novembro 30, 2003

A NOITE, O QUE É?, 29. Revelações de quase todos os dias: onde é a tua casa, onde fica esse lugar em que te sentes próximo da terra, próximo do céu (quando o céu está mais próximo da terra), próximo de ti? Há um destino errante na tua vida, olhas para ele quando a noite se mantém em silêncio, como se fosse um reencontro. E depois fazes a pergunta: onde é a tua casa, onde é o teu lugar, onde adormeces no meio das árvores, onde nasce o teu dia? E as imagens voltam, como o cenário diante de uma varanda debaixo desse céu do sul: Cassopo, Fénix, Grou, Centauro, o Cruzeiro do Sul, Mimosa e Acrux. Estrelas de outro mar.

O ESTADO E OS ESCRITORES. Instalou-se algum burburinho em redor de um texto de José Pacheco Pereira sobre «O Escritor como Funcionário Público». Um dia participei num debate da SIC sobre a matéria e estava do outro lado do que Pacheco Pereira defendia — o fim das «bolsas de criação artística» para escritores. A razão porque então defendi (estávamos em 1995) essas bolsas era fácil de ver: o Ministério da Cultura e os institutos tutelados pelo MC atribuíam (e continuam a atribuir) bolsas, subsídios e apoios financeiros ao teatro, ao cinema, às artes plásticas até aos desfiles de moda; o fim das «bolsas de criação artística» para escritores configurava uma espécie de corte selectivo — deixando de fora (ou mantendo «dentro») o pessoal do teatro e do cinema, ou seja, da indústria. Ou seja: alimentava-se uma vasta corte de funcionários na área das «artes visuais» e «do palco» que se achavam investidas do direito divino ao subsídio. Para eles, raramente se falava em cortes ou no fim dos subsídios.
No caso dos escritores, o principal problema tinha a ver com a selecção dos projectos, evidentemente: era absurdo atribuir uma bolsa a alguém que nunca tinha escrito um livro — mas foi isso mesmo que se fez. E também era absurdo atribuir uma bolsa ao escritor fulano ou à romancista fulana só porque o seu nome evocava «enormes contributos à literatura do nosso tempo» — o que os dispensava, em muitos casos, de apresentar prova de que tinham escrito fosse o que fosse. Há excepções claras a esta situação, e alguns autores foram honestos ao ponto de mencionar, nos seus livros, que os tinham escrito graças a uma bolsa.
A questão, aqui (na nota de JPP), não é a das bolsas — mas sim a ideia do direito dos escritores ao apoio do Estado, e a de que sem o apoio do Estado a literatura portuguesa desaparece. Ora, eu sou pelo desaparecimento dessa literatura portuguesa apoiada pelo Estado e que só sobrevive com o apoio de subsídios (e do teatro também), porque não me parece justo que o Estado ande a subsidiar «criadores» que têm medo de arriscar (e, mais do que isso, acreditem, de correr qualquer risco na literatura como na vida) e que pensam ser dever do Estado apoiar a sua preguiça intelectual, a sua inflexibilidade e uma sobranceria agressiva que se vai tornando congénita e doentia à medida que os anos passam — além desse direito divino ao subsídio.

HISTÓRIA AO ACASO. Histórias destas acontecem todos os dias — os «consumidores» nem sempre têm os seus direitos defendidos — mas há pormenores absurdos em muitas delas. Sempre me interroguei, por exemplo, sobre livros mal traduzidos, com gralhas em excesso, capas e miolo mal impressos, páginas que se soltam, etc. O direito do consumidor não trata do assunto, como acontece (felizmente) com os iogurtes, a roupa ou a alta-fidelidade. No caso dos carros (ah, o poder da indústria automóvel...), parecem existir esses pormenores macabros — informaram-me que, mal o comprador meta as mãos no carro novo, acabadinho de comprar, não tem direito a «substituição do produto» mesmo que os defeitos sejam absolutamente notórios. Este caso merece atenção; não pensem nele em particular. Pensem que podia ter acontecido com qualquer pessoa.

novembro 27, 2003

E-MAIL. Mudou a caixa de correio, o link está aí à esquerda.

A NOITE, O QUE É?, 28. Não conseguir dormir longe dessa sombra, dos ruídos da noite, estradas solitárias, nomes desiguais, designações. Como uma tempestade, a noite termina à hora a que acordo, demasiado tarde para ouvir esses ruídos, demasiado cedo para falar.

OBRIGADO. Ele é um mago dos templates. Agradecimentos ao Adzivo por me ter ajudado a corrigir alguns defeitos gráficos do Aviz.

AFINAL, ERA VERDADE. Ana Gomes, Eduardo Prado Coelho, Jorge Wemans, Luís Nazare, Luis Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva, Vital Moreira. Todos juntos?

novembro 26, 2003

A NOITE, O QUE É?, 27. Entre dois mares, entre dois climas, entre as árvores. Quando chove, de noite, precisamos mais de saber onde está o rosto que mais se ama — é uma coisa que ainda não tem nome, essa imagem que protege do vazio. Mais tarde, quando chega, traz consigo toda a madrugada.

ARQUIVAR O ANTI-SEMITISMO. Nunca deixes que os dados estraguem uma «boa ideia».

novembro 25, 2003

O QUE FALTA À BLOGOSFERA, 4. O Pedro Adão e Silva publicou no País Relativo um texto sobre o assunto (que vem, aliás, de um primeiro comentário do Paulo Querido) e no qual toca em pontos essenciais, nomeadamente quando diz que o blog é «antes de mais, o espaço de tudo o resto que me interessa»: «Gosto de ter vida para além da vida que agora me ocupa 90% do tempo profissional (a política), mas, também, porque faz parte da minha agenda pessoal, mas, também, política, escrever sobre um disco de que gosto, um concerto a que fui, um filme a que quero ir ou qualquer outra coisa de que no momento me apeteça falar. Escrevo quande tenho vontade e até tê-la, sem agenda, nem coerência.» Há uma passagem do seu texto que nos põe em completo acordo e que contraria a ideia da «agenda a todo o custo»: «A blogsfera foi uma coisa fantástica que aconteceu e, por isso, espanta-me que neste espaço de liberdade, de incoerências e cuja principal virtude é a total amálgama de temas, de tons, de sujeitos e de registos, haja permanentemente uma tentativa de impor a alguns bloggers uma agenda que não a sua — pessoal, idiossincrática, mas, ainda, assim transmissível.» Percebo o que o Pedro quer dizer quando diz que escrever sobre um livro, um filme ou um concerto, sendo matéria pessoal, «também» faz parte da sua agenda política — como uma contiguidade — mas conviria esclarecer mais esse aspecto.
Já agora, e o Pedro não levará a mal, lembro-me de uma entrevista que fiz com Álvaro Cunhal (para o «Escrita em Dia», na SIC, há anos): antes da entrevista, durante um café, falámos de livros que tinha lido, dos seus gostos pessoais, etc. Depois, no estúdio, quase no final da entrevista a pergunta apareceu, natural, no fio da conversa — que livros andava a ler. «Isso não vou dizer.» Porquê? No fundo era também isso que queria saber. «Porque os meus adversários podem pensar que as próximas iniciativas políticas do meu partido, por exemplo, podem depender dessas leituras.» Aí está. Do género: o que vai o PS fazer depois de o Pedro ter visto o Mystic River?

INTELECTUAIS, TRADUTORES DE CÓDIGOS. Sobre este assunto (referido num texto de ontem), Carlos Pereira da Cruz escreve por mail:

«Não sou um intelectual, sou um consultor de gestão, de produtividade, de todas essas coisas técnicas. Lembro-me sempre do comentário que Popper fazia ao pensamento de Espinosa — que defendeu a liberdade de pensamento como um direito inalienável, de que nem um tirano, por muito que tente, consegue despojar-nos. Popper escreveu no seu livro Em Busca de um Mundo Melhor: “Creio, todavia, que já não é possível estarmos de acordo com Espinosa neste ponto. Talvez seja verdade que a liberdade de pensamento nunca poderá ser completamente reprimida. Pode, porém, ser pelo menos abafada de modo considerável. Isto porque sem uma livre troca de ideias não pode existir uma efectiva liberdade de pensamento. Precisamos dos outros para com eles testarmos as nossas ideias, para verificarmos se são plausíveis.” Na minha modesta opinião espero que continuem a existir pessoas que possam dedicar a sua vida a pensar, a elaborar uma matriz de conceitos que todos nós, que não somos profissionais do pensamento, podemos ler, escutar, discutir e sentir que ficamos mais ricos porque a quantidade de conceitos que podemos abarcar se alargou, enquanto estudava e amava química na universidade delirei com Toqueville, insultei a escola que me ensinou história da filosofia e nunca me deu a conhecer Popper, ou Bertrand Russell; ainda hoje ando com uma cópia sublinhada e anotada de Ortega y Gasset. Nada disto é directamente utilizável no meu dia a dia profissional, mas se não conhecesse o pensamento destes autores não seria o que sou hoje.»

O QUE FALTA À BLOGSFERA, 3. Também A.E.F. escreve — de Timor — sobre o mesmo texto, mas acerca do «efeito pernicioso» dos «blogs mais mediáticos»:

«Devo dizer que, embora compreendendo o fenómeno e o que querem dizer, não me assustam nada o “efeito pernicioso” e/ou o “efeito totalitário”. É bom ler, é bom ouvir (ler) o que os outros têm a dizer, é bom reflectir sobre as opiniões dos outros, ainda mais de quem tem o exercício de pensar como “profissão” ou “passatempo” (nem todos têm!; alguns não podem), ganhando “protagonismo” natural com isso pela qualidade das intervenções, pelo destaque de uma carreira, ou por conquista diversa (independentemente de se concordar ou não com elas). O pior é quando não há massa crítica. Considero poder dizer, sem grandes reservas ou medo de ofender a pátria, que estamos mal nesse aspecto em Portugal. Estamos mal na família, estamos mal na escola, estamos mal em sociedade (em termos gerais). Fico triste por dizê-lo. […] Gosto de Portugal, sou Português (soa bem, não soa?), “apesar” de ter nascido em Angola e de também me sentir Angolano, e agora Timorense, porque não? E é por isso que não fico calado com medo que me acusem de anti-pátria ou coisa que o valha. Digo-o para reflectir na mudança, na melhoria. E já agora devo dizer-lhe que, apesar de lidar com pessoas que usam a cabeça como maior instrumento de trabalho (devia ser assim), tenho, em tantas ocasiões, usufruido de mais cultura, de mais sensibilidade, de mais motivação para pensar e de ideias diferentes nesse biótopo estranho, próximo e tão distante, que é a blogosfera. E, com tudo isso, com a admiração que nutro por certas pessoas, não me sinto domado ou conquistado, apenas atento, mais desperto, mais rico, porque posso “trocar impressões” com mais gente, outra gente.»

O QUE FALTA À BLOGOSFERA, 2. Por mail, o Carlos Antunes comenta a ideia de que «ninguém pode impor silêncio seja a quem for, nem pode obrigar seja quem for a falar sobre aquilo que acha que devia ser matéria para pronunciamento»:

«É natural que se tenha esquecido de uma excepção a esta “máxima” aparentemente certeira: a táctica do espelho. Ou seja, aquilo que é (já) designado como “metabloguismo”, os blogs de e sobre blogs. É uma coisa tão irritante como aqueles miúdos que imitam todos os nossos gestos, palavras, tiques e trejeitos. E, se reparar bem, já existe muito disso no blogbairro: blogs que se limitam ao copy&paste, à citação gratuita e aleatória com o mesmo critério de qualquer lista de compras; ou listas de endereços encaixados à matroca em “classes”, tipos e sub-tipos; canibalizações da produção alheia, sem uma vírgula de conteúdo próprio. Na “blogosfera”, é possível impor silêncio, sim, com esta “técnica” parasitária. Foi o que aconteceu com o Bloco-Notas; limitava-se a informar os bloggers portugueses, todos os dias, de quantos blogs existiam, quais e onde, e, destes, os que tinham actualizações, e quando. Se bem que, parcialmente, isto foi sistemática e — repito — irritantemente reproduzido, em triplicado, parasitado até à exaustão, vigiado, acossado. Obviamente, o Bloco-Notas fechou. O que fazíamos servia mais os parasitas do que os utilizadores; estes, devido a alguma idiossincrasia misteriosa, preferiam a cópia ao original. Portanto, andámos sete meses a trabalhar para parasitas e havia que acabar com isso. Não é isto uma forma insidiosa de silenciamento? De resto, visto de outra forma, é o que se lê no seu “post” sobre a “Patrulha Ideológica”, […] que resume perfeitamente o assunto. Contradiz a tese da impossibilidade de silenciamento na “blogosfera”, mas não se pode ter tudo. O silenciamento não pode, por definição, ser barulhento.»

KIPPAH. A propósito das dúvidas sobre o conselho do rabinato de Paris acerca do uso de kippah (comentado pelo Nuno, do Rua da Judiaria), a Ana Albergaria fornece alguns exemplos úteis sobre o anti-semitismo francês que continua, aliás, uma larga tradição europeia (à esquerda e à direita) que convém não ignorar. [Ver a nota do Alberto Gonçalves, no Homem a Dias, bem como a chamada de atenção do Luís Carmelo no Miniscente] Há dois pontos que gostaria de destacar: 1) existe uma tendência para a vitimização que ocorre no contexto do shoah business e que me parece uma tentação perigosa; 2) o conselho do rabinato de Paris sobre a abstenção no uso de kippah é compreensível mas não deve significar que se aceita a intimidação ou que se acatam as «instruções mais politicamente correctas» (reenvio para o texto do Crónicas Matinais) para esconder aquilo que não oferece motivos para ser escondido. Mas, de facto, só quem está lá é que pode reagir e falar com inteira propriedade. O anti-semitismo não se apaga com as declarações de tolerância institucional.
Tudo isto nos traz de volta, evidentemente, o debate sobre a «tradição judaico-cristã» na Europa e as polémicas sobre a inclusão de «Deus na Constituição europeia». Na altura também comentei que essa inclusão era duvidosa; nessa matéria, as lições europeias são pouco recomendáveis (tirando os oásis da Holanda e de Antuérpia) e as ondas de violência e de perseguição são cíclicas e fatais, localizáveis a olho nu. Nem é preciso fazer (mais) um inventário.
[Actualização:O A Bordo aborda o assunto de um ponto de vista curioso ao manifestar as suas dúvidas sobre o conselho do rabino chefe: sobre «a dificuldade de determinar o que é prudente».]

novembro 24, 2003

MAL, RAZOAVELMENTE MAL. Eduardo Prado Coelho escreve hoje, no Público, sobre «a necessidade de intelectuais» («eles são um produto originalmente francês»): «O intelectual tem que saber que a sua função é hoje sobretudo a de um tradutor de códigos culturais e que essa função implica uma análise cuidadosa e uma utilização sagaz do sistema dos “media”. Precisamos ainda de intelectuais? Claaro, a resposta é sim. Mas como funcionam eles em tempo de blogues?» Mal, razoavelmente mal. Mas há aqui um pequeno perigo: supondo que a sua função é sobretudo a de «tradutor de códigos culturais» (coisa de que eu duvido), é bom não empobrecer ainda mais a palavra.

SEI QUE NÃO É IMPORTANTE, MAS... A pequena nota de Freitas do Amaral sobre a «necessidade» de uma cadeira de cultura geral no Secundário continua a suscitar comentários aqui e ali (comentários recentes no Grande Loja, por exemplo, ou no Ideias Soltas). A mim, a sugestão do professor parece-me tão exuberante como a de incluir o Big Brother nos manuais do 10º ano ou de escolher o livro de memórias literárias do dr. Soares como referência para estudos literários.

KIPPAH. O caso lembrado pelo Rua da Judiaria — o rabinato de Paris desaconselha o uso de kippah na rua devido à onda de anti-semitismo em França — lembra o de um funcionário da KLM que desaconselhava que se pedisse comida kosher a bordo dos voos para Oriente. Mas tenho dúvidas sobre a declaração do rabino-chefe de Paris (a notícia vem no Herald Tribune); por um lado, alerta para um perigo real de que há provas substanciais; por outro, fomenta o desejo de vitimização e aceita a intimidação. Não sei, não sei.

novembro 23, 2003

A NOITE, O QUE É?, 26. Muitas vezes, esperar que o frio passe, que a noite propriamente dita vá de um lado a outro, que os cigarros acabem, que o silêncio não se perceba mais. Esperam-se muitas coisas, nessa altura: a voz, os olhos, a cor dos olhos, aquilo que ficou, aquilo que será, uma nova vida. Escreve-se devagar, cada palavra tem um som, uma letra, um mapa. Lembro as plantas, a tarde, o anoitecer antes da noite verdadeira. Lembro de ficar acordado à espera.

O QUE FALTA À BLOGOSFERA. O Paulo Querido publicou no seu blog um bom texto com este título. Trata, no essencial, de questões que já preocuparam por diversas vezes os blogs mais atentos ao «fenómeno» (hoje já não é fenómeno nenhum) — e é muito pertinente. Aborda, também, o «efeito pernicioso» dos blogs «mais mediáticos» — o Abrupto, o Dicionário do Diabo ou o Aviz, por exemplo — nomeadamente o seu compreensível efeito totalitário (a expressão é minha, não do Paulo — mas acho adequada à circunstância). Ora, há aí um problema que não tem a ver com o peso de um blog, com a sua influência ou a sua presença permanente, mas com a forma como é feito. Só posso falar por mim, até porque o blog é só meu. Comecei o Aviz como toda a gente: para experimentar e para ver se era possível dizer alguma coisa. Acabou por ser um diário com poucas interrupções; nunca medi audiências e o assunto pouco me interessa; tem uma circulação que desconheço (uso o netcode.pt para fazer rastreio de «referências» e não para contar visitas); é «intimista» quando me apetece, confessional quando preciso, irritado quando acontece. Ainda no meu caso — o que é estritamente pessoal, portanto, oscilando nesta fronteira do semi-público — nem sequer o faço para escrever sobre coisas «que não cabem noutro lugar» ou para «fazer exercício». Faço-o enquanto houver blogosfera, e mais nada — e enquanto tiver tempo ou precisar de escrever sobre o que me apetecer, sem agenda, sem alguém a pedir-me satisfações. Esta questão da agenda reconheço que é importante, mas não me interessa para nada; continuo a dizer que escrevo sobre o que me apetece, quando posso (ou não posso evitar), sobretudo porque não tenho e nunca tive responsabilidades políticas, mas também não reinvindico nenhuma inimputabilidade política.
A blogosfera é uma comunidade disponível, muito aceitável culturalmente, e tenho aprendido bastante com ela. Se conhecemos pessoalmente os autores de blogs, sabemos que os seus defeitos e vastas virtudes continuam; dos outros, só conhecemos os textos e o mau carácter (que transparece sempre), o que é bastante. Como em todo o lado, essa disponibilidade afecta tanto os «blogs mais mediáticos» como os absolutamente anónimos graças a essa pequena mas graciosa circunstância de não haver controle sobre o que possam dizer uns dos outros, ao contrário da televisão ou dos jornais, por exemplo.
Não me agradaria nada ver os blogs (como estes, que leio) transformados em «órgãos de comunicação social» com o peso jornalístico que lhe é atribuído muitas vezes. Mas isso é com cada um. Confesso, aliás, que os blogs menos interessantes são os que estão permanentemente dependentes da agenda dos jornais — à esquerda e à direita. Não porque acabem a falar uns para os outros, coisa que é inevitável em tudo (e não me parece mal, pelo contrário; pelo menos fala-se para alguém), mas porque a mim me interessam menos. Quando escrevo que a mim me interessam menos, isso significa, também, que sou e sempre fui contra um «estatuto editorial» da blogosfera (já escrevi aqui sobre isso), contra a limitação dos temas, contra a limitação dos tons em que se escreve. A blogosfera agrada-me também por isso, por poder ser anárquica nessa matéria e ninguém poder impor ao Pacheco Pereira que não escreva sobre a luz, o equinócio ou a filatelia, ou ao Pedro Mexia que não escreva sobre bandas pop, actrizes bonitas ou fenomenologia, ou impor ao Náufrágios que só escreva sobre barcos encontrados no fundo do mar dos Açores, ou proibir o Jorge Marmelo de escrever sobre literatura brasileira. Ninguém pode obrigar o Joel Neto a comentar o Benfica, pedir ao Contra a Corrente que não seja de Évora, ou exigir ao João M. Fernandes que seja «politicamente certinho» e que não se diverta quando quer. É como pedir-me que não me divirta sinceramente com um dos blogs de que mais gosto (e que mais invejo pelo permanente sentido de humor), o dos Marretas, por exemplo, ou alguém irritar-se por o Tiago ser protestante e o Rua da Judiaria ser judeu. Se o Alberto Gonçalves, que geralmente escreve sobre política, quiser escrever sobre aqueles dois restaurantes fantásticos de Bragança e de Mogadouro, isso é mau? E se o Avatares de um Desejo, o A Aba de Heisenberg e o Klepsydra decidirem que durante uma semana só comentam futebol? Temos polícia à porta?
Daí que, embora não concorde com as posições políticas de muitos «blogs políticos», não estou para dar lições nem para ir, a correr, recebê-las. Aliás, uma das coisas boas da blogosfera é precisamente isso: o ar ridículo que toma logo quem aparece a dar lições, a vestir-se de sacerdote, a impor uma agenda ou — vamos lá... — a aborrecer-nos com a sua infinita presciência, quase sempre gritada com a impressão de que se ganhou uma grande batalha intelectual.
Ou seja: a blogosfera também me agrada porque ninguém pode impor silêncio seja a quem for, nem pode obrigar seja quem for a falar sobre aquilo que acha que devia ser matéria para pronunciamento.
Ora, apesar do «efeito pernicioso» dos «blogs mais mediáticos», reconheço que muitos textos que me comoveram, que chamaram a minha atenção por motivos sérios ou risíveis, vêm de blogs anónimos (ou, pelo menos, de pessoas que não conheço). São, como escrevi antes, relâmpagos que iluminam a paisagem. A paisagem, nós sabemos como é: tem os seus declives, os seus rios, as suas montanhas — mas os relâmpagos não são previsíveis como a paisagem. De vez em quando descubro um blog que tem aquela frase, ou que vê aquele pormenor. Como isto não é uma batalha letal, não digo que eles estão certos — digo só que me juntei a eles, que os juntei nas minhas leituras, que me comoveram de alguma maneira. O que me basta perfeitamente. Se quiser mais, vou à biblioteca.
O resto é como na vida em geral. Não gostam? A porta está aberta nos dois sentidos. Só está cá quem quer.

PATRULHA IDEOLÓGICA. O pior da patrulha ideológica não é discordar, detestar, estar contra, ter outros argumentos, ter aliados, cumprimentar os amigos (com «o excelente», «o imprescindível», etc.) antes de dizer uma frase, criar famílias de adjectivos em vez de geografias de afectos, ser facilmente visível, irritar ou ser irritante; não. O pior é estar sempre vigilante — sobre cada vírgula, cada frase, cada ideia. Não discute, não argumenta; não. Tem apenas a obsessão de impor a sua linguagem, a sua conversa, de limitar o espaço que não controla. E um prazer absoluto quando distorce, cita incorrectamente, descobre um fragmento maldito. A patrulha ideológica afirma a superioridade moral do debate — desde que seja com o seu dicionário. O que lhe escapa, morde, sobretudo para se distinguir. Esse sentido policial da discussão acaba por transpor-se para vida propriamente dita, chata, antipática, desgraçada.

RELÂMPAGO. Coisas que aparecem no meio do céu: «Mortalidade: Desde que me apaixonei, tenho medo de morrer.»

CULTURA GERAL, 2. Também por mail, o Francisco Serafim comenta a tentação da «cultura geral»: «Penso que o que a escola já faz é dar cultura geral, aliás, talvez seja esse o grande erro do nosso ensino. Todos os alunos saem da escola a saber que o Vasco da Gama encontrou o caminho marítimo para a Índia, mas são poucos os que sabem por que razão houve a vontade e a necessidade de encontrar um caminho por mar para a Índia.»

novembro 22, 2003

QUEIMA DAS FITAS. De entre os mails que recebi sobre o assunto (voltarei a ele), registo o do Tape-Error404: «Realmente, não entendi bem porque é uma boa notícia não haver queima das fitas em Coimbra. Pessoalmente estou-me nas tintas, mas não acho boa nem má notícia. Mas que é notícia, é. Lembrei-me se não estaria (eventualmente de forma muito remota) a pensar nos peregrinos de Fátima que passam por Coimbra nessa altura, vindos do Norte, e que activam o “pause” da meditação temporariamente.»

CULTURA GERAL. A questão da introdução de uma cadeira de Cultura Geral no Secundário foi proposta por Freitas do Amaral — numa coluna da Visão. Há algumas reacções a propósito do assunto e do que aqui se escreveu; o Nuno B. Almeida e Sousa do Fogotabrase, por exemplo, diz que «o professor Freitas do Amaral só pode estar a brincar ou então está senil de todo. Se eu tivesse tido aulas de cultura geral no secundário, provavelmente teria tido as mesmas notas medíocres que tive a Latim, a Português ou a Antropologia Cultural. Converso hoje com colegas do Secundário, que eram alunos de 19 e tomara eles saberem metade do que eu sei, tomara eles saberem utilizar o que aprenderam em Latim como eu uso, tomara alguns dos que apanhavam 20 a matemática, utilizá-la como eu a utilizo; eu que quase sempre passei “coxo” a matemática.»
O Pedro Peixoto também escreve sobre o assunto: «Acerca de Freitas do Amaral (F.A.) e da introdução de uma nova disciplina, intitulada Cultura Geral, no ensino secundário, penso que tal propósito é, actualmente, impraticável no sentido que F.A. lhe dá. No entanto, caso as nossas escolas fossem dotadas em cada uma das salas de aula com um computador ligado à Internet com Data-Show incluído e outro material audiovisual, esta ideia poderia ser posta em prática. Mais uma vez teria a instituição Escola que se substituir aos pais e à família, no sentido de dar a conhecer aos alunos conteúdos realmente pertininentes que envolvem o cidadão. Bastava debater com os alunos temas que estão na ordem do dia, facilmente apoiados em documentários que passam por exemplo nos canais Odisseia ou SIC Notícias para que os alunos pudessem contextualizar a realidade que os rodeia. Agora estar a debitar conceitos nas disciplinas de História, Filosofia ou Geografia para que os alunos os despejem nos exames não os motiva para a tal Cultura Geral.»

novembro 21, 2003

UMA BOA NOTÍCIA. Ouvi na rádio a ameaça, os argumentos e as lamentações: parece que, este ano, a «queima das fitas» pode não se realizar em Coimbra.

CULTURA GERAL. Eu não concordo com a ideia de Freitas do Amaral, defendida ontem na Visão sobre a inclusão (que suponho imaginária — só pode) de uma cadeira de cultura geral no ensino Secundário (a tese vem de Hirsch, por exemplo). Mas, como quase nunca concordo com Freitas do Amaral, distingo uma ideia sua que me parece premonitória: daqui a uns anos, pelo caminho que as coisas levam no Secundário, talvez passemos «da cauda da Europa dos 15 para o terço inferior da Europa dos 25».

A ideia da Cultura Geral, de qualquer modo, pode fascinar algumas pessoas — pelo seu carácter «democrático», suponho. O problema é que a cultura geral verdadeira não é uma especificidade mas uma generalidade que resulta do interesse pessoal; esse interesse vem da frequência das «disciplinas do Cânone». O apelo constante para ceder à mediocridade na escola, na televisão, nos jornais, na vida política, é que destruiu a cultura geral. Saber onde fica Vilnius, onde desagua o Tâmega, qual a nacionalidade de Ibsen ou quem foi Tucídides, é uma coisa que se aprende num trivial pursuit — mas que se procura saber mais profundamente se a escola, a televisão, os jornais e a vida política não desvalorizarem quem tiver interesse em saber isso (a não ser no «Quem Quer Ser Milionário», naturalmente...).

ISTAMBUL. Os atentados de Istambul não são contra a Europa pela única razão plausível nestas circunstâncias: a Europa, para efeitos políticos e culturais, já tinha posto Istambul fora do circuito. Mas, na sua perversidade e na sua devastação, são atentados contra o melhor da tradição islâmica, que tinha na velha Constantinopla um símbolo derradeiro. As sinagogas — onde há marcas portuguesas, as que foram deixadas por Grazia Nási, aliás Beatriz de Luna, por exemplo — destruídas são uma dessas imagens de convivência arrasada. Transportando o pânico do Médio Oriente para as fronteiras da Europa (para o séquito de Giscard d’Estaing, essa fronteira aparece nos Balcãs — porque está aí o primeiro dos conflitos que a Europa não pôde nem quis tratar), os atentados são, de facto, crimes contra a convivência e os limites de dois mundos.
Se as bombas contra «interesses britânicos» estão já a ser justificados abertamente («Vêem, vêem?...») pela participação da Inglaterra na guerra do Iraque («É bem feito...»), já os ataques às sinagogas mostram a face abjecta da guerra civilizacional (religiosa incluída) que nos aproxima da barbárie. Explico: as sinagogas sempre fizeram parte da paisagem de Istambul; do Islão do século VIII, onde os judeus foram bem tratados como nunca o foram na cristandade que atravessa os primeiros séculos europeus, até à Constantinopla que recebia os exilados de Sefarad, essa presença foi constante. A ideia de que uns pagam pelos outros — e de que as sinagogas pagam por Sharon — é ainda mais perversa mas acho que nem assim a Europa vai compreender que não pode praticar permanentemente a hipocrisia que manda fechar os olhos em nome de todos os seus confortos.
Há um desânimo que vem da desilusão pelo que fizemos ou pelo que não fizemos; há um outro desânimo, mais profundo, quando a história confirma o pessimismo que atravessa todas as fronteiras. A primeira vez que justificarmos o ressentimento será, provavelmente, a primeira perda da nossa dignidade.

RAPAZIADA. Eu não devia escrever sobre futebol mas acontece-me. A rapaziada foi a França ganhar um jogo de futebol aos franceses. Os franceses, habituados a vários tipos de direito divino, não gostaram de perder — e o treinador local fez uma pequena demonstração dos tiques habituais dos franceses (aquela pequenina arrogância da la France, depois de, em campo, ter provado que merecia perder por mais só por ter recomendado aos jogadores que lutassem pela ida a penaltis. Houve ainda aquele episódio caricato de o maire local ter ordenado um controle anti-doping particular e não-oficial. Adiante. O que nos devia interessar foi a dimensão dos festejos da rapaziada portuguesa, que parece ter-se portado mal e destruído parte do balneário. É uma tradição. Se perdemos, esmurramos os árbitros. Se ganhamos, partimos os balneários. Dá gosto.

TEATRO. Leio na imprensa de hoje que houve gente escandalizada por ter sido impedida de entrar no teatro. Conte-se a história em poucas linhas: António Fagundes esteve em Lisboa e no Porto com a sua peça Sete Minutos. À hora de a peça começar, as portas do teatro fecharam e os retardatários não puderam entrar, como acontece em qualquer país civilizado em que há respeito pelos actores e pela peça (que é sobre espectadores que chegam atrasados ao teatro, parece). Alguns Vip, como agora se chama à pessoas que são reconhecidas por aparecerem nas revistas de televisão, ficaram indignados; leio, inclusive, que alguns murmuraram coisas como «estes tipos, pá, vêm do Brasil e acham que são muito importantes» — o costume. O assunto não serve para nada, senão para abençoar Fagundes por pôr esta gente na ordem.

novembro 19, 2003

A NOITE, O QUE É?, 25. Os primeiros dias são tristes, as primeiras noites, há ainda qualquer coisa sem nome a rodear a vigília, livros amontoados, perdidos, poemas soltos, nenhum respira verdadeiramente. Penduradas sobre a varanda, as trepadeiras, o jasmim, o café, o pão, os passos às primeiras horas do dia, as primeiras coisas vindas da janela aberta, sempre aberta. Tudo o resto é aquele silêncio onde os olhos ficam mais perdidos, aquilo de que raramente sabemos dizer o nome.

A NOITE, O QUE É?, 24. Quase nada. Sons vindos das matas, trabalhos leves, flores — plantas — que se compram à beira da estrada para plantar depois. Elas crescerão de Verão a Verão, hão-de conhecer o sentido da palavra solstício, o sentido da palavra equinócio, o sentido da palavra que espera a altura de ser dita. Há uma grande ventania neste lado do mundo, neste lado do mar. Chove, arrumo jornais e folhas de papel, há uma certa brutalidade nisto tudo, mas a verdade é que tudo o que tenho pertence agora a esse dicionário: uma mesa, o cheiro da erva, o ruído que vem de dentro de casa. Se não durmo, se a noite se estende, é porque as coisas me acordam de cada vez que isto acontece.

ANTES DA NOITE. Trago agarradas pelos dedos duas canções antigas dos Titãs: «Insensível» e «Toda a Cor». Pop chiclete, rock chiclete.

DOIS. Dois blogs a não deixar de visitar: Notícias do Cais e Seta Despedida (o título do livro não parece despropositado).

DUAS PALAVRAS. O Duas Linhas pede, no seu blog, que eu dê a minha opinião sobre o interessante artigo de Tony Judt na The New York Review of Books. Sinceramente, só há duas novidades no texto em relação ao que Judt tinha escrito antes, e isso deve-se à velocidade que as coisas tomaram: 1) O sonho sionista foi frustrado nas suas ambições e nos seus objectivos a ponto de tornar-se um anacronismo; 2) assistimos ao enterro da solução «dois estados-dois povos». A ideia do «anacronismo» é, por outro lado, muito duvidosa: não pode pedir-se a Israel que seja um «estado judaico» à medida do contexto de 1948 e, simultaneamente, acusá-lo de ser «predominantemente teocrático» em vez de «democrático» por manter algumas das linhas do «sonho sionista». Até ao ressurgimento da extrema-direita israelita (com o sucesso do Shaas e do NRP — este, o mais perigoso, sem dúvida) a orientação geral ia no sentido da definição de Israel como estado democrático; de certa forma, o assassínio de Rabin e a emigração maciça de judeus vindos do Leste da Europa, onde tinham sido perseguidos e chacinados nos regimes comunistas e anti-semitas, correspondeu a esse abismo letal que reconduziu à discussão sobre «o Israel bíblico». Só quem nunca assistiu a discussões sobre o assunto, entre colonos e imigrantes dos partidos haredim, é que ignora o problema. A verdade é que o «sonho sionista» actual correspondeu a um período histórico pós-1939-1945, mais do que ao sonho de Herzl — o sionismo de Ben-Gurion não tinha nada a ver com o sionismo do «grande Israel Bíblico». Não querendo partir do princípio de que existe uma «virtude democrática garantida», não é possível esconder aquilo que Judt esquece só porque vive nos EUA: Israel é a única sociedade democrática (com imprensa livre, com liberdade de expressão e onde os governos podem cair por vontade popular expressa) em todo o Médio Oriente e essa é também a sua fraqueza no contexto do actual «perdão aos tiranos» e do fascínio pelo terrorismo. A segunda ideia de Judt — a de que a solução «dois estados-dois povos» perdeu a oportunidade — parece-me completamente estapafúrdia. Creio, mesmo, que não há outra solução senão essa, daí ser necessário defender a criação de um estado palestiniano democrático, com instituições políticas estáveis e uma economia que dependa dessa estabilidade.

BOLA. O Manuel Falcão não delira com a bola e, num texto sobre o assunto, pede desculpa ao Aviz por estar irritado com a inauguração do Estádio do Dragão na RTP. Ó Manuel, mas até eu — que gosto de bola — me irritaria com aquele festival. Eu gosto do Estádio do Dragão (preferia outro nome: Antas, por exemplo) — mas não me peçam muito mais. Portugal está a sofrer com este excesso de bola que leva a televisão pública a competir com a TVI na transmissão de inaugurações de estádios e os políticos a delirar com convites e desconvites, ofensas e desplantes, indignidades e patifarias, estar ou não estar presente. Tanto me faz que estivessem lá os representantes da Nação como se tivessem pirado para a Bolívia no cumprimento do seu dever: aquilo era só bola e era assim que devia continuar a ser. Hei-de ir lá um dia, porque é o estádio do meu clube, porque gosto que o meu clube ganhe e provoque invejas, mas não há maneira de atinar com estas contradanças da política & da bola. De resto, também acho que o Euro 2004 não era lá muito preciso (bastava irmos jogar lá fora).
Também o M. Marujo, do Cibertúlia, se interroga sobre o assunto: a resposta está dada, tal como o fiz há duas semanas — ah, ditosa Pátria que em tantos estádios fenece.

novembro 18, 2003

REGRESSAR PARA QUÊ? Vantagens de alguns dias sem saber notícias: não vi a inauguração do Estádio do Dragão, cheguei atrasado à paranóia iraquiana, perdi uma entrevista de Ferro Rodrigues, continuei sem saber o que diz o Expresso ao sábado, não vi as manchetes dos jornais desportivos (nem o contexto daquele ar de queixinhas do Pauleta, do Figo e do Rui Costa), perdi mais 1% de défice. Só vantagens.

novembro 11, 2003

NOITE. A Ana Gomes Ferreira enviou-me um poema, publicado na antologia Um Poeta Faz-se ao 10 anos (Assírio & Alvim, 1973), onde um miúdo dessa idade, Nuno, escreve um poema sobre a noite. Há uma passagem assim:

«Existe ainda outra forma/ de classificar a noite,/ diz-se que é a plataforma/ da vinda áspera do coiote.»

novembro 10, 2003

SHAKESPEARE. «Is it thy will, thy image sould keep open/ My heavy eyelids to the weary night?»

QUESTÃO DE PRINCÍPIOS. Um homem, de telemóvel na mão, fala sobre uma prenda «que têm de oferecer» a um miúdo. Vai andando pelo corredor do centro comercial. Alguém lhe sugere qualquer coisa tão obscena que ele, finalmente, pára diante da livraria. E diz: «Harry Potter? Nem pensar. Isso não ofereço porque é contra os meus princípios.» Muito vai sofrer esse miúdo.

POR ACASO, FALANDO DISSO. Anteontem à noite, a RTP-1 levantou, com aquele arzinho de «escândalo que se aproxima», a hipótese de nem o primeiro-ministro nem o presidente da República estarem presentes na inauguração do Estádio do Dragão. Já se sabia há algum tempo que ia ser assim, uma vez que a cimeira da Bolívia iria impedir essa «presença institucional». Pessoalmente, não me incomoda nada essa ausência. Até acho despropositado estar a valorizar-se a ida à bola do presidente do Parlamento, como segunda figura do Estado. Depois de ver aquela coisa alarve na inauguração do Estádio da Luz, com a República representada ao mais alto nível —o que me lembra as palhaçadas no Estádio Nacional de cada vez que há Taça de Portugal —, até agradeço que seja só mesmo futebol. Tenho saudades dos políticos que achavam que dois cantos seguidos davam direito a penalty (já agora, havia um que pensava isso, mas não gostava de o ver de volta).

novembro 09, 2003

A NOITE, O QUE É?, 23. A meio da noite pergunto se posso dizer esse nome. Quando adormecer será perto dele, segredo dos segredos, relâmpago dos relâmpagos. A casa da minha vida, a vida da minha vida. Penso nisso também, é por ela que desperto a meio da noite e já não faço perguntas. Rodeado de calendários, sonho com o tempo das florestas, os caminhos que levam aos jardins, as tardes de calor caindo sobre a relva, coisas que me dizem esse nome.

novembro 08, 2003

ELE NÃO TOMOU OS MEDICAMENTOS. Foi através do Contra-a-Corrente e do Picuinhas que li — no site da TSF — as declarações de um dirigente da Quercus, Hugo Tente, sobre as desvantagens do TGV: «As pessoas ficam com a noção de que é muito mais fácil, por exemplo, ir de Lisboa ao Porto. Em vez de fazerem uma viagem para outro local qualquer, se calhar muito mais curta, passam a fazer aquela», disse o ecologista. «No somatório total de um ano estas novas vontades das pessoas se deslocarem acabam por se reflectir em muito mais viagens», adiantou Hugo Tente. A Quercus defende ainda que para evitar esse possível aumento da poluição, sejam adoptadas medidas para dissuadir o uso do avião e também do automóvel.»
Eu, sinceramente, o TGV acho uma trapalhada — mas fiquei com muita simpatia por ele depois desta palermice. E dou comigo a repetir: «Em vez de fazerem uma viagem para outro local qualquer, se calhar muito mais curta, passam a fazer aquela...» Ó amigo Tente, veja lá, não se esqueça de tomar os comprimidos. Essa ideia de pensar que as pessoas que querem ir a Arruda dos Vinhos vão ao Porto, ou as que só querem ir comer besugos a Espinho vão a Lisboa, parece-me excelente. Eu até era capaz de fazer essa viagem só para não o ouvir.

MARRETADAS. O Animal reedita a sua marretada sobre greves estudantis.

POSTA RESTANTE SOBRE ELOGIOS. Escreve — num mail — o Pedro Peixoto, de O Intimista: «Deixe-me discordar de si, quando, em relação ao recente artigo de Álvaro Cunhal no Avante!, afirma que “o Cunhal de ontem é o Cunhal de hoje, nunca deixou de ser”. De facto, penso que, se analisarmos com seriedade e sem qualquer tipo de constrangimentos as palavras do fundador do PCP, se evidencia com extrema clareza um abrandamento na postura e na forma como as ideias marxistas-leninistas de Cunhal são passadas. Cunhal é extremamente clarificador quando, propositadamente, deixa de referir-se ao marxismo-leninismo e quando faz um “piscar de olho” à força dos sindicatos. Cunhal dá a ideia de que está desiludido com o comunismo, por este não ter seguido o rumo com que Cunhal sonhou. Este é um Cunhal amordaçado em relação ao seu passado e angustiado com o presente. […]»

BAÍA. O O Cafajeste pergunta se não estou de acordo com mais um elogio a Vítor Baía. Com quase todos, com quase todos. Se Baía tivesse cometido metade das fífias de Ricardo, o que não se diria?

DISCUTIR COM SERIEDADE. O Nuno Mendes comenta o texto do Aviz sobre «a questão estudantil», terminando desta forma: «Por último gostava de concluir dizendo que já é tempo de discutir os assuntos seriamente sem demagogias e fogos de artifício de ambas as partes. Enquanto uns fazem figuras tristes e outros fecham os olhos para não ver, continuamos com universidades mal equipadas, com bolsas miseráveis e que nunca se sabe quando chegam, péssimas condições para os muito estudantes deslocados, laboratórios sem garantias de financiamento e com aparelhos burocráticos dignos de um romance de Kafka. É já mais que tempo de amanharmos o assunto e passarmos ao que interessa...» Ora, sobre isso eu não duvido. Já quanto ao resto, mantenho tudo o que disse.

DESESPERO. Não. Posso desesperar de vez em quando, mas não é com a democracia. E, quanto a pôr na ordem seja quem for, aviso desde já que não é comigo; estou-me nas tintas, desde que não queiram que eu pense exactamente pelas palavras deles — só para ficarmos todos contentinhos com «jornalistas benevolentes» e «estudantes insolentes». Tiro na água, caro Daniel.

O ELOGIO. Álvaro Cunhal escreveu um artigo no Avante!. Esta novidade apanhou de surpresa a blogosfera inteira. Com esta idade, o velho comunista é elogiado à esquerda e à direita como um homem de ideais e de velhos combates. É um personagem, sim — mas convém haver bom-senso. Para a direita, Cunhal é um personagem inofensivo, longe das ruas e da conspiração, retido em casa pela doença e pela idade, testemunho prestes a sucumbir aos ventos da história; um artigo seu pouca importância tem, mas convém lembrar a «coerência», o «espírito combativo», a «discordância e, ao mesmo tempo, o respeito»; a sua idade e o facto de não ter mudado uma linha na gramática são uma lição que convém erguer contra a esquerda que já não sabe onde anda. Para a esquerda, Cunhal é também um nome a brandir, mas com reservas e cuidados extremos: a sua ortodoxia é uma aragem romântica, encostada aos muros da história, o estandarte que ela já não transporta mas que a sua cabeleira branca relembra; em vez dos seus textos de O Partido com Paredes de Vidro, o afecto de Cinco Dias, Cinco Noites e a cinefilia que se apodera de Até Amanhã Camaradas; em vez da discordância clara, a companhia sem discussão, o exemplo de combate.
A verdade é que o Cunhal de ontem é o Cunhal de hoje, nunca deixou de ser. Pode respeitar-se a sua idade, mas não é preciso venerá-la como um argumento. Escolheu a sua vida, não em nosso nome. O seu artigo podia ter sido escrito aos cinquenta ou aos sessenta anos, a lógica profunda está lá (há vinte, trinta, quarenta anos), a mesma argumentação, a mesma geometria. Essa coerência (e essa inteligência estratégica) pode admirar-se mas não deixa de ser a coerência de Álvaro Cunhal, apenas a sua. Não temos de admirá-la só por ser coerente.
Quando, um dia, na televisão, o entrevistador lhe lembra as críticas de António José Saraiva (o ex-comunista Saraiva, sim — «traidor», portanto, desertor), Cunhal encolhe os ombros e, com aquela crueldade que se tinha habituado a dividir o mundo entre heróis, combatentes, traidores e outras classes, diz: «Esse está é velho.» Estava, sim; estava velho. Mas o «velho Saraiva», o Saraiva da literatura, da bóina nos corredores da faculdade, o Saraiva que decidiu pensar tudo como se não houvesse mais mandarins, esse Saraiva não se incomodava por estar velho. Nunca gostou daquele livro Os Mortos Permanecem Jovens (lembram-se?). Por isso, não podemos dizer, sobre Cunhal, «esse está é velho», para lhe desvalorizar as ideias e aceitar-lhe a coerência ou uma eventual «proposta renovadora» depois de muitos anos a desconfiar de «propostas renovadoras». É apenas Álvaro Cunhal. Cunhal diz o mesmo. Não venham é desenhar um Cunhal que ele não gostava de ser: um ícone para pôr na t-shirt.

A NOITE, O QUE É?, 22. Mesmo sem olhar à volta, vejo quase sempre as mesmas coisas: as sombras, a relva, a varanda, as árvores que amo, o sabor da cerveja, do café, os aromas, os primeiros sons, a luz que entrava pela janela, um livro, a cozinha. Os olhos. A primeira voz. A recordação é sempre em ponto mais pequeno, como um esconderijo, uma revelação a salvo, como um segredo, um eclipse, a floresta de pinheiros, os pés nus no chão. E então conto os dias, conto as noites, o que inventamos, o que nos espera. A casa da minha vida fica aí, nesse retrato. A voz da minha vida. Tudo se escreve numa língua desconhecida, sem gramática, sem frio.

novembro 07, 2003

A LUTA DOS ESTUDANTES. Eu, que não tenho má relação com Coimbra, acho — ao contrário do Nuno, no Klepsydra — que fechar a cadeado os portões da universidade não é assunto interno da escola, por muito que se queira falar da «autonomia» da universidade. Não vejo, nesta soma de acontecimentos, apitos, invasões das salas do senado, frases deslocadas dos telejornais, declarações & marchas, a «bondade natural de uma luta estudantil» — mas apenas a repetição de lugares-comuns sobre «o sistema», a «lógica do sistema» e a profissionalização do «protesto estudantil», com o seu aparelho e a sua gramática. Palavras como «academia», por exemplo, são inteiramente deslocadas no tempo e na questão das propinas. Fazem parte de uma concepção dos «estudantes» como «classe» à parte — nem sequer uma «classe» no sentido puramente «profissional», mas apenas no sentido «ideológico» ou «geracional».
A benevolência com que as marchas e as encenações são noticiadas pela imprensa (com ironias às «propinas do Sr. Reitor» — ah, oiçam os noticiários da madrugada, na rádio, são uma revelação...) fazem passar a ideia da «naturalidade com que o protesto deve ser visto», acentuando esse lado geracional: o tempo da indignação, uma espécie de direito revolucionário rotineiro e tão previsível como desculpável, sejam quais forem os excessos, dislates e erros do discurso. Fechar a cadeado os portões de uma escola é «uma forma de protesto» tão banalizada como criticável: o direito revolucionário não pode, em democracia, impedir os estudantes de entrar no edifício da universidade. E o poder da encenação não pode servir nem para travar o debate (sobre as propinas, por exemplo) nem para legitimar o poder dos encenadores, tratados nas palminhas pelos média.

novembro 06, 2003

VIAGENS DOS DEPUTADOS Leio tardiamente o artigo de José Pacheco Pereira no Público sobre o assunto. Evidentemente que tem razão. As viagens dos deputados deviam ter sido investigadas com rapidez e a avaliação devia ter sido tornada pública; por isso me espanta que, em pleno processo de «arrefecimento» do processo, já nesta legislatura, tenha havido tantas críticas em relação ao regulamento tentado por Mota Amaral. Um regulamento deste tipo — simples — teria evitado a célebre «lei da transparência» dos tempos de Fernando Nogueira, que contribuiu para lançar ainda mais suspeitas sobre os políticos. O arquivamento do processo, por seu lado, completou o tom nefasto da lei: misturando trigo e joio (para recuperar a expressão de Pacheco Pereira), acaba por distinguir-se a suspeita sobre ambos. Lamentável.

novembro 04, 2003

PANTEÃO DA HISTÓRIA. A propósito do texto de ontem sobre o lançamento do Harry Potter no Panteão Nacional, o Luís Carmelo diz, no Miniscente que «o Aviz acredita na história e na sua sacralização. Não é a história, depois de Vico e do pós-iluminismo, uma consequência normal da emergência moderna que pretendeu racionalizar, catalogar e ordenar o passado, do mesmo modo que procedeu à racionalização do futuro, através da regulação utópica e ideológica (de tão transtornada memória, para nós, hoje)?» Ora, meu caro Luís: eu quero é que as crianças e os leitores do Harry Potter possam ir ao Panteão — e ler o Harry Potter (que o Sátiro também comenta). Se isto é sacralização, a Hermione é uma bruxa má que anda em Hogwarts. E acredito que a história é sobretudo ordem & desordem.

CASA PIA E ADOPÇÃO. No domingo passado, António Barreto tratou o assunto na sua coluna do Público: o processo da Casa Pia devia levar-nos a discutir, finalmente, e com seriedade, o futuro das crianças e da adopção. Isso seria uma grande novidade. Por isso não estranhei o mail de Cibele Pinto Cardoso. Escreve ela: «Pertenço a uma minoria, sou uma mãe-candidata-a-mãe-adoptante recente e muitos de nós gostaríamos que o tema da adopção voltasse a ser notícia... A lei é novinha em folha, porém a aplicabilidade da lei tem-nos parecido difusa... Não lhe parece pertinente, tendo em conta a nacional histeria (e justa) em redor da Casa Pia, falar sobre a adopção? É o que me custa nesta nossa comunicação social: aplaudem-se decretos de lei e despachos governamentais na tv e outros que tais, mas falta saber como correm as coisas depois, a parte que verdadeiramente interessa. “Frequento” os fóruns relativos à adopção e posso garantir-lhe que estes pais e estas mães são uns heróis, há gente à espera há anos, de coração e casa abertos. E o que acontece? A irresponsabilidade  e incompetência do Estado e consequente inoperância das Seguranças Sociais promovem processos lentos e desumanos.»

CABEÇA DE CARTAZ. O cavalheiro que é publicamente tratado como Frei Betto é um personagem irritante e popular. Propagandista de Fidel e do seu regime, asessor de Lula e com pouca intimidade com assuntos religiosos, Frei Betto acaba de declarar que José Rainha, um militante do MST (Movimento dos Sem Terra), é preso político no Brasil de hoje. José Rainha é um actor complicado no MST, que teve de o desautorizar várias vezes (uma delas na sequência de uma detenção por posse de armas, acusação de homicídio e de assalto à mão armada), na sequência da sua declaração de que queria criar, em Paranapanema, S.P., uma «nova república de Canudos». Não se sabe se o que assustou o líder do MST, João Pedro Stédile, foi a menção de Canudos e do seu líder José Conselheiro (com o reaccionarismo, messianismo e clericalismo atrás), ou se foram mesmo as acções de José Rainha e a montagem do acampamento de Paranapanema. Frei Betto foi visitar José Rainha à prisão (a acusação é de desacato, destruição de bens públicos, assalto, etc.) e declarou-o «preso político». Leio na Veja que, afinal, Frei Betto também foi levar «um abraço de Lula» a José Rainha.

FUTEBOL E GLÓRIA NACIONAL. O António Pedro Vasconcelos, numa entrevista de domingo — à Notícias Magazine diz que uma vitória do Benfica lhe faria bem à alma, o que é perfeitamente compreensível (quando o Benfica ganha, diz APV, o dia corre-lhe melhor). Diz também que uma «vitória do Benfica» faria bem a Portugal e aos emigrantes. Evidentemente que é compreensível. Os seis milhões e meio de portugueses (sete milhões, aliás, segundo a última medição do prof. Seara, que ouvi na SIC) rejubilariam e o País andaria melhor. Também não tenho dúvidas. Simplesmente, estou-me nas tintas para a saúde mental de sete milhões de portugueses. Bola é bola, futebol é futebol, selva é selva, política é política. Há cerca de duas semanas, durante um jantar que reuniu «empresários de futebol» (uma categoria distinta) e «empresários da comunicação» (uma categoria em descrédito) disse-se mais ou menos isto: «Ou o Benfica ganha um campeonato ou o negócio começa a dar prejuízo.» Eu acho isto perfeitamente compreensível; daí que os títulos cada vez mais indecorosos de A Bola e às vezes do Record não me surpreendam. Seis milhões e meio («stete», murmura o prof. Seara) de potenciais compradores de jornais e de ouvintes e telespectadores são um negócio nada negligenciável. Ainda há poucos dias um cavalheiro sensato (e sportinguista), com responsabilidades públicas, me confessava: «Se eu mandasse, o Benfica ganhava o campeonato. Estamos a precisar.» No entanto, para mim, bola é bola. Gosto de futebol mas acho que estamos a atingir o limite da paranóia — da inauguração do estádio da Luz aos títulos de A Bola ou do Record, passando pelas eleições do Benfica (que mobilizaram 12 000 pessoas, que foram apresentadas como «uma vitória da democracia», que mereceram sondagens da televisão «à boca das urnas» e que foram transmitidas para todo o mundo), os sinais são preocupantes. Esta «necessidade de uma vitória do Benfica» a todo o custo constitui um retrato mauzinho do País inteiro. É-me indiferente que o Benfica ganhe o campeonato se marcar mais golos e jogar melhor (no sentido em que Karl Krauss dizia que determinado personagem, que me escuso a citar, lhe era indiferente: não lhe fazia pensar em nada); prefiro que, em idênticas condições, seja o meu clube a ganhar, evidentemente. Não tenho nada a ver com a «condição moral & anímica» do benfiquismo, mas — também aí — acho que há gente que vai fazer tudo para jogar com dados viciados. Que rico país.

TELEJORNAIS E ROMANCES. O Nelson de Matos sonha com umdia em que os telejornais abram com a notícia da publicação de um romance de autor português. Eu acho que há coisas mais importantes, mas compreendo o desejo do Nelson. O problema é que os telejornais são muitas vezes «alinhados» (estou a falar do alinhamento editorial) por gente com sensibilidade de um elefante e convenhamos que os romances portugueses não são lá muito apelativos. Um dia destes, no entanto, fiquei espantado com o rodapé de um telejornal, onde se anunciavam os prémios Fémina e Medicis — para língua francesa. O texto do rodapé indicava títulos, autores, etc. Uma boa notícia? Não. Uma péssima notícia; esses textos são geralmente de uma indigência ideológica devastadora e de uma gramática a rondar o absurdo. Mas um telejornal (já não sei em que canal era) que anuncia os quatro livros franceses premiados e ignora edições de livros ao pé da porta, dá que pensar. Nada de «nacionalismos» — um «bom romance» seja em que língua for (inclusive a nossa) é sempre superior a um «romance português», evidentemente. Simplesmente, ao dar a informação pormenorizada sobre os Fémina e Médicis, a televisão dizia: «Estão a ver como nos interessamos pela informação "literária"?, estão a ver?» A gente já os conhece.

novembro 03, 2003

GEORGE STEINER. «O nosso sentimento actual de desorientação, de recaída na violência, de perda na insensibilidade moral; a nossa viva impressão de uma quebra profunda no campo dos valores da arte e no da decadência dos códigos pessoais e sociais; os nossos receios de uma nova “idade das trevas” em que a própria civilização, tal como a conhecemos, possa desaparecer ou se restrinja a pequenas ilhas de preservação arcaica — esses receios tão palpáveis e generalizados que se transformaram num cliché do estado de espírito da época — tiram de uma comparação a sua força e a sua evidência aparente. […] A nossa experiência do presente, os juízos, tantas vezes negativos, que fazemos acerca do nosso lugar na história, vivem continuamente contra o fundo daquilo a que eu gostaria de chamar o “mito do século XIX” ou o “jardim imaginário da cultura liberal”. […] A minha tese é que certas origens da inumanidade, da crise que nos obriga hoje a uma redefinição da cultura, devem ser procuradas na longa paz do século XIX e no nó mais denso do tecido complexo da civilização. […] A arte, as investigações intelectuais, o desenvolvimento das ciências, múltiplos sectores de actividade universitária, floresceram numa estreita proximidade espacial e temporal relativamente aos campos de extermínio. Ao contrário do que acontecia nas fantasias das fábulas apocalípticas do século XIX, a barbárie irrompeu do coração da Europa.»
In Bluebeard's Castle

BLOGUÍTICA. O Paulo Gorjão resolveu — e bem, dadas as circunstâncias: está mais perto de casa — juntar os seus bloguíticas («nacional» e «internacional») num só: o Bloguítica. Espero que não descure a área do «internacional».

novembro 02, 2003

CAMÕES. Eu sei, eu sei. Quem é que se lembra de falar de Camões? Mas — mesmo tendo em conta que o autor diz que o pai de Camões morreu no mar, na Índia — convinha ler, de vez em quando, as páginas de Harold Bloom sobre Os Lusíadas e Camões — em Génio (a edição brasileira é da Objetiva). Para Bloom, trata-se do épico «menos politicamente correcto» de que há memória.

NOITE, O QUE É?, 21. Muitas vezes não durmo para poder continuar a ver isto: tudo o que amei, o que vem de longe, do outro lado do mar. Tudo interrompe estas imagens; tudo desperta palavras de outra gramática, de outra língua, secretas, jardins onde as duas árvores maiores nunca estão abandonadas, tudo o que vai acontecendo à sua sombra. Estranhas coisas acontecem desde que me levanto, nos dias seguintes — a beleza é uma memória que não sai do meio dos olhos, que não se cansa, não se esgota. É por isso que muitas vezes não durmo, para continuar a ver, a não ser que nos encontremos mais tarde, ou apenas nos nossos sonhos.

PANTEÃO. Ainda não tinha mencionado o Letra Blog nas minhas leituras, mas foi por distracção, porque se trata de um blog que vale a pena acompanhar. Ora, o L.B. protesta contra o meu «encolher de ombros» em relação à «operação Harry Potter» no Panteão Nacional. E escreve:
«Não Aviz. Não, não e não. O Panteão não se pode prestar a pantominas, por muita graça que achemos ao Potter e seguidores. De uma vez por todas, Portugal precisa de uma geração que não seja rasca, e ser rasca é achar que tudo e todos servem para a graçola fácil. E aqueles que lá estão, no silêncio, não precisam destes barulhos para serem lembrados. Precisam de outros, concordo, mas destes, não. Nunca mais. É Portugal que ali está, teoricamente. E Portugal, teoricamente, merece uma consideração que ultrapassa largamente o lançamento de um livro do Harry Potter, ou de qualquer outro livro, ou disco, ou filme, ou carro, ou perfume, ou relógio ou... imagine o resto, se não se importa.
No limite, Francisco, houve profanação: o Panteão é assim a modos que uma espécie de cemitério. Imagine o meu amigo as capas dos tablóides, se o caso se tem dado a coberto da noite no cemitério de Almoinhas-de-Baixo. Seriam os meus antepassados, ou os seus, ou os de um qualquer outro Almoinhence. Mas não. A coisa aconteceu no Panteão (com o beneplácito do IPAAR — Arq.° Rodeia, não esperava isto de si), o cemitério onde repousa, ou devia repousar, a nossa herança colectiva, se é que isso ainda existe. Há limites que não devem ser ultrapassados. Podem, mas não devem. Sob pena de cairmos na banalidade. E não há nada pior para a auto-estima, que a banalidade do dia-a-dia. Portugal é, neste momento um país sem auto-estima. Não precisava de mais esta. Que não se respeitem os vivos, vá lá... mas os mortos, senhores, quem fala por eles? A dessacralização dos lugares é meio caminho para a desestruturação da sociedade. O
Genius Locci foi violado. Não, Francisco. Mil vezes não. Desta vez, discordamos. A propósito: também nunca entrei no Panteão. E mesmo assim estou incomodado, como vê.»

Ora, eu não sei quais as razões que levaram o J. B. Rodeia, do IPAAR, a autorizar a «operação Harry Potter». Mas gostaria de ir por partes. 1) Não tenho preconceito nenhum contra as aventuras de Harry Potter e, no entanto, li aquelas frases de Harold Bloom sobre o livro. Fui dos primeiros a comprá-lo, no dia seguinte ao lançamento — num supermercado — para oferecer e enviar pelo correio. Não li ainda nenhum dos volumes, mas vou ler. De uma vez li quatro livros do Paulo Coelho para escrever um artigo, «Li Paulo Coelho e sobrevivi», mas suspeito que com o Potter me vou divertir (o Coelho é charlatanice pura — tenho aqui uma vasta lista de adjectivos sobre ele... —, tirando uma canção que escreveu para a Elis Regina, acho eu). Até agora, Harry Potter só vi no cinema. 2) Sou sensível (como escrevi) aos argumentos sobre o espírito do lugar, mas não pude deixar de rir com a solenidade do protesto de José Lello. Ele também se deve ter rido bastante. 3) O espaço nobre do Panteão não foi usado para a «operação Harry Potter» — não imagino que pudesse ser de outra maneira. Não houve gente a correr ou a jogar à cabra-cega nos corredores. Enterneceram-me aquelas pessoas que foram lá comprar o livro para o neto, para o irmão ou para si próprios (sobretudo, está bom de ver, os miúdos que vão seguir as aventuras de Harry, da Hermione e do Ron — neste livro acrescentados do gorducho primo Dudley — no colégio de Hogwarts, para escapar à fúria de Voldemort) e tive pena de não ter ido lá comprar o meu exemplar, com a rapaziada atrás. Era um livro, não era de Paulo Coelho, e não se tratava de um detergente. 4) Os monumentos nacionais deviam ter uma área para acontecimentos desta natureza. 5) A lógica da utilização da área cedida do Panteão servia às mil maravilhas para o Harry Potter, embora eu escolhesse outro. 6) Também sou sensível ao argumento, utilizado por L.B., sobre a «banalização dos lugares», mas a última vez que se falou do Panteão foi a propósito de D. Amália. Já lá vai um tempo. E, num país onde o lugar mais sagrado para três televisões e trinta e tal jornais é um estádio de futebol rodeado de lençóis de lama, não sei o que é pior — se pôr o Panteão nas mãos dos miúdos, se suportar em silêncio esta gritaria toda em redor dos panteões da bola. 7) Aqueles miúdos já sabem que há um Panteão Nacional, o que é uma vantagem adicional — depois de ler umas páginas dos manuais e livros de fichas de História de um dos meus filhos, volto a não me irritar com a utilização daquele espaço. A dessacralização da nossa História já começou — na escola.
E é assim, meu caro L.B.. Acho que, desta vez, não concordamos.

EXACTAMENTE. Fui ao Via Rápida instruir-me e acabei por descobrir coisas espantosas. O rock, por exemplo, apanha-me sempre desprevenido. Escreve o bom Álvaro Costa: «Ainda Atlanta e nomes que de facto não surgem na Europa com facilidade. É o caso de um nome descoberto na Cave FM à Avenida Berlim, Bob Schneider e de Ben Lee — este com os Phantom Planet , banda de actores e aristocracia hollywoodesca. Na primeira liga de clubes está naturalmente o Roxy, onde pude ver os incomparáveis Arc Angels de Charlie Sexton em 1993. O menu, grelhado em mustique, inclua Liz Phair, os heróis locais Drivin and Crying e ainda os Placebo, em tour de clubes pela America do Norte...» Exactamente. Perfeitamente. Dos Placebo ainda ouvi falar. De resto, senti-me um extraterrestre. Da próxima vez que estiver com o Álvaro Costa, além de falarmos de futebol, vou pedir bibliografia.

novembro 01, 2003

TODOS SOMOS CULPADOS. De facto, isto não é rigorosamente verdade. De facto, não é minimamente verdade. Mas essa expressão, «somos todos culpados» (retiro este refrão ao Zé Diogo Quintela, que comentava a «comunicação ao país» de Catalina Pestana), está a ser mais utilizada do que seria normal. Há coisas de que «não somos todos culpados», e uma delas é o escândalo da Casa Pia. Os «culpados» chamam-se responsáveis políticos pela Casa Pia. Foram muitos ao longo dos anos; muitos deles souberam o que se passava; calaram-se; abafaram rumores e processos disciplinares; afastaram os protestos e os mensageiros dos protestos; encolheram os ombros ou minimizaram a história; preferiram a «estabilidade da instituição» ao esclarecimento, à investigação e à punição. Não vejo melhor definição do que foi o «bloco central». A Casa Pia é uma antecâmara da covardia e da abjecção; secretários de Estado, directores-gerais, inspectores, directores, todos os que souberam ou suspeitaram, e não fizeram nada — esses sim, são culpados. Como são culpados os que — sabe-se agora — investigaram o processo dos «ballets blue», na década de setenta, e esqueceram o caso. E os magistrados e juízes que mexeram no processo e «não se lembram de nada» (como aquela juíza de Cascais, de memória flutuante). E, evidentemente, aqueles que devem ser julgados por terem de facto praticado aqueles crimes. Aqui, a acusação é dupla: do ponto de vista moral, que deve chamar-se à discussão (o Estado tomou conhecimento de um crime ou de indícios desse crime e não tratou de tornar imprescindível a investigação sobre a Casa Pia); e do ponto de vista legal, que é prioritário na matéria.

Corre hoje por aí fora a ideia — até pela origem de classe, interesses profissionais, formação académica, etc., dos autores dos comentários — de que o que está em causa é sobretudo a «natureza da prisão preventiva», as ameaças da «república dos juízes» e o carácter do MP. Pode estar, sim, e é bom que se trate do assunto. Mas não deixa de ser interessante ver como os interesses corporativos se sobrepuseram, ao longo destes vinte ou trinta anos, à ideia da «necessidade do inquérito» que ia sendo sucessivamente desvalorizado depois de avaliada a «qualidade das testemunhas». É o mesmo método que está hoje a ser utilizado.

Com isso, tem aparecido um interessante argumento, que já vi escrito várias vezes: o de que a investigação à Casa Pia configura uma «perseguição moral», misturando «pedofilia» com «abuso sexual», «abuso sexual de menores», «formação de rede criminosa», «abuso de menores», «homossexualidade», «pederastia», etc. Ora, o que está aqui em causa é uma única coisa: «abuso sexual de menores» e consequente «formação de rede criminosa». Trata-se de um crime que, esse sim, é cometido contra todas as crianças, com a agravante de essas crianças terem sido confiadas à guarda do Estado — e o Estado não cumpriu a sua obrigação. Ninguém tem nada a ver com a «orientação sexual» de seja quem for; nem o Estado, nem a vizinhança, nem a imprensa. Mas é o Estado que também está no banco dos réus, e de que maneira — e não por motivos de ordem moral.

Este trabalho de desvalorização do processo, da investigação e das testemunhas faz-se independentemente da «qualidade das testemunhas», da existência de «falhas na investigação», do «papel do MP» (entretanto comparado à PIDE e à Gestapo, acusação que dá bem a imagem do aviltamento e da parvoíce que toca a todos), etc. É um trabalho de diluição do próprio caso: lento, paciente, corajoso, esse «trabalho em curso» tem objectivos muito claros. Apagar o processo é o mais ousado, mas vai por etapas. Depois da montagem da famosa «tese da urdidura» nem era preciso dizer mais.

Como a memória costuma ser curta, eu recomendaria que se escutassem — de novo — as declarações dos teóricos, patrões ou sobreviventes do Bloco Central e dos seus interesses, no princípio deste Verão. Essa onda de protestos, indignações, ares escandalizados e quase «maioria moral», merece ser vista e revista. Precisamente porque estão lá todos os sinais, a que acabou por associar-se involuntariamente a prestação do Presidente durante a sua jornada açoriana do 10 de Junho (com o «patriotismo moderno e democrático» e outras ideias ainda não esclarecidas a propósito da «dignidade dos políticos») — ainda por cima atiçada pela recordação da aministia (perdão de pena, aliás) dos 25 anos do 25 de Abril.

Evidentemente que não há coincidências. Que não se podem erguer e reerguer permanentemente teorias da conspiração sobre este caso. Que é manifesto o perigo do aparecimento de uma «onda de justiceiros» a sobrepôr-se a tudo. Mas há qualquer coisa aí. Ia a dizer «qualquer coisa que nos escapa». Mas não é verdade.