre a reforma do ensino ou os programas de ensino do Português, ou o que vai fazer acerca do endividamento das regiões autónomas. Coisas concretas. A banalização doentia da contestação e do discurso rezinga exige, agora, posições claras e confronto. Se isto acontece apenas dois anos depois de eleições legislativas, a culpa é de quem deixou a situação chegar a este ponto, sendo que a saída de Barroso é apenas um pretexto. O país não precisa de estabilidade – precisa de respiração e de alívio, e de corrigir erros e de tomar fôlego: está crispado e desconfiado, inquinado por falsos debates e pela vulgaridade dos seus políticos. Eleições não resolvem isso, toda a gente sabe – mas ajuda a eliminar uma série de dúvidas.
PS - Uma nota final. José Pacheco Pereira resumiu bem a situação quando diz que o populismo serve, sobretudo, para fazer desaparecer o centro político: «Um dos efeitos induzidos do populismo é a deserção do centro político. Porque é difícil, porque dá trabalho, porque não dá votos, porque não brilha na televisão...» E quando conclui que estamos na luta entre o Bloco de Esquerda e o Bloco de Direita. Mas acho que não basta tirar essa conclusão, lançados os dados como estão. Como Pacheco Pereira, também penso que Durão Barroso deitou fora dois anos, entregando-os a Santana Lopes.
julho 03, 2004
MOORE. Pior do que o populismo da alarvidade pura, que não esconde que é populista e aldrabão, só o populismo de uma alarvidade totalmente mascarada, que recebe o aplauso daqueles que só sabem pensar com os holofotes à beira dos olhos, como se tudo fosse espectáculo. O texto de Christopher Hitchens é muito justo para com o personagem: o menos que lhe chama é desonesto e demagógico. Michael Moore sabe para quem trabalha: para o terceiro mundo da inteligência ou para quem não precisa, sequer, de inteligência e se contenta com banalidades. De tempos a tempos há subprodutos assim. Já vi coisas piores na capa da Newsweek.
CRISE. A Eng.ª Lurdes Pintasilgo disse, diante das câmaras de televisão, que esta era a maior crise (política, suponho) vivida em Portugal depois de Abril de 1974. O género humano tem sempre novidades para nos oferecer, e gratuitamente.
O PENALTI DE POSTIGA. Sobre o penálti de Helder Postiga, o Daniel Rodrigues (entre a Alemanha e Portugal, e que agora tem um blog), enviou um curioso mail: «Após ler um dos poucos comentários à forma prodigiosa como Hélder Postiga marcou o seu penalti, lembro que num jogo de sub-21, não posso precisar qual, o ex-jogador do Futebol Clube do Porto tfez uma coisa exactamente igual. Antes de marcar, vendo como os jogadores ingleses estavam a humilhar o Ricardo, rematando sempre para o centro da baliza, pedi, no meu intímo, que naquele momento era audível, que ele marcasse outro assim. Um penálti que deixa o estádio em suspenso, o coração a bater demasiado e o guarda-redes prostrado, frustrado por não conseguir levantar-se a tempo para ir ao outro lado buscar a bola. É cruel. É a tortura que mostra a superioridade de alguém sobre o outro, tal como arrancar unhas, ou espetar agulhas. James irá certamente acordar muitas vezes durante a noite, a ver a bola passar ao seu lado. Neste caso, não se pode dizer "nem a viu". O jogador do Totenham deu a oportunidade a James de não precisar de ir buscar a bola lá dentro, para confirmar que foi batido... Como no Matrix, ele esteve simultaneamente a defender e, de lado, a assistir ao passe-remate. Quando este momento infindável terminou, uma amiga disse-me: "Este golo foi para ti!" Eu sabia que o Postiga não me ia decepcionar. É um daqueles lances nos faz sonhar...»
DIZES BEM, DIZES BEM... O Alfides, do Lacrimosa tem o bom hábito de terminar os seus posts com uma frase em latim. Sobre a festança do Euro na televisão escolheu uma bem apropriada: «Puer es; nec te quicquam, nisi ludere oportet; lude.»
CALISTO ELÓI. O André Cunha de Vasconcellos publica no seu A Torto e a Direito uma pequena lembrança sobre Durão Barroso, citando Calisto Elói, o velho Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, o de A Queda de um Anjo. Há livros que devíamos ler antes de serem reescritos pela realidade, como lembrava a certa altura o bom Brás Cubas, de Machado de Assis, na suas Memórias Póstumas.
SOPHIA, 2. Por mail, FBP envia-me um poema de Sophia. Sem saber, recuo muitos anos. Foi o poema [«Meditação do Duque de Gandia sobre a Morte de Isabel de Portugal»] que, há vinte e quatro anos escolhi para um trabalho universitário. É dos mais belos poemas de Sophia (vem em Mar Novo, de 1958). Obrigado, FBP.
Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser.
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência.
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
CRIANÇAS. Vi, na televisão, uma reportagem sobre o stress das crianças durante o Euro. Um psicólogo explicava que os adultos dão largas à sua agressividade e que isso pode prejudicar as crianças, digamos que «provocar um trauma»; além disso, a febre futebolística pode também levar a desilusões: as crianças pensam que é só ganhar, só ganhar. Esta história dos traumas é absolutamente ridícula, dado que tudo provoca traumas e que tudo pode constituir um perigo para as crianças -- no fundo é um ramo extremamente prometedor no exigente ramo de negócio da psiquiatria. De seguida, a reportagem falava com crianças, à procura de traumas e de medos: «E então se Portugal perder a final? Ficas triste?» Pergunta diabólica, não? Resposta da criança: «Não.» «Não?» «Não.» Bom, a repórter não ficou convencida; apenas derrotada e cheia de stress. Mas o psicólogo garantia que era perigoso. Um raio que os parta.
Esta ideia de que as crianças devem ser protegidas de todas as emoções (sobretudo das que vivem mais intensamente) é uma doença hilariante dos profissionais do sector e da imprensa que adora traumas em cabeça de página. No início do ano, as crianças sofrem do stress do início do ano escolar. O stress do Natal vem a seguir. O stress das notas de final de período escolar aparece depois. E o stress das férias faz a sua aparição nesta altura. Se pudesse haver um mundo em que todas as emoções pudessem ser controladas directamente dos consultórios dos psicólogos, esse mundo protegeria as crianças até ao limite, poupando-as à alegria, à desilusão e às lágrimas. E o mundo seria tão perfeito que qualquer abalo teria um peso insuportável; as crianças não conheceriam a dor da derrota nem a euforia histérica da comemoração. Seriam ensinadas a pensar que não havia impostos, exames finais, horários de refeições, trabalhos escolares e que as caixas de Multibanco fornecem dinheiro livremente. Alguém explicaria que excesso e ausência seriam pecados terminais. Esta gente transforma o mundo num precipício.
BRANDO. Sim, ele era o actor. Ele era a respiração do actor, aquele que fazia parecer todos os outros apenas estrelas de plástico, pechisbeque. Ele era a voz, a pausa, o olhar, o meu actor.
Poema
A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua ecsrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
O quadrado da janela
O briho verde de Vésper
O arco de oiro de Agosto
O arco da ceifeira sobre o campo
A indecisa mão do pedinte
São minha biografia e tornam-se o meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada
Sophia de Mello Breyner Andresen [1919 - 2004]
Geografia, 1967
Instante
Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio
Sophia de Mello Breyner Andresen [1919 - 2004]
Livro Sexto, 1962
O Anjo
O Anjo que em meu redor passa e me espia,
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me cantando no seu peito.
Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que feroz comigo luta,
Ele que me entregara à solidão,
Poisava a sua mão na minha mão.
E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse,
E o meu ser liberto enfim florisse,
E um perfeito silêncio me embalasse.
Sophia de Mello Breyner Andresen [6 de Novembro de 1919 - 2 de Julho de 2004]
Dia do Mar, 1947
julho 02, 2004
"
SOPHIA. Nesta circunstância, que é a da morte, nenhuma palavra é melhor do que as da própria Sophia. Eu recordo os primeiros versos lidos, os muros brancos, o mar, o azul do mar, as coisas elementares que só percebi que eram elementares depois de as ter lido nos seus poemas. E, nessa altura, eram as coisas mais belas que tinha encontrado. Mesmo com o passar do tempo, os seus poemas nunca perderam -- em qualquer momento -- o brilho dessa beleza designada com os nomes mais intensos. A falar verdade, só na sua poesia algumas palavras deixavam de ser fáceis ou vulgares. Como ela dizia: «As palavras às vezes coincidiam com os seus significados, e depois deixam de coincidir, e voltam a coincidir outra vez.»
julho 01, 2004
O CANTINHO DO HOOLIGAN, OUTRA VEZ. Ao lado delas, de resto, estava um grupo de jornalistas locais, incomodados com a festa. Naquele desprezo notei uma tristeza imensa, como se tivessem dado conta de que eram incapazes de compreender o Verão todo. Todo ele.
E tive uma pena imensa daqueles desgraçados incapazes de rir, de mudar de roupa, de desabotoar a camisa, de alargar o planisfério, de abandonar o ar cansado e canalha. Não podia chamar-lhes «coitados» senão com a sensação de que a pobreza de espírito se manifesta de muitas maneiras.
O CANTINHO DO HOOLIGAN COM TENDÊNCIAS SOCIOLÓGICAS. Ao ver a Pátria – onde já vi o último jogo – vestida de bandeiras, não achei despropositado (o problema é mesmo a bandeira...). Agora, acho é que há uma revolução cultural importante a decorrer: basta ver o público feminino a torcer pelo futebol. Atrevidas, não? Acabei de ouvir um grupo de raparigas estivais, no passeio da Duque de Loulé, a cantar a canção de Nelly Furtado com a alteração do refrão: «Come-me à força...» (Por favor, Bruno, vem em minha defesa!)
HOLANDESES, PRONTO [O CANTINHO DO ULTRA-HOOLIGAN]. Figo sorriu – foi a grande novidade do Euro 2004. De resto, a Holanda – que seria uma selecção simpática – viu o jogo pelas lentes de Davids: com um sorriso amarelo. E no golo de Cristiano Ronaldo nada me deu mais prazer (nada mesmo, tirando o golo propriamente dito) do que ver Davids lá dentro, encolhido e derrotado. Vai buscar. Eu gosto desta frase quando Portugal ganha: vai buscar. Imagino ao que ia na cabeça de Maniche depois de marcar aquele golo de antologia: «Vai buscar!» O «vai buscar!» é, no fundo, a essência do futebol. «Toma!» Manguito e meio. Dir-me-ão que tudo vai do talento dos jogadores, a quem compete saber que estão ali para jogar e fazer em noventa minutos aquilo que a um dinossauro levaria anos. Às vezes, eu temi. Portugal necessitava de 25 passes para fazer chegar a bola à área holandesa, perdendo-a no quarto final, o que não é a melhor forma de obter golos na primeira meia-hora, como se sabe, mas enfim. De resto, ainda me hão-de explicar porque razão os avançados portugueses caem na área adversária, tropeçando ou escorregando. Veja-se o replay dos 24 minutos da primeira parte, depois de uma arrancada magistral de Figo: Deco e Pauleta sentaram-se porquê? E já agora vão ao replay do minuto 34: Pauleta (o mais distraído avançado do Euro) chuta em desequilíbrio depois do passe monumental de Maniche por que razão? Troquem as chuteiras, meninos. Os portugueses já aprenderam – a essência do futebol é essa frase gloriosa: «Vai buscar. Toma.» Com aquele brilho que o Maniche leva nos olhos.