outubro 31, 2004

BRASIL. A prefeitura de São Paulo decretou que os funcionários municipais teriam «tolerância de ponto» na sexta-feira passada, antevéspera das eleições. Como terça-feira é feriado e segunda é «ponte», haveria menos votantes nas eleições de hoje. Mas as imagens dos «pedágios» para o litoral paulista eram estarrecedoras: estavam vazias na sexta à noite, apesar da promessa de domingo cheio de sol.

Em São Paulo, as pesquisas do Ibope e da Datafolha davam 54% para Serra e 46% para a prefeita Marta Suplicy.

Mais notas em dia de eleição municipal em 43 cidades brasileiras: 1) Luizianne Lins, a marxista esotérica do PT de Fortaleza, estava na frente com 57% dos votos, e deve ser eleita; 2) Paulo Maluf, controlado pela justiça, declara mais uma vez o apoio a Marta Suplicy em São Paulo; 3) o ex-governador evangélico do RJ, Anthony Garotinho(e marido da actual governadora Rosinha Mateus) deixa em Campos um rasto de irregularidades, agressões, notas de banco e sermões cheios de ameaças; 4) PPS pode ganhar em Porto Alegre contra o candidato do PT; 5) Em Curitiba, o candidato do PSDB vai à frente, mas o candidato do PT está a 8 pontos na sondagem do Ibope; em Salvador, derrota catastrófica do PFL e da geração de ACM; curiosidade mórbida: em Passo Fundo, terra-natal de Scolari, o PDT ficou em primeiro lugar, seguido do PPS e do PT.






RECADO. Ivan: a praia estava boa. Tenho pena que o Sr. Fernão de Noronha, apesar de financiador da expedição do «nosso» Vespucci, não tivesse a oportunidade de chegar à sua ilha. Mas garanto que ela está lá.

O CANTINHO DO HOOLIGAN. Dizem-me que o FC Porto está a fazer uma carreira fantástica, cheia de alegrias e bons resultados. Não acredito. Alguém anda a enganar-me.

SÃO PAULO, MARTA. O blog do Marcelo Tas tem um texto certeiro sobre Marta Suplicy e tenho pena de o ter descoberto só agora, depois de o ouvir num debate na TVE; o texto chama-se «Porque a Marta irrita», mas não é anti-Marta. Vale a pena (não tem link directo):
«Não tem nada a ver com o que dizem dela: arrogância, argentino, assertividade... Aliás, penso que para alguém ser prefeito de São Paulo, a megalópole mais inesperada, caótica e sensacional do planeta, tem que ter nariz empinado mesmo, ser meio louco, tudo isso... Tirando o argentino, é claro. [...] Apesar de reconhecer o excelente governo da Marta, ela me irrita por causa do seu partido, o PT. Que se julga acima do bem e do mal. Esse é o problema dele, o PT, desde criancinha. [...] Me irrita no PT o que já me irritou no movimento gay. Há alguns anos, talvez até mais de uma década, se você falasse mal de viados, era taxado de nazista. [...] Os petistas fazem isso até hoje. Olham torto para pessoas que não botam uma camiseta vermelha e saem por aí em bando agredindo tucanos. Pensam: um dia eles evoluem e ficam como a gente, o Zé Genoíno, ou o Mercadante... [...] Não sou o Duda Mendonça, mas por favor me ouçam. O brasileiro está cansado de receber ordens e aguentar gente com ares de superioridade. Aliás, vocês já se esqueceram seus tontos, o FHC e os tucanos perderam para vocês por conta disso. Agora, só porque vocês estão no "puuderrr", são assim com o ACM, querem devolver na mesma moeda? O índice de rejeição não é dela, mas da duplinha que simboliza a militância gay tardia do PT: Mercadante e Zé Genoíno (o ruim de voto). Se eu fosse a Marta, fazia que nem a Luizianne, tirava o PT da minha campanha. [...] E uma dica pro candidato Serra, para o post ficar equilibrado. Pare de falar que o governo de Marta foi ruim, porque não foi. E você, Marta, pare de falar que o governo Alkmin (PSDB) é ruim, porque não é. Muito pelo contrário. Temos sorte. Não precisarmos baixar o nível como no Rio e na maioria dos estados do Brasil. São Paulo tem o luxo de ter dois governos decentes, no município e no estado. E dois candidatos decentes a prefeito. Vamos celebrar este fato fazendo uma campanha igualmente decente! Vocês não precisam e não merecem baixar o nível, cacilda!»

outubro 29, 2004


RUA DA JUDIARIA, NOSSA RUA. מזל טוב Conheço o Nuno Guerreiro há bastantes anos, antes de ele ter ido para fora, para Nova Iorque e para Los Angeles. Em Portugal, como jornalista, foi um excelente repórter. Como correspondente nos EUA (inclusive para a Grande Reportagem de há uns anos) revelou uma atenção e um rigor extraordinários. O seu blog Rua da Judiaria é mais do que uma referência na blogosfera; é o site onde encontramos parte da nossa memória. Faz agora um ano, um ano inteirinho. O Nuno merece mais do que um abraço. O trabalho do Rua da Judiaria é notável; com a serenidade dos justos -- e dos que sabem que não é o volume da voz que marca o caminho da verdade, mas o seu tom --, a tranquilidade daqueles a quem invejamos a inteligência, a minúcia, a paciência, a delicadeza, o Rua da Judiaria é o blog judaico português por excelência. Uma das histórias que o Nuno e eu partilhamos é, sem dúvida, a do rabino que exprimia toda a inquietação que toma conta de nós quando escrevemos, quando lemos, quando olhamos na direcção do Muro: «Não perguntes o caminho a quem o conhece pois, de contrário, não te poderás perder.»

Uns dias sem net, fora de casa, impediram-me que saudasse mais cedo o Rua da Judiaria.

UTOPIAS, 4. Talvez, caro F.B.P., talvez. O problema é que, nessas utopias, a presença da religião confere-lhes um aspecto ainda mais assustador. No caso das utopias sem religião, o caminho para o terror é muito mais rápido.

UTOPIAS, 3. Mail do F.B.P. sobre os dois pequenos textos aí em baixo:
«Não me parece que as 'utopias' de Campanella e de Bacon possam ser consideradas do séc. XVI se foram escritas e publicadas… no séc. XVII. Também não me parece razoável dizer que assentam na religião. Nem sequer no caso da Utopia de Thomas More (há que lê-la considerando a República platónica, o Moriae Encomium erasmiano e alguns opúsculos de Damião de Góis). O sentido que dá a utopia não supõe a religião; pelo contrário contende ou nega a religião. As 'utopias' milenaristas, totalitárias, não assentam na religião: negam a religião porque esta obviamente foi sempre o seu mais formidável adversário. Depois de Feuerbach, Marx e Engels o caso muda de figura: as desgraças do séc. XX, e nisso tem toda razão, devem-se a esses utópicos que recusavam a 'utopia' porque queriam ser 'científicos', ou seja, resultam em grande parte da negação de Deus. Em suma as utopias de que fala são perversões imanentistas da religião (valdenses, dolcinianos, joaquimitas, anabaptistas e outras formas de milenarismo), o mesmo sucedendo nas suas versões ateias ou pagãs (marxismo, nazismo, fascismo, new wave, etc.; aqui poderia incluir-se a mundividência light em que assenta o politicamente correcto).»

MORTE NO ESTÁDIO. A morte de Sérginho, futebolista do São Caetano, em pleno Morumbi, no jogo contra o São Paulo, em todas as primeiras páginas. A discussão que regressa: parada cardíaca, desfribilhador, pronto-socorro, ambulância no túnel do balneário, Féher. Foi em noite de eclipse total da lua. Na mesma noite morreu também (parada cardíaca), no pavilhão do Sport Recife, o treinador da equipa de vólei. Desporto está perigoso.

outubro 25, 2004

DIAS ASSIM. Dias de trabalho em locais onde a rede está inacessível.

outubro 23, 2004

UTOPIAS, 2. As utopias do século XVI (More, Campanella e Bacon, por exemplo) assentam na religião e no poder absoluto do Estado – e no bem comum que não admitia adversativas. Não deixaram de ser. Nunca poderiam ser de outra maneira. Tomando o destino da economia, do comércio ou da educação sob a orientação do Estado, tudo o resto era também determinado pelo Estado. De Campanella a Mao, as utopias foram sempre fanáticas, totalitárias e engendraram mais crimes do que se imaginava; rapidamente, as utopias transformaram os homens em inimigos de si próprios em nome de uma austeridade impossível e de outras mentiras piedosas. Podem ter sido admiráveis no desenho da felicidade – mas a felicidade de todos era de uma uniformidade assustadora, sem riso, sem vícios, sem complexidade. Poderíamos dizer que, da mesma forma como é útil ler Montaigne, o mundo também precisa de ler um pouco de Rabelais.

UTOPIAS, 1. Leio um texto do Bruno Alves sobre a tristeza do dr. Soares em relação ao fim das utopias. Reconheço que é um pouco difícil, para várias gerações, admitir que o tempo das utopias conduziu aos campos da morte por todo o lado, de Calvino a Lenine e Pol Pot. O problema das eutopias é que já lá estavam escritas as suas sombras e os seus dias de terror: o homem construído e perfeito, a cidade como uma estrutura inexpugnável e terrível, vigiada por gerontes ou sábios, por iluminados ou marechais; já lá estava a obrigatoriedade das orações a uma hora certa, as directrizes sobre a vida sexual e sobre a educação das crianças, a questão alimentar, as determinações sobbre o trabalho e a maneira de tratar os velhos. Somos capazes de enquadrar a idade das utopias (o sonho de um mundo perfeito que contrastava com a desgraça na Europa), mas os seus textos são execráveis. A esta distância, assustadores. Há uma outra perspectiva, naturalmente: a da leitura da utopia como um mundo de possibilidades. Infelizmente, as possibilidades não são aceitáveis à luz do que sabemos hoje sobre o seu destino histórico e sobre o destino dos homens que sofreram essas utopias. O mundo anda a precisar de ler um pouco de Montaigne.

outubro 22, 2004

MARTA SUPLICY SEM DUDA. Esta notícia (e as relacionadas) é curiosa. Mas vale a pena. Esta, relacionada com o novo cabo eleitoral de Marta Suplicy, também vale a pena.

Entretanto, depois da entrada velada de Lula na campanha, do apoio de Paulo Maluf, Fleury e Faria de Sá, as sondagens de amanhã (Datafolha) dão dez pontos de vantagem a Serra sobre Marta. Outras prefeituras em destaque nos próximos dias: Curitiba, Porto Alegre e Salvador.

FUTEBOL PORTUGUÊS EM SÃO PAULO. Gonçalo Soares, o correspondente do Aviz em São Paulo, dá conta do interesse português em Robinho. Desta vez, foi Casagrande que falou de Robinho para o Benfica. Na semana passada, Robinho era dado como negociável para o FC Porto:
«Ontem, durante a transmissão do São Paulo-Santos, ouvi Walter Casagrande, ex-jogador do Porto e comentador da Globo, dizer que se encontravam no Estádio do Morumbi representantes do Benfica para observar Robinho. O craque santista, a quem já chamam Robson Arantes do Nascimento, é tido como uma das maiores promessas do futebol brasileiro a par de Kaká e Diego. Com este último, aliás, formou nos últimos dois anos a mais terrível dupla do futebol sul-americano, conquistando para o Santos um campeonato brasileiro, um vice e uma presença na final da Libertadores em que perdeu com o Boca. Perante isto só posso concluir que o Casagrande se enganou. Os representantes do Benfica não foram ver o Robinho, que até nem jogou. Robinho não serve para o Benfica. Como não serviram Romário, Deco, Maniche e sabe-se lá quantos mais. Do Santos só interessam ao Benfica jogadores do calibre de um Paulo Almeida ou de um Alcides. O Robinho é que não.»

outubro 21, 2004

CABALA, 2. Gomes da Silva: «As cabalas existem independentemente da vontade subjectiva de as constituir.» A frase é genial. Eu agradecia que deixassem de falar do que não percebem, mas, já que se usa a palavra cabala, ao menos um pouco de pudor.
Seja como for, a frase é genial: os elementos, a poeira das partículas, as correntes de ar, tudo isso, podem ajudar a constituir uma cabala. Basta juntar uma declaração aqui, uma declaração ali -- e temos uma cabala. Há dois géneros de pessoas que andam à volta das teorias da conspiração: os que as produzem, e que, em certas circunstâncias, podem ser gente com um razoável sentido de humor e uma imaginação prodigiosa (ou ridícula); e os que temem toda e qualquer conspiração, toda e qualquer ameaça. Uma legenda da Caras pode ser o terrível sinal de que alguém brinca com a idoneidade da pulseirinha do senhor doutor; um advérbio contrapontístico numa crónica «de quotidiano» pode disparar um alarme na honorabilidade de um cavalheiro; um título mal lido (coisa que ocorre frequentemente) acaba por ser o sinal de uma conspiração contra a honorabilidade da administração pública. É quase um estalinismo na via pública: a suspeita permanente, a esquizofrenia da popularidade. Não interessa que o Expresso, o Público e o prof. Marcelo não tenham vontade de constituir ou de produzir um efeito; interessa que ele se constituiu, que ele aproveitou as oscilações dos elementos, a direcção das partículas. Veja-se como é perigoso existir no meio disso. Existir, sequer.

CABALA. Se a coligação não funcionou nas ilhas e se um dia destes se anunciar que os partidos da mesma irão concorrer separadamente, o que se dirá? Que a cabala do Expresso, do Público e do prof. Marcelo, afinal, era mais do que uma hipótese malévola (como na Cabala, afinal)? Estamos para ver.



ILDO LOBO. N KA TEN PALAVRA PAM DISCREVI PERDA DE ILDO. Morreu Ildo Lobo. Para quem conhecia a sua música (e a sua presença, a solo ou a bordo de Os Tubarões), é mais do que uma música que deixa de dançar no céu do Mindelo. José Luís Tavares enviou-me este poema, escrito ontem, em homenagem a Ildo.

Jovem herança de luz. Quando, no fundo
poço, a manhã antiguidade úmbria. Profundo
— esse aroma de fuligem, seu amoroso surdir.
Então, mundo é esse enigmático nome a vir,

exaurindo a incomovível placidez dos serrados.
Por si move; qual se deus, brisa ou sina.
Gravidade súbita amorenando a tez hialina,
pela hora em que pelos roucos valados

solidão é essa névoa tão sem peso, sua
lembrada altura sublinha que toda
a vida é ida; ou só ondeação da usura

por esse escalavrado trilho, rio que estua
neste estremunhado grito quase toada,
relembrando que só a morte é lonjura pura.

José Luís Tavares
20 de Outubro de 2004

outubro 20, 2004

CARGA POLICIAL. Isto estava anunciado por isto? Ou esperam-se discursos sobre o direito à rebeldia, ou seja, a invadir o que dá na real gana? Um caso a seguir.

EU E O FUTEBOL, OU CONFISSÕES DE UM HOOLIGAN. O Hugo Jorge escreve, por mail, sobre os meus pequenos textos acerca do Benfica-Porto deste fim-de-semana:
«[...]Confesso que sempre apreciei o seu trabalho e, sobretudo, a sua crítica - incisiva, por vezes mordaz, mas sempre sensata. Mas quando chegamos ao futebol, transformamo-nos. Estranho desporto este, que ora nos une, ora nos separa. Podíamos discutir se foi ou não golo, se houve ou não penáltis, quem mereceu ou não ganhar. Custa-lhe assim tanto compreender o desejo de ganhar, o sentir-se prejudicado quando se dá tanto (como não se via os jogadores do Benfica, há anos)? Mas não devemos entrar por aí. Será mais importante discutir toda a envolvência. Porque continua o país a falar de paz no futebol (você mesmo o fez nos seus escritos públicos) e, depois, pouco se contribui para isso? Não se podem tolerar as afirmações e as atitudes de L.F. Vieira. Então e as de P. Costa, ao chamar assassinos aos benfiquistas? Não acha que a sua postura e aquilo que escreve, enquanto figura pública que é, contribuem para manter a fogueira acesa? Poderá dizer-me que foram outros que a acenderam, que escreveu num blog privado, que escreve com paixão (e aí, como sabemos, falta por vezes a razão). Dificilmente concordará comigo, mas gostava que pensasse. Porque assim, com o que escreveu, ataca o populismo de LFV mas branqueia o de PC. E, mais grave, alimenta-os, dá-lhes força e espaço para continuarem a delapidar aquilo que devia ser uma festa.»

Na passada quarta-feira (há uma semana), o Brasil jogou com a Colômbia e empatou a zero. Foi um jogo sofrível mas o Brasil jogou melhor e atacou como devia. As imagens da televisão mostraram com clareza que a bola, depois de chutada por um avançado brasileiro (esqueci quem era), entrou e bateu no chão, 59 centímetros para lá da linha de golo, na baliza dos colombianos. O árbitro não validou o golo. Houve protestos, naturalmente. Mas a maior parte dos protestos no estádio Rei Pelé, em Maceió-AL, foi contra os jogadores do Brasil, que não conseguiram marcar golo depois de tanto chuveirinho, de tantas jogadas de Ronaldinho Gaúcho e de Ronaldinho Nazário, de tantas oportunidades. Até ao dia seguinte, quando a grande imprensa e desinteressou do assunto, ninguém tinha pedido o massacre dos colombianos (que fizeram uma festa e tanto no próprio estádio), a defenestração do árbitro, o incêndio da bandeira colombiana ou uma investigação sobre o passado amoroso do treinador do país vizinho. Era futebol. Ficou um sentimento de injustiça, mas, de facto, o Brasil não tinha marcado golos que se vissem claramente. Leonan Penna dizia, com justiça: «Bola na trave é bola mal chutada.» E não tem mais. É mesmo.
O Benfica-FC Porto foi em tudo diferente. Mas eu sou um hooligan de trazer por casa. Acho que a frase de glória num jogo de futebol é «vai buscar!» («na peida!» também é usado, sim), gosto de brincar com os meus adversários e de dizer que a águia do Benfica já se transformou na galinha de Carnide. Eles chamam-me «da tripa». Aprecio muito a humilhação depois das derrotas; acho que fortalece o carácter. Aprecio ainda mais a alegria depois das vitórias, evidentemente; acho que fortalece o espírito. Não tenho nada contra quem ganha ao Benfica; acho que cumpre a sua função. Acredito que estas pequenas vilanias não contribuem para a paz social, tal como não criam desacatos nas ruas. Muitas vezes, é com amigos do Benfica que vejo os jogos do Benfica. Às vezes, eles vêem os jogos do Porto ao meu lado. Eu torço pelos adversários do Benfica. Eles torcem pelos adversários do Porto. Eu compreendo-os, e espero que me compreendam. Recebi mensagens SMS de apoio ao Celtic no dia da final de Sevilha. Alguns amigos declararam-se monegascos do coração durante a manhã do dia em que o Porto cilindrou o Mónaco. Eu fui holandês durante o PSV-Benfica. No dia do Anderlecht-Benfica senti-me sócio dos belgas desde a infância. Não tenho culpa. É um problema com que tenho de lidar. De cada vez que Baía deixa entrar um golo, o meu telefone enche-se de mensagens de amigos benfiquistas, festejando. Um deles envia-me mensagens com os nomes dos jogadores que – nesse dia – marcarão contra o Porto. Já chegaram a acertar. Já ganhei apostas. É uma vergonha. No último domingo fui presenteado com 30 garrafas de cerveja Skol.
Não sei quem é Luís Filipe Vieira (a não ser que tem negócios, que faz dieta – jantei várias vezes a poucos metros da mesa dele – e que não aprecio as suas piadas), mas pareceu-me a Dona Pombinha da telenovela (ainda se lembram?, perseguindo os adúlteros e fechando bares), abanando a cabeça e levantando o dedinho – e achei indigno que o cavalheiro tentasse fazer revelações sobre a vida conjugal de Pinto da Costa. Essas coisas não se fazem. Nunca. Mesmo que o Benfica esteja a pontos de ser derrotado por penaltis na taça Uefa. O resto – não me interessa. Gosto que o FC Porto ganhe e que o Benfica perca – sobretudo quando se invoca o passado, a grandiosidade do Benfica, a tradição, o número de adeptos, os lugares no estádio e a águia que desce sobre o relvado, «o Benfica é grande». Gosto mesmo muito. No Brasil gostava que o Palmeiras e o Flamengo descessem de divisão. E em Inglaterra nada me dá mais gozo do que uma derrota do Manchester. Eu sou um hooligan de trazer por casa. Não acho que tenha de apoiar o Benfica só porque defronta um clube «de fora». O Benfica é que é «de fora». Os meus amigos de verdade que pensam o mesmo sobre o Porto continuam a ser meus amigos de verdade. É só futebol. O resto – não me interessa. Um dia, um primeiro-ministro disse-me que era preferível que o Benfica ganhasse o campeonato para que a moral do país levantasse; passei a defender o direito à depressão colectiva. É irracional. Não encontro explicação. Eu sou um hooligan de trazer por casa. Gosto de ir ao Estádio do Dragão comprar camisolas para os meus filhos (um deles quase amua quando o Porto empata; tento dizer-lhe que é a vida, mas não adianta). Invento anedotas sobre o Benfica. Colecciono golos do Benfica que nunca entraram na baliza (como aquele do Belenenses, lembram-se?). Acho que os hooligans de verdade deviam ser presos e condenados a nunca mais poderem ver um jogo de futebol, nem da III Divisão. Irritam-me as multidões a festejar campeonatos – quaisquer multidões, sobretudo quando as televisões transmitem. Irritam-me as maratonas televisivas antes e depois dos jogos, acho que são impróprias para gente civilizada, para pessoas sensatas e para o jornalismo em geral. Não sei se gosto de discutir penaltis ou foras-de-jogo. Não gosto, seguramente, do «dirigismo desportivo»; acho-o geralmente triste, abjecto e pobre. Sempre o disse. Sempre o escrevi. E é isto o meu futebol. Ver jogos, gostar, escolher um adversário, recusar-me a explicar.

Adenda: Sim, hoje os dois golos do PSG entraram mesmo na baliza do Porto. E que ricos golos, que mereciam um aplauso para Pauleta, o renegado. É assim a vida.

Adenda 2: Por exemplo, ir ver o Benfica com Luís Nazaré.

RÉGUA, 2. Sobre as viagens em redor da Régua (ver texto abaixo), recomendo uma vista de olhos sobre o blog de Ricardo Figueira, o Blog de Fotografia.



POSSIDÓNIO CACHAPA. No blog do Possidónio Cachapa, autor do livro A Materna Doçura (primeira edição na Assírio & Alvim, nova edição na Oficina do Livro) está esta chamada de atenção. Vale a pena ir lá.

O que me lembra uma conferência de imprensa do actual primeiro-ministro, há uns anos, quando alertava a rapaziada dos jornais para uma «cabala» (ah, este termo...) que estava a ser dirigida contra a sua vida política. Como prova, exibiu um pequeno cartão, que lhe teriam enviado, e onde estava escrito o seguinte: «Cuidado com os rapazes.» Aviso malvado, «cabala» à vista, manobra fescenina. Não, nada disso: era apenas o cartão promocional do livro Cuidado com os Rapazes, de Alface (edição Assírio & Alvim).

outubro 19, 2004

FORTALEZA, CEARÁ. O meu correspondente em São Paulo, o atento Gonçalo Soares, chama a atenção para a pequena local da secção Radar, da Veja desta semana a propósito do caso de Luizianne Lins (O Globo publicava uma foto da audiência que, finalmente, Luizianne teve com o presidente Lula -- além da indicação de que tinha comido 670 grs. de comida mineira, por ter perdido o avião para Fortaleza):
«Companheiros mas nem tanto. José Dirceu tem dito a interlocutores mais próximos que não vai mexer uma palha para ajudar a campanha da petista Luizianne Lins no segundo turno em Fortaleza.»
Comenta o Gonçalo: «A soberba de Dirceu já valeu alguns constrangimentos a Lula (Waldomiro Diniz foi apenas um deles). Pelo que as últimas sondagens mostram está prestes a presentear o presidente com mais um, com sotaque Cearense.» Felizmente para Lula que as sondagens continuam a favorecer Luizianne.

Já agora, o Gonçalo informa ainda que a RTPi, afinal, pode ser vista em São Paulo, através da DirecTV, no canal 659. «Lá continuamos a assistir às novelas da TVI, ao Prof. José Hermano Saraiva e ás notícias das comunidades Lusas na Venezuela e no Canadá. E aos noticiários. Todos, incluíndo Açores e Madeira. E ao futebol. Luís Filipe Vieira incluído.»

outubro 18, 2004

BRASIL, MARTA SUPLICY. Afinal, Marta Suplicy, candidata do PT em São Paulo, «negou sentir constrangimento em receber apoio de [Paulo] Maluf, Faria de Sá e do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), que integrou a tropa de choque do ex-presidente Fernando Collor de Melo».

DIÁRIO DE LISBOA EM FLORIPA. A Maura Paoletti festeja um ano do seu blog, Diário de Lisboa. O blog começou em Lisboa, continuou em São Paulo (sobre as copas das árvores de Higienópolis) e está agora em Florianópolis (SC). De lá, a Maura continua a prestar atenção ao que acontece em Portugal e ao que cruza os ares luso-brasileiros. Aí está mais uma razão para novo jantar mineiro em Sampa, não?

MÁRIO FILHO. Que eu me lembre, a primeira pessoa a escrever decentemente sobre Mário Filho em Portugal foi Fernando Sobral (na Ler), a propósito da edição do Sapo de Arubinha. Em poucas palavras, Mário Filho era irmão de Nelson Rodrigues e um jornalista esportivo notável. Ao contrário de Nelson, que era tricolor (Fluminense), Mário Filho era rubro-negro. O Maracanã foi ideia sua -- e é o seu nome que dá nome ao estádio; a placa está lá: «Estádio Mário Filho». Um dos seus ódios de estimação era o Vasco e o seu sonho era que o Vasco perdesse com o Fla, com um golo marcado no minuto noventa e um, com a mão, em off-side e precedido de falta (com o árbitro a ver tudo se possível). Ora aí está uma ideia para nós, que apreciamos o clube da Dona Pombinha.

RÉGUA. No Blogame Mucho, o Besugo escreve sobre a Régua. A Régua é uma das vilas da minha infância e da minha adolescência. A Rua dos Camilos, a Rua da Ferreirinha, a livraria onde parava João Araújo Correia, a livraria onde íamos em peregrinação comprar romances dos anos quarenta a preço dos anos quarenta, a linha que seguia até ao Pocinho, a linha que subia até Chaves. Nunca percebi como foi possível destruir-se a Régua. Não digo destruir a paisagem da minha infância e da minha adolescência -- digo mesmo destruir a paisagem daquela maneira.

McCARTHY. Isto é um problema entre mim e o Ivan, mas a verdade é que eu devo um público pedido de desculpas a Benny McCarthy: sim, ele está a jogar muito bem.

AVARIAS. O facto de o clube da Dona Pombinha ter o sistema de som da sua sala de imprensa avariado merecia uma inspecção da Direcção-Geral dos Espectáculos. Tanto investimento por causa do Euro e depois é isto.



MAS HÁ OUTRA RAZÃO. Há outra razão, sim. Ao ler a imprensa desportiva não podemos senão ficar contentes. O negócio ainda está a correr-lhes bem; mas a perpectiva de ficar com seis milhões e meio (eu insisto sempre neste e meio) de portugueses deprimidos está a prejudicar-lhes o discernimento. Basta ler A Bola, essa lanterna do clube da Dona Pombinha.

Adenda: Soube pelo LR (que não é pessoa para imprecisões) nuns comentários do Blasfémias, que afinal são oito milhões de benfiquistas -- e não seis milhões e meio. Caro LR, eu proponho mesmo que o clube da Dona Pombinha passe a ter oito milhões e meio de adeptos. Avarentos é que nunca.

BENFICA-PORTO OU O REGRESSO DE DONA POMBINHA. O que mais me impressionou foi ver aquele homenzinho que parece que agora dirige o Benfica a puxar dos galões para defender a família tradicional e os bons costumes. Ainda o teremos arcebispo.

Só pude ver as imagens do Benfica-Porto hoje de manhã, às nove (jornal da tarde da SIC Internacional). Os protestos dos benfiquistas foram manifestamente exagerados e o FC Porto ganhou.

outubro 17, 2004

ANTI-AMERICANISMO PRIMÁRIO. Tornei-me anti-americano primário: soube que Cat Stevens, aliás Yussuf Islam, acaba de gravar um novo disco na sequência da onda de popularidade adquirida depois de ter sido proibido de entrar nos EUA. É uma nova versão de «Father & Son» com o irlandês Ronan Keating. Os serviços de fronteiras e a Administração americana deviam ser obrigados a ouvir «Father & Son» até à exaustão. E «Moonshadow» e «Morning has broken», e aquela tralha toda.

BRASIL, ELEIÇÕES. A Folha de São Paulo de amanhã, domingo, publicará uma nova pesquisa (da Datafolha; as do Ibope para São Paulo ficaram definitivamente descredibilizadas, pelo menos até 30 de Outubro, depois do falhanço do primeiro turno), em que José Serra continua à frente com uma vantagem de cerca de 12 pontos.

O debate televisivo entre os dois candidatos, Marta Suplicy (PT) e José Serra (PSDB), teve «aspectos paulistanos», sim -- mas notava-se que estava ali em jogo a polarização PT/PSDB que tomou conta do país (arrumando, pelo menos para já, com a hegemonia dos partidos da velha república, o PMDB e o PFL). Um dos pormenores do debate: a importância dos números invocados durante o debate. Percentagens, milhões de reais, quilómetros de asfalto, tudo; hoje, a Folha analisa os números à lupa e dá a vitória aparente a Serra, que teria manipulado menos. Mas o confronto é mortal. Se Serra ganhar, pode ver inviabilizada a candidatura presidencial em 2006 (há os candidatos Tasso Jereissati e Alckmin, do PSDB); se Marta perder, o PT vê cair um bastião fundamental (o PT perdeu lugares simbólicos no ABC paulista) e o governo terá de lhe arrajnar um ministério. A vida não é fácil.

A declaração de apoio de Paulo Maluf (e de Orestes Quércia) ao PT, constitui -- para o eleitor de «classe média», uma espécie de beijo da morte a Marta Suplicy. Mas não se sabe se Serra agradece os ataques de Maluf. Uma coisa é certa: o PT vai interceder e acabar com a comissão de inquérito à lavagem de dinheiro e outras aventuras criminais de Maluf. Tudo tem um preço.

Luizianne Lins, a candidata do PT em Fortaleza que o PT hostilizou -- e que se declarou «marxista-esotérica» -- já conta com o apoio de Lula e do próprio PC do B. Luizianne vai à frente nas sondagens e provavelmente vai bater o candidato do PFL. É uma derrota para os cubanos do PT, Dirceu e Genoíno. O Ceará, que já tinha eleito Deborah Soft para a vereação de Fortaleza, terá agora uma marxista-esotérica na prefeitura. Foi a parte «esotérica» que arrasou com Genoíno, Lula, Dirceu, Ciro Gomes e a rapaziada machista do Planalto.

BRASIL, DIA DO PROFESSOR. Dia 15 foi «o Dia do Professor» no Brasil. A burocracia petista inventou-lhes (são dos trabalhadores especializados mais mal pagos, em termos comparativos) um elogio, num anúncio: são professores, muito bem -- mas isso é uma coisa à moda antiga; eles são é «técnicos de inserção social».

A PÁTRIA. À distância, sigo pelos jornais e pela SIC Internacional (já não há RTPi nos canais de cabo e satélite brasileiros) os acontecimentos da Pátria, a bem amada. Há uma enorme quantidade de repetições, tantas que não se distingue aquilo que é comédia daquilo que passa por ser tragédia. Os meus amigos dizem-me que não devia ser pessimista ou, pelo menos, escrever sobre «o que está mal». Ou ser tão «negativo» em relação às notícias. Não sou. Fora da Pátria há coisas bem piores, alarmantes, desprezíveis, injustiças que se multiplicam, coisas ridículas. Como em todo o lado. Mas tenho em relação a ela a mesma sensação que toma conta de mim quando aparecem aqueles convidados do Herman Sic ou do Jerry Springer; nunca sei se hei-de rir ou se hei-de ficar envergonhado diante da exibição do pequeno género humano. Às vezes rio. De outras vezes fico envergonhado.

FERNANDO SABINO. No Gávea, evocação de Fernando Sabino. Eu diverti-me muito a ler Sabino -- e a experimentar a sua alegria, a sua erudição e os seus receios. E aquele elogio da generosidade que ele nunca escreveu -- por isso mesmo.

outubro 14, 2004

BRASIL-COLÔMBIA. O alagoano Zagallo foi a Alagoas para que a selecção brasileira enfrentasse a Colômbia no estádio Rei Pelé. O Brasil atacou, atacou, atacou, ronaldinhogauchou, ronaldinhou, e nada. Terminou a zero com um golo mal anulado ao Brasil. É o regresso ao Zagallo das melodias de sempre.

IMPRENSA. Outro dos meus correspondentes em São Paulo, o Gonçalo Soares, relembra uma local da secção Radar, da Veja:
«Subproduto da Kroll. São quatro os jornalistas investigados pela Polícia Federal na chamada Operação Gutenberg, isto é, aquela destinada a pegar profissionais de imprensa envolvidos em venda ou engavetamento de reportagens. A Gutenberg surgiu como um subproduto do caso Kroll – isto é, ao investigar as ramificações do caso a PF deu de cara com indícios de histórias esquisitas envolvendo jornalistas.»
E faz a pergunta: «E se houvesse operações destas em Portugal?»

BLOGS NO BRASIL. ALEX INAGAKI. O Alex Inagaki, de São Paulo, esclarece sobre o link do blog retirado do ar por decisão judicial (ver texto mais abaixo, «Alerta Vermelho»). Eu citava o exemplo de um blog que tinha sido obrigado a mudar de nome (e que tinha merecido um post anterior no Aviz), o Amarula com Sucrilhos, «que, devido a pressões exercidas pela empresa que produz o licor Amarula, foi rebatizado para Licor de Marula com Flocos de Milho Açucarados, e encontra-se atualmente numa URL quilométrica. O Alex Inagaki escreveu entretanto um post sobre «as conseqüências que advirão do caso Imprensa Marrom», e que pode encontrar-se neste link, e que convém ler.

Nem de propósito, o Observatório da Imprensa brasileiro acaba de publicar um texto útil sobre as implicações legais que podem retirar-se deste episódio (o «quadro legal» é o brasileiro).

PROVÉRBIO POPULAR. Não há empate com Lichtenstein que não dê em goleada à Rússia.

outubro 12, 2004

DITADO POPULAR. Quando, em política, se abdica de uma certa ideia de decência em nome da política – nunca se completa o mandato.

OPTIMISMO. Diogo Mainardi fala do assunto na sua crónica desta semana, na Veja, mas não se trata de «ficção»: o documento existe mesmo, o que prova que a insanidade não tem limites – e atribui a um programa de humor, por exemplo (ao «Casseta e Planeta», da Globo), ou às suas próprias crónicas, o défice de auto-estima e a falta de optimismo no cidadão brasileiro. Um estudo desses faz inveja a muita gente em Portugal. Escondam-no do Sr. Ministro.

ESQUECIMENTO DESASTROSO. Esqueci-me de mencionar o brilhante desempenho da selecção do Lichtenstein, essa equipa de todos nós. Fui apanhado pela notícia em pleno voo, creio que perto do equador. Uma pessoa, acometida de tanto júbilo, até se esquece. Depois, vi o Santos-São Paulo e passou-me.

A TAP. Eu gosto da TAP. Ao contrário da maioria dos portugueses, esses desmancha-prazeres anti-patrióticos e sem sentido de auto-estima, eu gosto da TAP. Mas não suporto aqueles chapéus das senhoras funcionárias; deviam ser dispensadas de usá-los. Também não gosto daquelas senhoras, chefes de cabina (suponho eu), que falam com voz afectada e que não sorriem a ninguém; os aviões e o resto do pessoal deviam ser dispensados de aturá-las. Eu sei que um avião é um autocarro do ar, mas enfim, há um resto de simpatia que fica bem por cima das nuvens. Estes protestos são um resto de provincianismo, eu sei.

outubro 10, 2004


BRASIL, CE. No Brasil, a campanha eleitoral prepara-se para a sua quinzena definitiva. Mas cresce a minha admiração por Luizianne Lins, candidata do PT de Fortaleza (em primeiro lugar porque não penso ir a Fortaleza). Desprezada pelo partido e pelos três chefes orgânicos, Dirceu (ministro da Casa Civil), Genoíno (presidente do PT) e Lula, que apoiaram o candidato do PC do B e lhe chamaram «aventureira» -- conseguiu chegar ao segundo turno, contra o PFL. Os repórteres perguntaram-lhe se esperava ajuda de Lula e do PT: «Se não atrapalharem já é bom.» O ar incomodado de Dirceu e de Genoíno, os cubanos do PT, já é uma imagem agradável. Vagamente, Luizianne menciona o machismo do partido e a arrogância de Genoíno. Seja como for. Há quem imagine Dirceu e Genoíno torcendo, em Brasília, por uma vitória do PFL.

Adenda: nos jornais deste fim-de-semana, Luizianne define-se como marxista, mas nada de ortodoxias. «Como uma marxista-esotérica.»

As declarações de ACM à Folha de anteontem mereciam entrar numa antologia: perdendo em Salvador (como tudo o confirma) para o PDT, ele vê (e com razão) aí uma intervenção do PT e do Planalto, e ameaça retirar o seu apoio a Lula. É mais um coronel que se vai. Aliás, três coronéis que se vão: ACM, Sarney (derrotado em toda a linha no Maranhão e no Amapá) e Garotinho (com o PMDB -- e o PT -- cilindrado no Rio). Se Luizianne disputar Fortaleza no risco, Genoíno e Dirceu serão dois sargentos deprimidos.

outubro 09, 2004




ESTA VOZ É QUASE O VENTO.

Quando penso neles,
há um livro que abre as suas páginas.
Uma persiana desce,
o pássaro das lezírias parte para longe das
palavras.

Há palavras que matam.
Há um livro onde os amigos vivem para
sempre,
emoldurados pela luz cega das orquídeas.

Há dez mandamentos sobre a evocação dos
seus dias.
Há um martelo que golpeia os cravos da sua
cruz,
um machado de pedra negra que reflecte a sua
mágoa.

Quando penso neles,
parece que chove.
Chove sempre nas praças vazias e é domingo
outra vez.
Então
os cães dormem nas quintas ao abandono.
Todos partiram.
Só os amigos me esperam do outro lado do céu.

Quando penso neles,
há um rasto de ternura sobre a neve e sobre a lava,
há um anel de aço que aperta a garganta,
as suas cordas de som,
e a neblina é mais densa.
Há um cântico, um segredo que recomeça nas
vogais do nome, e já não é nada.

José Agostinho Baptista, Esta Voz é Quase o Vento
Assírio & Alvim, 2004

BRASIL. O personagem pode não ter importância, mas a Folha de São Paulo de hoje transcreve as declarações do candidato derrotado do PDT às eleições de São Paulo: «O PT com poder demais faz mal ao Brasil. Esse é o principal problema. Temos medo do PT com poder demais.»

Entretanto, o Tribunal Eleitoral multou Lula pelo seu discurso de apoio a Marta Suplicy na campanha do primeiro turno. Eu agradecia que levassem esses juízes para a Madeira de cada vez que o dr. Jardim saísse do Palácio Vigia.

LIBERDADE. É evidente que está em causa a liberdade de expressão, ao contrário do que escreveram (nos jornais) e disseram (na rádio) hoje os especialistas em «politiquinha» e que justificam tudo com a hipótese de se tratar de mais uma traquinice do Marcelo. Pessoalmente, estou-me bem nas tintas para as traquinices do Marcelo – tão reconhecíveis (um piscar de olho, um sorriso, uma frase), tão evidentes. Seria bom que assentássemos no seguinte: a demissão de Marcelo Rebelo de Sousa (como sabemos hoje, a demissão foi a sua reacção à proposta de amenização das críticas ao governo e de mudança do formato do programa) não faz senão agravar o que já de si era grave – as declarações do ministro.
Estou-me bem nas tintas para saber se MRS quer ser candidato a presidente da República ou a provedor da Santa Casa. E não acho significativo que MRS escolha o silêncio para castigar ou penalizar o governo. Isso interessa os especialistas em «politiquinha» – e até pode interessar o próprio Marcelo. Agora, o que eu acho significativo é que todas as coisas que se passaram estavam já inscritas nas palavras do ministro.
MRS pode ter-se demitido porque não estava para aturar a sugestão para amenizar as críticas. Quem pode, pode – e demitiu-se. Pacheco Pereira não aceitou um cargo. Outros fizeram o que puderam. O que é grave é a ideia de que qualquer crítica, por menor que seja (ao decreto da «ponte» da passada segunda-feira, à ida de Paulo Portas ao carnaval de uma amiga, às gravatas de um director-geral, ou, por displicência, a aspectos essenciais da governação) sejam entendidas como «destilar ódio ao PSD». Isso é que eu acho inaceitável. Tal como acho inaceitável (não, não por razões «operativas» ou para dar conta de um «descontrole» do governo) que, a cada crítica e a cada despacho de uma agência de notícias, se responda com conferências de imprensa e comunicados oficiais. Isso é coisa de quem depende absolutamente das primeiras páginas e não se defende onde essas coisas devem ser defendidas: no Parlamento, no governo, nos ministérios.
Tratar toda a «opinião desfavorável» como uma ameaça iminente é uma coisa desprezível que retira toda a dignidade à ideia de governar; como se não fosse possível governar sem as primeiras páginas e sem o beneplácito dos comentadores encartados ou fortuitos. Esta dependência orgânica é que é desprezível – não me interessa que Marcelo se tivesse demitido e vestido a pele de vítima. Isso é assunto dele, dos que adoram «factos políticos» e dos que acham que a política é apenas o jogo do Monopólio. Assunto meu é o da liberdade, porque sou cidadão. E assunto meu é, também, a forma como as autoridades reagem às críticas. Podem não revelar outra coisa – mas revelam um carácter.

POR EXEMPLO. A ler os textos de C.A. Amorim: «Qual a importância do Caso Marcelo?» e «Agora a sério», no Blasfémias.

outubro 08, 2004

AUTO-ESTIMA, OPTIMISMO, PATRIOTISMO. Sócrates não vai precisar de se esforçar muito, o pão cai do céu. O romance português atravessa um momento de grande nível. Descontos na fonte. Praxes nas universidades e institutos politécnicos. Quinta das Celebridades. Festejemos os paralímpicos. Sangue na estrada e miséria no lar. Jerónimo de Sousa. Street racing. Gomes da Silva. Ruas esventradas, túneis, poeira arrastada pelo vento. Vitalidade da economia. Reformas estruturais. Reformas douradas. Reformas garantidas. Colocações de professores. Colocações em bancos. Iliteracia e inumeracia. Pontes, feriados. Tolerância de ponto, tolerância de opinião. Saldos e rebajas. Alberto João Jardim. O povo na rua. Outlets. O povo grita «assassino! assassino!». Escutas telefónicas. Gravações ilegais. Nossa Senhora do Caravaggio. Estudantes nas praxes, portões das universidades, batinas. Working boys. Romagens do 5 de Outubro. Iliteracia outra vez. Papagaios. Mandar calar. Vindimas e auto-estradas. Auto-estima.

outubro 07, 2004


NOBEL. Elfriede Jelinek, dramaturga austríaca, é o Nobel da literatura deste ano. Às vezes, fico contente quando o Nobel é atribuído a um nome desconhecido; essa sensação de ignorância é agradável e permite que ainda se possa ler um livro insuspeitado até aí. Como não pode ser Philip Roth, então que seja para um desconhecido. É uma maneira de dizer, evidentemente.

DELITO DE OPINIÃO. Provavelmente, o «caso Marcelo Rebelo de Sousa» configura uma espécie de «delito de opinião». Não é todos os dias que uma vítima (e vitimizada) de um processo de «delito de opinião» é recebida pelo presidente da República. No caso de MRS há muitos factores implicados (governo, grupos de média, acções na bolsa, amizades, relações -- coisas que nos ultrapassam), certamente. Mas quem já viveu um processo semelhante muda de repente a sua ideia do mundo.

Adenda: A ideia de transformar MRS em mártir parece-me, por outro lado, uma ideia completamente estapafúrdia e despropositada. A gestão da agenda e dos timings é um pormenor muito importante.

Adenda 2: Quanto valia Marcelo?


Adenda 3: No dia 7 de Setembro, escrevi a propósito das críticas do presidente brasileiro ao correspondente do The New York Times, Larry Rhoter, que já antes enfrentara a ameaça de expulsão do Brasil por ter publicado um artigo. Desta vez, Larry tinha publicado no seu jornal um texto em que dava conta das críticas da imprensa brasileira ao projecto de constituição de um órgão feito, também, para fiscalizar e punir «desvios éticos» dos jornalistas. As críticas do aparelho petista eram fortes, agressivas e injustas -- nos dois casos. E escrevi: «Santana Lopes gostaria muito, gostaria. Mas não pode.» Quem vive da imprensa é devorado por ela. E quem não quer ser lobo não lhe veste a pele. E, já agora, gostaria muito de ver o novo projecto de alteração da lei de imprensa que anda por aí. Ver por ver, evidentemente.

PUBICIDADE ENGANOSA. No Gávea, blog sobre literatura brasileira, encontrarão textos sobre Verissimo, Caio Fernando Abreu, Rubem Fonseca, Luana Piovani em strip-tease involuntário na Academia Brasileira de Letras, Paulo Francis, Gregório de Mattos, edição actual, links para escritores, o negócio das Bíblias brasileiras, enfim, o que vai acontecendo.

DE REPENTE. De repente, muitos amigos meus -- aqui, na blogosfera, e fora dela -- começaram a tratar o professor Marcelo como um ex-professor Marcelo. Como o defunto professor Marcelo. Ah, mas isto ainda agora começou.

PROIBIÇÕES E PATERNALISMO. O reitor da Universidade Católica não quer mudar o horário das discotecas por ter vontade de proibir seja o que for; não me parece pessoa para isso. Ele quer que se mude o horário das discotecas porque -- como mais de meio mundo no universo da pedagogia e da educação -- acha que se devem proteger os meninos e as meninas. Os estudantes estão, portanto, indefesos diante do ataque da sociedade e não há melhor maneira de os pôr a salvo do que impedir que elas e eles sejam cativados pelo mal que anda cá fora, à solta.
Evidentemente que responsabilizá-los pelo mau aproveitamento escolar está fora de causa; é muito pouco popular e não está na moda.
Como dizia o presidente de uma associação académica (creio que de Coimbra, para não variar), logo uma semana depois de ter sido eleito, «nas actuais condições» não se pode exigir que um estudante complete o curso no tempo regulamentar. Ora, o que se deve exigir é que um estudante complete o curso no tempo regulamentar, exactamente -- ou então que vá à sua vida. O reitor da Católica não fez mais do que autorizar este género de coisas.

outubro 06, 2004

REPÓRTER. Na televisão, passou há pouco uma reportagem sobre a escola de Colares que o Correio da Manhã escolhera para a primeira página de ontem. Apesar de ter duas versões dos factos, a repórter optou apenas por uma delas (ai se o contraditório pega!), de modo que os alunos foram entrevistados, falou-se de um regulamento sobre o qual existem (também) duas versões mas de que não soubemos nada e, finalmente, a repórter inquirindo o professor e director da escola sobre os códigos de disciplina com voz malcriada. O tom manteve-se durante toda a reportagem; o professor estava no banco dos réus. A repórter passou de jornalista a polícia. Em imagens de arquivo, algumas alunas queixavam-se de que não podiam fumar dentro da escola e de que não podiam dizer palavrões. A repórter achava estranho que os alunos tivessem de tratar a «Dona Rosa» por «Dona Rosa» em vez de «senhora contínua». A solidariedade com a «rebeldia». A disciplina escolar como o pior dos males. Passou na televisão.

REALPOLITIK. OU BUSINESS AS USUAL. Portanto, a TVI pesou bem os pratos da balança; viu para que lado se inclinavam mais – e decidiu em conformidade, livrando-se de Marcelo Rebelo de Sousa. Não há almoços grátis. Perdão, não se trata de almoços. Já não é preciso contraditório.

O CONTTRADITÓRIO. [Actualizado] Vai uma grande algazarra pelos corredores do PSD e, imagino, pelas redacções, sobre o apelo do ministro Gomes da Silva «em defesa do contraditório» no «caso Marcelo Rebelo de Sousa». Acho absolutamente estapafúrdio. Toda a gente sabe (é uma maneira de dizer) que, «do ponto de vista legal», Marcelo Rebelo de Sousa podia falar durante vinte e quatro horas seguidas na TVI. E se houvesse obstáculos legais, ninguém ousaria pôr em causa a autonomia da programação televisiva; olha quem – a televisão faz muita falta em vésperas de eleições e em momentos de crise.
Sim, podemos perguntar (com o dedo levantado) se é normal haver um comentador político que ocupe 45 minutos de tempo de televisão, aos domingos, a dizer o que acha sobre a vida em geral. Não é. Mas, sinceramente, não se pode fazer nada: Marcelo Rebelo de Sousa veio da TSF, onde ocupava uma hora a fazer o mesmo, dando notas, atribuindo classificações, eleito como «o professor». Não estão em causa os seus dotes – as suas habilidades ou a sua seriedade, a sua argúcia, as armadilhas que estende, as alfinetadas, os sorrisos, os segredos e, sobretudo, a sua notável intuição, invejável e indisputável até agora. É esse o seu trabalho. MRS é, nessa qualidade televisiva, um entertainer; ou seja, para a TVI funciona como um entertainer, ocupa 45 minutos de antena, faz subir as audiências – tem o seu preço. Contraditório? Não. Havia «contraditório» quando Santana Lopes respondia em tempo real na RTP – e, mesmo assim, a TVI esperava que Santana e Sócrates falassem.
Eu percebo, toda a gente percebe, que a ideia de um «contraditório» é justa e decente. Mas já era justa e decente quando MRS era comentador da TSF num congresso do PSD, minutos antes de descer à terra para ser eleito líder do PSD. Eu acho, repito, justa e decente a ideia de um «contraditório», seja no que for, onde for. Também acho que devia existir um «contraditório» quando Miguel Sousa Tavares fala às terças-feiras e expõe as suas convicções. E que devia existir um «contraditório» de cada vez que Alberto João Jardim fala na Madeira e é citado ou louvado pela imprensa que o governo regional paga. Para a TVI, numa perspectiva aceitável do seu ponto de vista, MRS não precisa de «contraditório» para ser um sucesso de audiências (de contrário não se explicava que o Jornal Nacional do último domingo tivesse apenas uma notícia e tudo o resto fosse ocupado com MRS).
Eu percebo o “contraditório”, finalmente, quando as pessoas falam em nome da decência, que é um valor como qualquer outro – mas que eu prefiro citar quando se fala de politicazinha. Só que, ao escolherem o seu melhor ar escandalizado quando vêm protestar contra “a barafunda em que isto está” (depois de a terem causado e de a terem autorizado), o melhor é sorrir e passar adiante. Lembram-se da polémica à volta do «Acorrentados»? Há muito tempo que, na Assembleia da República, não se ouvia tanta gente pedir ordem nas ruas, moralidade na escola, disciplina no lar, fim do massacre das classes médias. E porquê? Porque muitos cavalheiros do parlamento eram cúmplices na situação.
O que o dr. Gomes da Silva (ou, por interposta pessoa, o dr. Santana Lopes ou alguém por ele) teme não é a decência, acho eu e faço-lhe esse favor; mas o que ele quer, realmente, não é o «contraditório» (contraditório entre quem? entre dois militantes do PSD?) e talvez não seja a censura pura e simples. O que o dr. Gomes da Silva quer é que julguemos que decretar uma ponte no dia 4 de Outubro foi uma medida justa, administrativamente aceitável e politicamente louvável. Não é, não foi. Foi outra trapalhada do governo. E merece ficar, pois, com o seu melhor ar de trapalhada indecente.

MALDADE BRASILEIRA. Uma forma como qualquer outra de dizer as coisas:
«não quero acirrar as desavenças com os nacionalistas, mas a que atribuir o grande sucesso do brasil nas paraolimpíadas?
se mandassem duplas como cláudio assis e o hector babenco, os arnaldos antunes e jabor, inocêncio oliveira e acm, sarneys, petistas, tribalistas e o fã-clube da marilena chauí, ela mesma e o leandro konder, por exemplo, com certeza o brasil dispararia no quadro de medalhas, especialmente em modalidades como a bocha da paralisia cerebral.»

TEORIA DA CONSPIRAÇÃO. «The Ultimate Literary Conspiracy Theory: as peças de William Shakespeare na verdade foram escritas por Thomas Pynchon.» Aí está.

outubro 05, 2004

DEPOIS DE LER UM ENSAIO SOBRE LITERATURA PORTUGUESA ESCRITO POR UM ENSAÍSTA HIRSUTO E VENERANDO. Depois disso tudo respirar. Encontrar qualquer coisa para ler. Passei pelo Nove de Copas, uma descoberta recente e inocente.
«às vezes me ajuda a escrever se eu pensar nos maiores desejos. são desejos em forma de festa, são grandes bolhas de sabão da infância. a gente tinha um brinquedo que era um fazedor de bolha de sabão com o aro do tamanho de um disco mesmo. e ele formava bolhas longas, em forma de pão de cachorro quente. todas coloridas. são assim esses desejos.»

UM HAI KAI DE IEDA MARCONDES. Ieda mantém um blog que leva o nome Fabulosa & Inútil.
«Sinto terrivelmente pelo desgosto momentâneo e passageiro do garoto que me pediu em namoro e eu não aceitei, há algum tempo. Enquanto lembro, toco a música tema de La Dolce Vita usando barulhinhos da boca, dentes, língua, saliva, a sinfonia toda, e mexo o dedão do pé, de acordo, é claro.»

CARVALHAS. E se fosse verdade?

REGULAMENTAR A TELEVISÃO. O Paulo Gorjão adverte para o papel secundário de Gomes da Silva no caso das críticas a Marcelo: que tudo vem do gabinete do primeiro-ministro. Ó Paulo, tal como tudo vinha de Aristóteles. De certeza. O que confirma tudo o que sabemos sobre a esquizofrenia actual.

ALERTA VERMELHO. Ora aí está uma notícia sobre «comentários perigosos». O Alexandre Inagaki, do blog brasileiro Pensar Enlouquece. Pense Nisso. conta como outro blog (que está aí na lista de links), o Imprensa Marrom, foi obrigado a sair da net. Não é a primeira vez que isto acontece no Brasil -- já antes, como escrevi aqui, um blog foi obrigado a mudar de nome porque uma empresa achava que o seu nome [o do blog] era parecido com o da corporação, uma empresa (sul-africana!) de ervas medicinais e xaropes. Escreve o Alexandre:
«Mergulhamos, oficialmente, no território das incertezas. A partir desse precedente, sou obrigado a fazer alguns questionamentos sobre a natureza de meu blog. Até que ponto posso emitir as minhas opiniões sem que algum melindrado ameace tirá-lo do ar por algum critério subjetivo? Chegará o tempo em que necessitaremos de consultoria jurídica prévia para a publicação de um post? Vale a pena permitir a publicação de comentários, ou será mais prudente limitar a interação do meu blog? Devo me limitar a escrever sobre o cardápio do meu café da manhã e as cólicas do meu cachorrinho?»
Fernando Gouveia, responsável pelo Imprensa Marrom, esclarece que esta é a primeira acção judicial promovida contra um blog por causa de comentário.

O TELEPONTO, 2. Golpe para os críticos da esquerda moderna: ainda segundo o Público desta manhã, foi a direcção de Ferro Rodrigues que comprou o teleponto para o PS. Ferro era de esquerda?, perguntam-se os repórteres que exultaram com o assunto.

REGULAMENTAR A TELEVISÃO. A ideia de que o ministro dos assuntos parlamentares está indignado com Marcelo Rebelo de Sousa parece-me muito útil e instrutiva. Parece que é por causa da avaliação que MRS fez da «ponte» de ontem, 4 de Outubro. Há, no entanto, um pormenor ameaçador: «O Executivo», diz o Público, «irá apresentar em breve as novas regras para a futura entidade reguladora da comunicação social […]» Acrescentando que o PSD defende «o princípio do contraditório» mesmo em comentários políticos – que é (desculpe-me, Miguel Relvas), de facto, estapafúrdio. Uma pessoa é livre de comentar o que lhe der na real gana.
É evidente que ninguém de bom-senso irá ligar à «defesa do princípio do contraditório», mas isso dará pano para mangas – e é, claramente, um caso de tentativa censória.
Ao pé da notícia da proibição da mini-saia na escola de Colares ou da Quinta das Celebridades, isto sim, é um escândalo. Porque é que o ministro Gomes da Silva não se limita a perorar contra MRS?


MINI-SAIA. A notícia do Correio da Manhã sobre a proibição da mini-saia numa escola de Colares é tudo menos um fait-divers. Há uma questão de fundo: a da liberdade, evidentemente. E há a medida tomada pelo director da escola: proibir (cito o Correio da Manhã) «mini-saia, calções, chinelos, decotes ou dizer palavrões». Jorge Bacelar Gouveia diz que «um regulamento deste tipo é inconstitucional», e eu admito que haja uma discussão a realizar – e admito que a interpretação esteja correcta. Seja, pois, inconstitucional.
Ilustremos com um caso norueguês: o de Grimstad, onde a direcção de uma escola resolveu mandar fabricar t-shirts para os seus alunos – em especial para as suas alunas, está bom de ver. São t-shirts largas, de algodão de boa qualidade, cor de laranja e que descem um pouco abaixo da cintura. As t-shirts de Grimstad visavam, antes de mais [dizia a direcção da escola], fazer com que os alunos «se concentrem principalmente nos ensinamentos do professor». A imprensa protestou: as t-shirts de Grimstad eram a “burqa” norueguesa. A Comissão para a Igualdade entre os Sexos também protestou e acusou os professores de Grimstad de fomentarem a discriminação. É um exagero, provavelmente. Mas compreendo que não se possa, com toda a honestidade, ensinar equações de segundo grau, falar sobre o teatro de Ibsen ou os primórdios da literatura norueguesa, com tanto umbigo à mostra. Sou, portanto, um censor? Não sei. Mas tenho uma dúvida: eu, que me regozijo com os umbigos, acho normal que um professor se sinta perturbado com as glândulas sobressaltadas de uma adolescente que recita Shakespeare (acho difícil, porque os clássicos são cada vez menos conhecidos na escola). Pretender anular a sexualidade onde ela está à mostra é um esforço hipócrita tão grande como pedir a alguém que se excite com um retrato da madre Teresa.
Há tempos, um jornal português fez campanha em defesa de um professor que ia para as aulas de t-shirt, calções e sandálias. Parece que alguém do ministério lhe teria mandado um recado (do género: «Ó homem, é melhor vestir coisa mais apropriada.») Ergueu-se um coro de protestos contra o ministério fascista – que um professor pode vestir-se como quiser. Os alunos chamaram um regalo ao uniforme do professor e colavam-lhe papéis nas costas.
Chegados a este ponto, não sei o que as pessoas pensam sobre a escola. É certo que seria ridículo vestir a rapaziada de sargentos da GNR, mas ter em cada adolescente uma Lara Croft (está bem, uma Eva Mendes) pode ser um impedimento para falar de Camões ou da química dos elementos. Se um homem tem estas dúvidas, é um padreca empedernido; se olha para os umbigos, é um tarado diabólico. Decidam-se.
Bacelar Gouveia (citado pelo Correio da Manhã)) acha que o regulamento disciplinar da escola de Colares «põe em causa a liberdade pessoal, a liberdade de apresentação». Eu também acho. Mas não me parece muito mal que isso aconteça numa escola.
A questão não está, sequer, em que se discuta se o regulamento é exagerado ou não. Mas este coro de críticas unânimes parece-me que requer discussão. A unanimidade geralmente é burra. E cega.

ELEIÇÕES MUNICIPAIS DO BRASIL. Não resisto a publicar o cartaz de Deborah Soft (aliás Edivânia Matias Ferreira), a nova vereadora de Fortaleza:

Mais imagens de candidatos e da sua campanha eleitoral pode ser vista neste site, sugerido pelo Gonçalo Soares.

BRASIL, ELEIÇÕES. CRISE DO CORONELISMO. O Gonçalo Soares escreve de São Paulo com um interessante comentário sobre as eleições municipais brasileiras. O destaque vai todo para os resultados de Fortaleza, que bem pode constituir um amargo de boca para os ortodoxos do Planalto, nomeadamente o ministro Dirceu, que participou activamente na campanha do PC. Explicações para depois. Escreve o Gonçalo:
«A propósito das eleições municipais, não foi só em Salvador que se assistiu a um rude golpe no coronelismo. Também em Fortaleza deu "zebra". Contra todas as expectativas a candidata do PT, uma outsider que corria por fora, á revelia da direcção nacional do partido (Lula incluído), que preferiu apoiar o candidato do PC do B que parecia melhor nas sondagens, não só o deixou a ver navios para o segundo turno, como também deixou de fora os candidatos apoiados pelos pesos-pesados locais: o senador Tasso Jereissati e o Ministro Ciro Gomes. É por estas e por outras (leia-se Marta Suplicy) que ninguém vai convencer o Lula a apoiar quem quer que seja no segundo turno. Já o afirmou hoje, em declarações reproduzidas na Folha de São Paulo
Acrescento que outro caso é o do Maranhão, onde o candidato de Sarney também não passa ao segundo turno. Ou seja, Sarney, Garotinho e ACM estão em risco de ter perdido bastante. Curiosamente, o PT perdeu votos na sua zona histórica, ou seja, o ABC paulista.

outubro 04, 2004

O TELEPONTO. Depois da RTP, também a SIC achou graça ao teleponto de Sócrates; e lá mostrou, com graçolas (a televisão portuguesa está cada vez mais cheia delas, à falta de talento), o choque tecnológico do congresso do PS. Está encontrado, nas televisões, o mínimo denominador comum da esquerda moderna: o teleponto. Abriu a caça.

AINDA BRASIL. APLICAÇÃO NA ESCOLA. A Folha de São Paulo de hoje esclarece que a série «O Sítio do Picapau Amarelo» deixa de ser gravada em Novembro: «Serão colocadas reprises no ar. A Globo diz que as crianças do programa têm de estudar para as provas de fim de ano da escola.»

BRASIL. Os resultados não deixam dúvidas: o PT subiu conforme o previsto, ultrapassando as expectativas em alguns pontos (como o «saco de gatos» PMDB) e raramente desmentindo os seus objectivos. De destacar, ainda, a reeleição (à primeira volta) de César Maia no Rio de Janeiro; as suas declarações esta manhã (na TV Globo) podem indicar estarmos no final do «ciclo populista» que catapultou os Garotinhos para o governo do estado. Os cariocas aprenderam a lição. No entanto, outro dos sinais importantes destas eleições ocorre (insisto) na Bahia onde se confirma o «segundo turno» entre o PFL (do senador Magalhães, o ACM) e o PDT; a confirmar-se a vitória do PDT (que foi o mais votado ontem, com 43%, contra 21% do PFL), com o apoio da restante oposição do Estado, isso pode significar que ACM perde a prefeitura da cidade, embora possa voltar a jantar com Lula, não se livrando da discussão sobre a sua expulsão do partido. São Paulo será o barómetro para outros voos e uma eventual vitória de José Serra pode, para a pequena política, contribuir em muito para a bipolarização do sistema partidário brasileiro. Ao contrário do que se passa noutros países, a polarização entre PT e PSDB (que é o segundo partido mais votado nas eleições, apesar de essa votação não corresponder a número de mandatos e prefeituras) só pode ser, neste contexto, um sinal de vitalidade e de amadurecimento.

PONTE. A ideia de decretar uma ponte (na função pública) que permita aos portugueses prepararem-se para as romagens do 5 de Outubro, parece-me inteiramente justificada. Os portugueses preparar-se-ão convenientemente, a fim de no dia seguinte ouvir o sr. Presidente da República e as várias autoridades municipais discretear sobre o legado republicano de 1910.
Decretar pontes não faz parte, acho eu, da ideia que temos de uma administração decente. Pessoalmente, a ponte impede-me afazeres, tarefas e trabalhos. Mas a Pátria, caramba!, pode esperar até dia 6.

ELEIÇÕES EM SÃO PAULO. A derrota do PT em São Paulo na primeira volta das municipais, a consumar-se (escrevo quando estão apurados cerca de 80 por cento dos resultados e a vantagem de José Serra é de 43 para 35%), constituiria uma severa derrota para o aparelho do partido e para a ala esquerda do governo. Marta Suplicy dramatizou os resultados da capital paulista: dar um voto a Serra e ao PSDB significaria um aviso sério a Lula e à sua reeleição em 2006. Lula resistiu quanto pôde – mas acabou por envolver-se na campanha de Marta Suplicy numa altura em que as suas declarações se tinham radicalizado, sobretudo graças à influência de Favre (aliás, a ainda prefeita foi castigada pela forma como envolveu o ex-marido, o senador Eduardo Suplicy no saco de gatos de São Paulo) e à tentativa de cativar-não-cativar os votos de Paulo Maluf para a segunda volta. Os dados estão agora lançados para essa segunda volta: saber se o PT vai continuar a prometer a Paulo Maluf que abrandará a CPI sobre a lavagem de dinheiro (depois de ter feito negócios com o PTB), ou saber até que ponto a política de silêncio absoluto de Serra o pode beneficiar. Mas, sinceramente, ainda é cedo demais.

Outra nota: a confusão que pode resultar dos votos da Bahia. A confirmarem-se os resultados, salvo alguma reviravolta na política de alianças (que pode ocorrer, se o PT apoiar o César Borges, do PFL), é um rude golpe no coronelismo e no grupo de Antônio Carlos Magalhães.

No «meu município» baiano, o mais divertido é existirem candidatos com nomes assim: Evanildo da Polícia Rodoviária (do PFL), Marito do Ferro Velho (do PRP), Binho do Tiéte (PP), A. Baixinho (também candidato a vereador pelo PP), Jorge Boca d'Ouro (PMN), Carlucho (PSB) e Chapiscado (PTC).

Outra nota: «Em Fortaleza», no Ceará, escreve a Folha de São Paulo, «a candidata do PTN, Edivânia Matias Ferreira, 21, mais conhecida como a striper Deborah Soft, deve levar uma das 41 vagas de vereador. Com 78,19% das urnas apuradas, ela está no grupo dos dez candidatos mais votados, aparecendo com quase 9.000 votos. Estudante de administração, a pernambucana Deborah Soft trabalha como striper desde os 14 anos, ao lado do marido, que também é seu empresário e advogado, o mineiro Jonas Ferraz.»
Aqui está a foto da Cicciolina cearense, como lhe chama a Folha, verdadeiro exemplo do poder local:

GÁVEA. Também está de regresso e activo o Gávea, o blog sobre literatura brasileira.

outubro 03, 2004

MAR SALGADO. O facto de o Filipe Nunes Vicente regressar à escrita no Mar Salgado só nos pode deixar contentes. E logo com um texto assim:
«ISTO ASSIM NÃO É VIVER: Dizia-me ela com uma certeza cósmica: perdi quatro anos da minha vida. Isto porque demorou muito tempo a fazer o luto, como dizem os psis. É curiosa esta nossa ideia de que a vida é um investimento a rentabilizar. Também já a propósito de casamentos infelizes ouvi frases destas, o intervalo temporal do desperdício variando em função do rancor pós-conjugal. Mas Séneca, que inventou a fotografia, explicava que só podemos estar seguros do nosso passado. [...] Claro que um estóico da velha cepa diria aos moços e moças que como nunca sabemos quando a corrida acaba nem como decorre, todas as horas são valiosas, todas são irrepetíveis. Não me parece que fosse ouvido: há muito que dividimos a vida em duas: a que vale a pena e a que é um desperdício. Como poderia ser de outro modo se legiões de aldrabões licenciados nos convencem todos os dias que o nosso sofrimento deveria ter sido evitado?»
Eu sei que nesta altura de Bush vs Kerry, de crimes no Algarve e de caça ao Sócrates, queriam mais. Mas leiam, leiam.

TRICOLOR. A propósito do textos sobre os times de futebol, a Silvia Chueire (que, no Brasil, mantém o blog Eugenia in the Meadow), tricolor, pó-de-arroz até ao fim, torcedora fluminense, junta-se ao lamento «por um time que tem Romário e o Animal jogando». E recomenda outro hino (esta sugestão vai também para o Ivan): «Quanto aos hinos (não ouvi os Cds a que se refere) recomendo que quando puder ouça o mais belo hino de futebol do Brasil, o hino do América futebol Clube (do Rio). Aliás, time de torcedores famosos e que foi o segundo time de muita gente boa.» Garanto que vou ouvir.

QUARTZO. Estes dias de ausência impediram que festejasse o aniversário do Quarzto, Feldspato & Mica, como devia. Mesmo com atraso, fica a saudação.

DEPOIS DE SUKKOT. Tu fazes o vento soprar e a chuva cair. A Festa das Cabanas, Sukkot, é uma das mais belas lições sobre a saída e a travessia do deserto, evocando a fragilidade e a luz negra do céu – de onde apenas se deviam ver as estrelas. Manter ao longo dos séculos a tradição da festa de Sukkot é um milagre admirável. Relembro sempre o capítulo VI de Errata, de George Steiner, sobre este milagre da sobrevivência. Nenhuma outra festa do calendário judaico me comove tanto como Sukkot, tirando talvez Tu b'Shvat, o dia das árvores.

ASSUNTOS ANTIGOS, 3. Outra história é a das corridas ilegais a alta velocidade dos carros de Palmela ou da Ponte Vasco da Gama. Correndo o risco da acusação de «umbiguismo», a Grande Reportagem publicou, em Dezembro de 2003, uma história sobre essas corridas. Havia ali matéria para procedimento criminal, mas não era nada que não se soubesse e que as autoridades desconhecessem (o mesmo jornalista já tinha feito um trabalho sobre o mesmo assunto para a SIC Notícias). Não foi feito nada para prevenir o que aconteceu, de facto, em Palmela. Nessa altura já tinha havido acidentes.
De resto, esta ideia do homicídio voluntário ou involuntário praticado pelos condutores dos carros, se não fossem as causas dramáticas que antecedem a discussão «meramente jurídica», daria vontade de sorrir com alguma amargura. Todas as semanas se realizam corridas dessas, em qualquer lugar do país, em qualquer zona da Grande Lisboa, mesmo dentro da cidade – com apostas conhecidas e disputadas. São matéria para filme, sem dúvida: a alta velocidade, o fumo dos motores, os ruídos, o suor, o risco. Eu sei. Seria fascinante, até, se eu gostasse. Mas, lendo num jornal de há dias, a queixa de um empresário de «tuning» sobre «as repercussões negativas» que isto terá no seu negócio, apetecia-me que a lei tivesse sido cumprida há mais tempo.

OS TIMES (DE FUTEBOL). O Ivan escreveu um curioso texto sobre os seus times brasileiros, mencionando a dificuldade de escolha. Compreendo-o bem. Eu simpatizei com o Vasco, mas depois do primeiro jogo em S. Januário e das patifarias do cartola que dirige o clube, desisti. Era pouco depois do tempo em que Jardel era assobiado no estádio, mesmo quando só se sentava no banco (Scolari foi lá buscá-lo depois para o Grémio e foi o que se soube). Houve uma altura em que simpatizava com o Grêmio, justamente – acho que era mais por causa de Porto Alegre e por aquela divisa sentada no pórtico do Estádio Olímpio: para onde fores o Grêmio te acompanhará. Mas a literatura não tem nada a ver com o futebol. Sempre soube que era anti-Flamengo, isso sim. A maior parte dos meus amigos do Rio são tricolores e falam do Fluminense e das glórias «pó-de-arroz» com um tal brilho nos olhos que fico com inveja. Mas, tal como o Ivan, arrepiei-me com a hipótese de torcer por um time onde jogavam o Roger, o Romário e o Animal. Vivendo em Salvador, achei que o melhor era dividir-me entre os dois times da cidade, o Vitória e o Bahia; o Bahia na segunda divisão, o Vitória caindo para o fim da tabela do brasileirão. O problema é que o hino do Vitória era cantado pela Daniela Mercury (além de jogar lá o Vampeta) e o do Bahia pelo quarteto clássico (Caetano, Bethânia, Gil e Gal). A vida não tem sido fácil.
Quanto aos hinos, a versão do hino do Botafogo (sobre quem o Sérgio Augusto acaba de publicar um livro, Botafogo — Entre o Céu e o Inferno, edição Ediouro) pelo Zeca Pagodinho é uma boa amostra para quem gosta de samba, sim (e com o tom de malandragem imposta pelo próprio Pagodinho) — mas eu volto a sugerir a versão de Ed Motta (e Beth Carvalho). Além disso, nesse CD referido pelo Ivan há três hinos a distinguir: o do Vasco (Paulinho da Viola e Los Hermanos, muito bom), o do Atlético Mineiro (Tianastácia e Rogério Flausino, dos Jota Quest, uma trapalhada roqueira com graça) e o do São Paulo (outra trapalhada que quase destrói um dos melhores hinos, com os Capital Inicial e os Ira!). Ah, é verdadde: a narração do golo de Roberto Dinamite que abre a versão de Paulinho da Viola é a mesma da de Ed Motta.

REVISTA DA IMPRENSA. Frequentemente, aparecem umas almas, chocadas, chorando «o desaparecimento dos valores» e pedindo o regresso «das grandes figuras» (Churchill!, ah, De Gaulle, ah!, Delors, ah!) e dos homens bons. Eu compreendo a angústia e às vezes partilho dela – mas, num último instante, desisto. Há ali uma tentação do desprezo a que é preciso fugir a todo o custo. A impossibilidade de se dar com o presente é uma das forças que mais tem produzido pequenos ditadores.

ASSUNTOS ANTIGOS, 2. À distância, o caso de Portimão e o espaço que garantiu em qualquer dos canais da televisão portuguesa parece confirmar tudo aquilo que os pessimistas de lei já tinham dito, escrito e pressentido nos últimos anos da Pátria: é de esperar sempre o pior porque o pior acontece sempre. Claro que pensamos que é sempre possível ter jornalistas que não façam perguntas idiotas e editores que arrisquem a sua posição honrada, mas isso é um esforço desnecessário e despropositado. A forma como as televisões lidaram com a tragédia ronda o abjecto, mas o abjecto estava lá, mesmo. [Estas observações são feitas com muito atraso, depois de José Pacheco Pereira ter escrito sobre o assunto no Público e no Abrupto, mas não vem mal nenhum ao mundo. ] O abjecto estava lá. Na rua, no povo, na indignação encenada diante das câmaras. Esse espaço de gritaria à frente da televisão (toda a gente que fez reportagem em directo sabe que as pessoas se transfiguram quando vêem um câmara ou um microfone) retira toda a dignidade à própria indignação. Alguns pensam que vale a pena relativizar e prestar atenção ao contexto. Eu penso que aquilo é o que é. O que me assustou francamente, naquelas transmissões a que assisti sobre o assunto, não foi sequer esse universo abjecto reunido à minha frente, aos gritos, procurando um lugar no apedrejamento, mas o facto de (em relação a este caso de Portimão como em relação a outros casos semelhantes de que a televisão se apropriou) se ter esgotado o lugar da dor. Não o do espectáculo do sofrimento, mas o lugar da dor, aquele silêncio que nenhuma poeira consegue incomodar.

ASSUNTOS ANTIGOS, 1. O texto de O Independente desta semana sobre a autoridade de Santana Lopes é «deslumbrante». A ideia de um primeiro-ministro chamar os seus ministros para lhes dizer que só ele tem autoridade já é obtusa; a de alguém conseguir que alguém escreva que o primeiro-ministro pensa mesmo aquilo, então, é notável.

outubro 02, 2004

SÓCRATES. A vitória de Sócrates escandalizou muita gente -- à esquerda (muito mais) e à direita (com sorrisos tímidos). Uma das críticas fundamentais é a que designa «o novo líder» como «homem de plástico», «homem de marketing»; a outra designa-o como não tendo muita intimidade com «a esquerda». Estas coisas ficam na cabeça dos jornalistas da tevê. A repórter da RTP mostrou o teleponto de Sócrates durante um discurso no congresso com a alegria pacóvia de ter feito uma descoberta essencial e desatou a perguntar aos congressistas se não tinham ficado alarmados com a ideia; na imprensa, propriamente dita, procede-se a uma «caça ao adjectivo» para ver quando é que Sócrates diz alguma coisa «menos de esquerda».
Tudo aponta para uma nova paranóia: fazer prova de que se é de esquerda. Para Manuel Alegre (que estava com Soares quando ele meteu o socialismo na gaveta) isso resolve-se assinalando, de cinco em cinco minutos, que se é de esquerda. Como se fosse uma vantagem enorme.

AS COLOCAÇÕES. O assunto é velho, eu sei, mas o jornal A Semana, de Cabo Verde, dizia na sua última edição que «lá, na metrópole, parece que houve problemas com a colocação de professores». Uma pessoa pode sorrir às escondidas antes que descubram em nós um complexo colonial. Mas a nota terminava oferecendo os préstimos de Cabo Verde e o seu know-how.

PASSAGEM POR CABO VERDE. O problema é que uma passagem no Mindelo, por pequena que seja, deixa coisas atrás, nuvens de poeira, música, cerveja, conversas. Foi ainda mais difícil regressar ao blog por causa disso. A ideia de que as trapalhadas continuam na Pátria, então, deram o empurrão final e decisivo. E voltar, para quê? Para ver se ainda tenho raízes.

EU, À DIREITA. Numa livraria de Lisboa, uma senhora aproxima-se, olha-me pela esquerda e, depois, pela direita e desata a rir: «Olha, que engraçado. Eu julgava que o senhor andava sempre de fato e gravata, muito composto e penteado. Como é de direita...» Tentei explicar ambas as coisas, e desenganá-la, mas não consegui.

REGRESSO. Regresso oficial à blogosfera depois de uma quinzena de relações cortadas. Aos poucos se verá.